“Gianni Schichi em Irmãs Jamais", de Marco Bellocchio
O filme do Marco Bellocchio “Sorela Mai” ou, como foi traduzido para o português, “Irmãs Jamais“, trata de uma família: irmãs, irmãos, sobrinhos. A fotografia escura me lembrou as pinturas do Caravaggio: um vulto se destaca, de muito perto, o tom descontraído.
Quando fiquei sabendo que ele demorou nove anos para filmar, pensei: está explicado! Ano a ano, perseguiu o crescimento de uma criança, que se tornou uma moça, doce e terna - e que é a sua neta. Vou espiar na ficha técnica e grande parte dos atores tem o seu nome: Bellocchio.
Com um filme extraído do cotidiano de uma família, mesmo para aqueles que não o são, o significante “sou da família” fica boiando. Sabe-se que os atores extraem, das relações de bastidor, materiais. Um bom diretor faz o ator sentir a cena como uma confraternização. Não se trabalha sem afeto.
Quero falar de um ator entre eles, que não é um Bellochio, mas um Schichi (Gianni) cuja atuação me hipnotizou. Talvez pela multiplicidade das pequenas ações, que, ágeis, proliferam, pulverulentas, entre uma fala e outra.
O ator tem um roteiro nas mãos. Algumas indicações apenas. Ele está lá, com o corpo inerte, diante do escrito que lhe caiu do céu. Terá que viver aquilo como se tudo fosse seu, tomado por uma situação que é outra, que não é a sua no set de filmagem. Ele não tem escolha. Precisa deixar a fala penetrar na carne. Não só deixar, como depositar, nos intervalos, o gosto do passado. Como estes velhos atores que, de tantos Shakespeares, exalam uma multiplicidade de tremores.
Quando a fala vem, ela tem que pedir licença, porque o tempo é dele. Cada instante é a sua vida associada à infinitude de uma quase-reta. Superfície para a qual a frase faz ponte, faz estrela na circulação da massa corporal. (Se pudéssemos contar os sobressaltos, desvios do tecido adiposo.)
Porque o ator quando aproveita o tempo, é porque tem coisa pra sair do corpo, porque está, porque ele é velho. O ator tem uma coisa que é o corpo marcado. Uma vida que se torna cênica. Este corpo sabe que é bom estar lá. Que fazer cinema, não é sempre que se faz. E quando o diretor diz “ação” um mundo cai e outro sai: a gente vira do avesso.
Rejane Kasting Arruda, é atriz e pesquisadora. Atua em cinema e teatro. Faz pesquisa na Universidade de São Paulo junto ao Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica do Ator. Ministra aulas de atuação para cinema. Participou dos filmes Corpo, O Veneno da Madrugada, Tanta, Iminente, Edifício do Tesouro e Medo de Sangue, entre outros. É também colunista do blog Os Curtos Filmes, onde assina uma coluna mensal.