Djin Sganzerla- O mar, o Fogo e o Mergulho no Inesperado.
O que dizer de Djin Sganzerla? Falar de Djin não é tarefa fácil, linear ou um caminho visível com conclusões definitivas. Ela é uma atriz que apresenta tal complexidade, vida e profundidade, que é difícil defini-la ou classificá-la de alguma forma. Djin é atriz em constante movimento, construção. É o movimento próprio da vida, da arte. Djin ama o mar. Diz que seu som e imagem estão sempre presentes em seus ouvidos e imaginação. Talvez o movimento do mar possa definir (seja o mais próximo de) sua personalidade e seu dizer artístico. Forte, profunda, surpreendente, por vezes suave e tranquila, por vezes selvagem e de uma potência assustadora. Ela traz em seu olhar o mistério e a surpresa, o domínio e o deixar-surpreender, a calma e a inquietude. E em seu interior possui a riqueza inesgotável de seres belos e comuns, assim como aqueles pertencentes às profundezas que mal podemos ver ou sabermos que existem.
Djin é uma atriz que dispensa apresentações. Na minha opinião, é uma das melhores de sua geração. Além do legado impressionante que herda de seus pais, Rogério Sganzerla e Helena Inês, possui uma assinatura própria, única. É visceral, intensa, profunda, vulcânica. Ganhadora do Troféu Candango no Festival de Brasília de 2007, como melhor atriz coadjuvante por Falsa Loira, e do Troféu APCA 2008 de melhor atriz por Meu nome É Dindi, recentemente esteve em cartaz com o espetáculo teatral Ilhada em mim- Silvia Plath, com direção de André Guerreiro. Espetáculo este que recentemente rendeu a André, seu companheiro artístico e de vida, a indicação ao prêmio APCA, como melhor diretor. Estive com Djin em seu apartamento em São Paulo e conversamos sobre seu processo de construção de personagem para esse espetáculo, que segundo ela foi o maior desafio de sua carreira, assim como sua relação com o cinema e projetos para o futuro.
Ela me contou que durante os ensaios de Ilhada em Mim- Silvia Plath, havia acabado de sair de uma temporada teatral com O Livro da grande Desordem e da Infinita Coerência, da companhia que possui com André Guerreiro, o Estúdio Lusco-Fusco- que tem como pesquisa artística a dissolução das fronteiras entre teatro, audiovisual e artes plásticas. Além disso, estava gravando a série Motel na HBO e filmando o longa de Bruno Safadi, O Prefeito.
Djin não é uma atriz que gosta de fazer muitos personagens ao mesmo tempo. Segundo ela, sente a necessidade de aprofundar-se inteiramente no universo de cada personagem e quando interpreta vários ao mesmo tempo, sente que algo se dilui e não consegue aprofundar-se inteiramente. Quando isso acontece sente-se traindo algo ou a si mesma. A série O Motel exigia de Djin uma dedicação física e psicológica grande, já que seu personagem se desdobrava em dois, sendo um quase o oposto do outro. Esse trabalho exigiu forma física e apaixonou Djin pela transformação e código corporal específico, já que um dos seus personagens possuía movimentos de felino e um aspecto surrealista. No meio dessas gravações, ela teve exatos cinco dias para ensaiar o espetáculo Ilhada em Mim e apresentá-lo na II Mostra de Teatro de Tiradentes. Teve que ensaiar 12 horas por dia. Para que isso fosse possível, contou com a competência, confiança e cumplicidade artística de seu diretor. Foi uma imersão muito intensa, onde a porta de entrada para entender o universo e acessar a personalidade da poetisa Silvia Plath foi uma biografia que analisava outras biografias, além da leitura de seus poemas. O resultado foi que espetáculo foi o grande destaque da mostra de Tiradentes. Mas Djin ainda sentia que havia tocado apenas a superfície de Sílvia.
Djin é uma atriz como poucas, daquelas que sentem um compromisso ético com sua profissão e consigo mesma de honrar a personagem que interpreta. Então, para preparar-se para a temporada seguinte, no SESC Pinheiros em São Paulo - que acabou sendo sucesso de público e crítica - dedicou-se a buscar as tessituras mais profundas da personagem. Conta que foi um dos trabalhos mais difíceis e desafiantes que já enfrentou no teatro. Sílvia Plath possuía uma personalidade muito forte, segura e uma produção artística impressionante. Morre muito jovem após cometer suicídio. Casada com o também poeta Ted Hughes, as circunstâncias que a levaram ao suicídio até hoje permanecem obscuras. Por si só esses fatos já representam um desafio e tanto para uma atriz. No entanto, havia um desafio a mais: dar vida a uma personagem numa linguagem poética (não inerente à linguagem teatral) numa estrutura de encenação imagética e não linear. Djin conta que ao não possuir uma âncora temporal, dramatúrgica ou uma linha psicológica a seguir, tinha o desafio de transmitir uma verdade cênica que pudesse fazer com que Sílvia existisse e passasse toda a sua força ao público. Ela resolveu a equação, encontrou uma via de acesso, penetrando no vazio existencial da poetisa. Djin explica que seu processo de atriz passou por um silenciar de seus impulsos e personalidade, já que a vibração natural de Djin não servia para Sílvia. Também utilizou a meditação e fez um trabalho interno para acessar suas próprias sombras e profundezas mais obscuras. No entanto, seu processo não se baseou na memória emotiva do método Stanislavski- onde alguma emoção passada do ator é acessada para transmitir a emoção necessária na cena-, mas baseou-se no próprio mergulho no escuro da personagem, no desconhecido, no vazio, no mistério. Djin é uma atriz de rara coragem. E ama o mistério. Ao acessar a escuridão, sentiu medo. Mas explicou-me que se sente um canal, onde a personagem passa através dela; ela não se sente a personagem, mas caminha junto com ela. Ao tocar no escuro de si mesma, ela toca o escuro universal e canaliza uma força que acessa o sentimento puro, original, que é a força da arte. O caminho da interpretação da personagem seria uma terceira via, que surge e emerge de algo que é misterioso, surpreende e inesperado para ela mesma. Nesse momento Sílvia Plath pôde emergir.
