quinta-feira, 13 de outubro de 2011

ESCURIDÃO - Ângela Dippe

“Somos mais normais quando sabemos o que está acontecendo. Somos mais imprevisíveis quando não sabemos ". 
Navid Hassanpour

1
Minhas primeiras lembranças cinematográficas datam de não sei exatamente quando.
Lembro de uma certa esquina de um certo cinema em Porto Alegre onde assisti a um certo filme .

Guardo algumas poucas sensações e muitas imagens desta " minha primeira vez".
Recordar faz com que os tempos verbais se misturem na memória de quem descreve a lembrança.

Tudo era gigantesco "naquele entonces”.

(adoro esta expressão importada .é uma afirmação do passado no presente.)

O mundo era todo maior que eu.

Eu era uma miniatura dentro do meu mínimo vestido de veludo cotelê com pequeninas florzinhas bordadinhas em alto relevo.

Uma mão maior que a minha me levava para um lugar enorme.
Na entrada um balcão solene e interminável. A nobreza do mármore e da madeira contrastavam com balas coloridas feitas de um plástico saboroso .
Para o alto um teto que eu não conseguia mais acabar de olhar.

O "lá em cima" ficava muito longe de mim.
Meus olhos giravam tentando absorver tanta magnitude.

2
E logo a imensidão da sala e da tela branca descomunal.
E logo a escuridão total.

Desesperada procurei por pontos luminosos
Descobri arandelas .

Nem sei de neons vermelhos ,sinalizadores de emergências ou toaletes.
Não lembro se haviam. Afinal nada era tão urgente ,nem se bebia tanta água!

3
Nunca gostei do escuro.

Antes da luz apagada ou do sono fixava-me na janela do quarto.

A vidraça era uma tela onde cabeçudos insetos gigantes e santos retorcidos projetavam-se pra me aterrorizar. Fechar os olhos significava um tormento de monstros azuis com anteninhas e de imagens religiosas em tom sépia.

4
Todo aquele breu foi colorido pela gargalhada da bruxa com sua terrível maquiagem metaleira a la Kiss !

Mas a maldade maior foi a das maçãs envenenadas .
Eu queria invadir a tela e advertir a Branca de Neve do perigo.

E o Bambi ?! Um órfão abandonado na escuridão da floresta!
Eu queria levá-lo para a companhia dos meus gatos e cachorros.

5
Digamos que eu sofri demasiado na minha primeira incursão cinematográfica.
Tudo me atingiu numa escala desumana.

Tanta violência, tanto medo ,tanta tristeza.
Mas e o volume / intensidade das cores ,do som e da música?
-Droga da melhor qualidade!(desde então sou adicta das salas escuras cheias de estímulos).

6
Especulando retroativamente, tudo foi fantástico e determinante.
Porque apesar dos poderosos recursos tecnológicos atuais , estas ainda são as lembranças mais contundentes.

Talvez por conta da fome de um cérebro mais jovem.
Eu era uma virgem de experiências, noviça na vida ainda....

7
Mais velha descobri as benesses da escuridão.
Adoro retardar os momentos que antecedem a luz no fim do túnel.
All black .

Chocolate dark, uma guinness preta,um tapa olhos .
Amo a escuridão.

Dentro dela não há estímulos externos que me suscitam necessidades.
Do ponto de vista das pálpebras fechadas não sonho mais pesadelos.

Fechar os olhos em paz sem ter que morrer ou dormir é um luxo!
A escuridão é a tábula rasa. A caverna do esquecimento.

Ela é perfeita para zerar. Para começar um novo raciocínio.
A neutralidade antes da novidade.
Tem a mesma função do copo de água antes do primeiro gole de um vinho.

8
Agora as coisas tem seu tamanho natural. As salas de cinema não me parecem mais tão descomunais.

Agora os olhos tem que estar sempre abertos .
As câmeras estão sempre acesas.

Agora é difícil você ter a chance de ficar quietinha numa caverna aguardando ansiosa por alguma surpresa.

A menos que você vá ao cinema.
Sentada na poltrona .
Apagam-se a s luzes.
Escuridão.
Eu viro folha branca vulnerável .
E me delicio entregue ao que virá.

Ângela Dippe é atriz, produtora e colunista do blog Os Curtos Filmes.