Cássia
Kiss no Contexto de Os Inquilinos: O que se pode aprender?
A atuação de Cássia Kiss em “Os
Inquilinos” (Sergio Biancchi, 2011) pode ser considerada uma referência para a
observação de algumas operações para quem trabalha com a Direção de Atores no
cinema.
O filme parte de uma poética realista,
retratando o contexto social de uma família de classe média que,
inesperadamente, vê a casa vizinha hospedada por estranhos. Barulhentos,
arruaceiros, inconvenientes e agressivos, aquela presença causa bem mais do que
o incômodo e as noites de mau sono. Ela interfere na vida de Valter (Marat
Descartes), colocando à prova a sua capacidade de proteger a família e
preservar o lar da invasão indesejada.
O contexto do filme não se circunscreve a
esta família. O principal personagem é um cotidiano invadido pela violência.
São ônibus queimados nas ruas – em uma explícita alusão às ações do PCC em São
Paulo – toques de recolher, assassinatos, estupros. Uma ameaça generalizada
empresta ao filme a atmosfera da paranoia com alguns momentos de suspensão (afinal,
eles podem não ser bandidos, mas moleques mal educados) – até a confirmação
final, regada com a crueldade (a mutilação de um senhor), a frieza (a vizinha reafirma
a posição de locatária da bandidagem) e a sedução: o visível prazer das
crianças e das mulheres quando o caso “cai na boca do povo” espelha, no olhar
de Valter, a constatação da impossibilidade de mudança.
Mas é a condição social do pai de família
que mais empalidece, quando percebemos que nem a carteira assinada (que é seu
direito) ele pode reivindicar sob a pena de perder o trabalho de carregador de
caixas. Trabalho que lhe suga a energia de dia; a pouca que lhe resta, pois à
noite Valter vai à escola. Escola onde vemos a professora interpretada por
Cássia Kiss lendo poemas e pondo em questão a posição de seus alunos frente ao
mundo ameaçador. Diferentes alunos transpassam os poemas com o seu olhar,
vivência e, também, a rigidez de uma tomada de posição – que a professora questiona
em uma visível tentativa de provocar a reflexão e o deslocamento do discurso
“da guerra”. Para ela, a violência não é a do mundo externo, mas a do estar
vivo. O sangue não é o da morte, mas aquele que corre nas veias e “quer mais”.
E é mesmo um descomunal excesso que se
percebe no choque entre o mundo comportado da família de Valter e os três
arruaceiros, com suas garotas adolescentes, bebidas, drogas, armas, barulho,
brigas e xingamentos. Afinal, porque tanto medo do contágio se não pela simples
constatação que aquele excesso seduz? Um excesso que vemos também no olhar do
transeunte, que para, estupefato, diante dos quadris rebolantes das quatro
garotas púberes (uma delas a filha de Valter). O que dá o contraponto, o que
salva (pode-se dizer) a garota, é o amor de pai – sem ambiguidade alguma. Um
amor que se pode dizer puro e guardião da integridade da família. E que
sustenta a sua posição até o final, mesmo que para isto tenha que se tornar um cão
(mijando nos cantos do jardim); ou ser apedrejado pelos garotos da rua (para,
por fim, desconcertado, dar um basta à festa dos vizinhos).
Propondo um “zoom” na atuação de Cássia
Kiss, percebo algumas operações que vale a pena sublinhar para um campo ainda
hoje nebuloso, que é a Direção de Atores. Uma das operações que se percebe é a
necessidade do ator sustentar o tempo. Quando se trata de atores não adaptados
à poética fílmica ou mesmo a uma poética do set (o que se faz quando o diretor
diz “ação”?), a questão é: ele corre com o texto. Cássia sustenta palavra por
palavra, ação por ação, em um exercício maduro de manejo do tempo, do ritmo e
da evocação de certa reflexão. Cássia produz pensamento a partir do
encadeamento de ações bem sustentadas. Sustentadas não apenas pela sua relação
com os alunos – visivelmente presente (por exemplo, no momento em que ela,
bastante à vontade, apoia a palma da mão na cabeça de um deles). Cássia evoca a
imagem da professora mítica que nos inicia na poiesis do querer saber, da maiêutica. Também nos remete ao amor
implicado nesta relação; outro tipo de sedução, portanto. Mas, sobretudo, nos
oferece, enquanto performance de atriz, a perspectiva da construção do material
oculto que se supõe pensamento; e que sustenta o tempo das ações lidas nas
entrelinhas (exigindo a nossa interpretação e movimentando o desejo).
E em se tratando de questões tão
mobilizadoras de uma posição no mundo (que será reafirmada pela morte de um
aluno), ela sustenta o estranhamento. A simples escansão de um tempo – quando
no final de uma cena é preciso encarar a razão que os apaixona; quando eles se
vão e ela fica; ou quando duas posições se chocam, sem se saber qual delas “tem
razão”.
Rejane
Kasting Arruda é atriz, diretora e pesquisadora no “Centro de Pesquisa em
Experimentação Cênica do Ator” (USP); professora de Direção de Atores na
“Academia Internacional de Cinema” e de Atuação na “Oficina de Atores Nilton
Travesso”.