Djin tinha a intuição que Sílvia viria com um grande fogo, um fogo com um grande espaço, como um vulcão interno. Talvez essa seja outra característica desta atriz tão singular. Além da profundidade do mar, Djin também possui uma potência vulcânica. Quem teve a oportunidade de vê-la em cena, sabe o que estou dizendo. Ela é puro magma, rico, complexo e inventivo, pronto para eclodir através de seus personagens. Sua erupção não é violenta, mas generosa. Ela trabalha com a contenção, a emanação. Seu fogo pulsa, invade e inunda a sensibilidade do espectador. Aos poucos, intensamente e de maneira gradual, ela incendeia a alma de quem assiste. Tempo e o espaço estão sob seu domínio. Sua respiração, gestos, olhar e movimento nos contam a estória íntima de cada personagem. E ela nos torna cúmplices dessa humanidade. E, dessa forma, saímos do teatro com essa sensação deliciosa de acolhimento, vibração, culpa e excitação, por termos participado de uma confissão, um ritual tão potente. Vê-la em cena é uma aventura transformadora. Difícil ficar impassível diante do trabalho desta atriz.
Ela diz que o processo como atriz no cinema é bastante semelhante ao do teatro, com a diferença que no teatro há um irradiar, um emanar para o público; e no cinema, ela se preocupa em preencher todos os espaços, poros e pensamentos da personagem. É um exercício de colocar-se na situação, de ser e não de interpretar. Ela não decora o texto, mas o incorpora até que ele esteja internalizado e só então o memoriza. Djin me disse uma coisa que ouvi de Carlão Reichembach nas filmagens de Garotas do ABC, que o momento da Ação, é o momento do salto no abismo, onde devemos estar livres para que o inesperado apareça. Djin está sempre aberta e é apaixonada por esse inesperado.
Perguntei a ela sobre qual o personagem que, da mesma forma que Sílvia Plath, mais a desafiou no cinema. Ela me disse sem dúvida alguma que foi Dindi, do filme Meu Nome é Dindi, de Bruno Safadi. Me contou que para ela alguns personagens não requerem tanto esforço ou minúcia porque são mais simples ou mais próximos de sua própria personalidade, mas que Dindi era muito diferente dela. Com esse tipo de personagens ela deve mergulhar profundamente para entregar-se a seus mistérios e dar-lhes vida. Contou-me também que estuda cinema há um ano e que pretende dirigir um filme. Imagina um cinema onde a imagem e a câmera sejam protagonistas. Como tema, pensa abordar alguém em busca de si mesmo, a infância, o mar e a cultura indiana. Perguntei também qual seria seu ator ideal. Ela me disse que seu ator ideal é alguém que saiba lidar com o silêncio, que seja o silêncio, que tenha e seja mistério. Me falou sobre sua paixão por cinema e atores que dizem muito sem dizer nada, que trabalham camadas de humanidade no silêncio.
No fim de nosso encontro, Djin me deu um presente. Ela me contou um sonho.
Disse que na véspera de estreia de seu primeiro monólogo teatral, O Belo Indiferente, sentia-se calma, sem medo. Como não tinha experiência em monólogos e não tinha ideia de como o publico reagiria, começou a ficar bastante preocupada e insegura com esse fato. Então ao dormir, ela sonhou com o mar. Além de amar, Djin também teme o mar. Sonhou com mar enorme, profundo onde uma onda gigante e assustadora veio em sua direção. Nesse momento do sonho, de susto, indecisão e pânico, ela ouviu uma voz. A voz de seu pai: “Vai filha, mergulha!”. Ela mergulhou. Com lágrimas nos olhos, me contou que seu pai está sempre presente em todos os seus trabalhos, em todos os momentos. No dia seguinte o público estava em suas mãos.
Vida longa ao mar, ao magma, ao indefinível que é Djin. Ao que é frio, quente, profundo e complexo. Ao que inunda e irrompe. À comunicação que transcende o tempo e o espaço. Ao que não se pode reter porque está sempre em movimento. Ao mergulho no mistério e no inesperado que a criação artística propõe.
Vida longa aos trabalhos de Djin Sganzerla.
Nathália Lorda é atriz e diretora teatral.