domingo, 1 de julho de 2018

Os Trapalhões: Vera Bungarten


Vera Bungarten
Fez still em O Cangaceiro Trapalhão e em O Trapalhão e a Arca de Noé


Como surgiu o convite para trabalhar com Os Trapalhões?
Eu já trabalhava há bastante tempo como still e era bem conhecida no meio. No final de 1982, eu estava na equipe do Bar Esperança, O Último Que Fecha, do Hugo Carvana. O Daniel Filho fazia um papel no filme e nos contou que tinha sido convidado para dirigir o filme seguinte dos Trapalhões, O Cangaceiro Trapalhão. A produtora do Renato Aragão, a R. A., fazia dois filmes por ano: um para lançamento nas férias de inverno e outro nas férias de verão. A maior parte da equipe era fixa; e a empresa era familiar, ocupando alguns parentes do Renato, como o irmão, Paulo Aragão na produtora, e o filho, Paulo Neto na produção. A direção da maior parte dos filmes era do J. B. Tanko, e a fotografia ficava a cargo de Antônio Gonçalves. Os filmes eram campeões de bilheteria, blockbusters mesmo. Com um orçamento relativamente baixo, eram realizados de forma simples e despretensiosa, o que gerava um retorno comercial vultoso. Na época, as produções brasileiras voltadas para o público infantil eram poucas; mas os filmes dos Trapalhões rivalizavam em sucesso com as produções americanas. A geração mais nova da produtora e da família sugeriu então ao Renato realizar um produto mais elaborado, investindo numa produção de alto nível e numa equipe técnica mais renomada, visando obter maior qualidade artística e técnica dos filmes. Renato topou apostar nesse investimento e convidou o Daniel Filho para dirigir, dando a ele carta branca para compor a equipe. O Daniel estava há anos fazendo televisão e não estava muito atualizado em relação aos profissionais de cinema. A equipe que ele conheceu no filme do Carvana foi muito do seu agrado e, assim, convidou grande parte dos técnicos para fazer O Cangaceiro Trapalhão. Além disso, ele levou os colaboradores mais diretos, como assistentes de direção, da sua prática de trabalho na TV Globo.

Antes de iniciar essa parceria profissional com Os Trapalhões, você já acompanhava os seus filmes?
Antes desse trabalho, eu nunca tinha visto um filme dos Trapalhões.

Quais as suas principais recordações dos bastidores de filmagem com Os Trapalhões?
O trabalho no set de filmagem e tudo que envolve a produção de um longa-metragem é uma atividade que foi, para mim, sempre prazerosa e instigante, variada. Como trabalho em equipe, valoriza a integração e o inter-relacionamento, onde cada um faz a sua parte e confia no trabalho do outro, compondo no final uma obra coletiva de apuro artístico e técnico. Então, para mim, esse trabalho não era apenas um meio de sobrevivência; mas uma forma de colaborar com o meu trabalho, de participar de debates sobre o filme que estava sendo realizado, de relacionamentos de amizade e fonte de diversão e prazer. Mas é preciso afirmar que fazer cinema é um trabalho duro, que demanda um grande comprometimento de tempo e energia. O Cangaceiro foi um dos filmes mais divertidos que fiz, em especial pelas pessoas que conheci e com as quais estabeleci relações de amizade duradouras. Algumas dessas pessoas trabalhavam sempre nas produções dos Trapalhões: Del Rangel, Caíque Martins Ferreira, Paulinho Aragão, Denise Romita (na época, esposa do Paulinho Aragão), Carlinhos Rangel, entre outros. A integração com a equipe que veio do Bar Esperança e do pessoal da Globo

(Marcos Paulo e João Paulo Carvalho) foi imediata. Começamos o filme na locação de Quixadá, no Ceará, no alto verão do sertão nordestino. Algumas curiosidades, próprias de filmagem em locações como essas, merecem ser contadas. A pequena cidade de Joatama, onde foi feita a praça e a estação de trem, é, na realidade, pouco mais que um arraial. Os moradores participaram de várias formas, ora como figurantes, ora como ajudantes gerais. A filmagem virou a atração do lugar, e a população assistia à filmagem com muita curiosidade. Muito hospitaleiros, como costumam ser os nordestinos, convidavam para tomar um refresco nas suas casas e bater um papinho. O calor, no verão sertanejo, era intenso; e nós jogávamos água mineral na cabeça, para refrescar. O consumo desmedido de copinhos de água mineral pela equipe num lugar seco, onde há uma falta de água frequente, foi motivo de comentários. Os meninos juntavam os copinhos vazios. Um dia, chamaram-me para registrar em foto uma pirâmide de copinhos que ia do chão ao teto na sala/cozinha de uma das casas. A máquina de fumaça dos técnicos em efeitos especiais não funcionou direito; e eles apelaram para uma antiga técnica improvisada, queimando pó de café. O cheiro é horrível, e o consumo de café enorme. Num lugar pobre e onde o café é artigo de luxo, isso foi quase uma afronta. Um dos pontos de destaque do filme é o efeito de Didi andando nas paredes e no teto da casa da bruxa. A concepção e a realização da casa que gira, construída em estúdio, foi muito bem solucionada, tanto do ponto de vista técnico como artístico. Os figurinos concebidos para o personagem Fada Bruxa (interpretado pela Bruna Lombardi) também são muito criativos e apropriados para a característica fantasiosa da personagem. Nesse filme, a experiência do trabalho em si e o convívio com a equipe foram especialmente importantes para mim. Como acontece frequentemente, estabeleci uma relação de compartilhamento e amizade que foi muito gostosa. Foi um trabalho que deu muito prazer. Além disso, é preciso dizer que na produtora R.A. Produções os técnicos sempre foram muito respeitados no seu trabalho profissional e também muito bem tratados pessoalmente.

Você fez o still desse filme. Conte como é esse trabalho e quais as particularidades desse trabalho no cinema dos Trapalhões.
A fotografia de cena, ou still (fotografia fixa) tem o objetivo de produzir um amplo material fotográfico para a divulgação e a comercialização do filme. Tem a função de divulgar o filme na mídia e entrar nos produtos de divulgação como cartaz, folder, catálogo, flyer, convites, banners etc. Antigamente, servia também para a coleção de fotos de porta de cinema, coisa do passado. Cada produtor dá destinações próprias para esse material. As fotos também entram em extras de DVD. As cenas são clicadas da maneira mais próxima possível da imagem registrada pela câmera. Algumas vezes, em planos com movimentos em que os atores entram e saem de campo. É interessante compor as fotos, para dar um sentido de conjunto, já que alguns recortes dos movimentos acabam não fazendo sentido. Algumas vezes, valem também fotos de detalhes, com um olhar diferente. Essas opções se dão de acordo com o tipo de filme e das demandas do produtor. Além disso, são feitos registros documentais da filmagem, que servem bem para as revistas especializadas, para a divulgação e para os extras de DVD, por exemplo. É um trabalho que depende exclusivamente da sensibilidade e criatividade do fotógrafo. No caso da produtora R. A., o próprio Renato cuidava da seleção do material de divulgação. Ele dava uma grande importância a esse trabalho. Nas filmagens, estava sempre atento às fotos e me dava tempo e espaço, criando eventualmente poses especiais, quando a ação era muito rápida. Além disso, havia uma demanda extra de fotos para servirem de modelo para os desenhos do cartaz, que ficava sempre a cargo do artista gráfico Benício, famoso criador de cartazes no cinema brasileiro.

Lampião é um personagem polêmico da História. Uns o amam e outros o odeiam. Como foi trabalhar nessa linha tênue?
Os filmes dos Trapalhões são, geralmente, paródias de histórias conhecidas, que são subvertidas, transformadas, descaracterizadas e, principalmente, investidas de humor. Esse humor não é irônico, é bem ingênuo, mas tem uma função crítica, mesmo que não óbvia. No fundo, tudo serve de pretexto para as gags tipicamente circenses do Renato e dos outros três Trapalhões. O Dedé também tem origem no circo. O Zacarias e o Mussum são comediantes histriônicos. Os filmes se caracterizam por um humor bem ingênuo, com toques românticos. Uma linha bem infantil, saudável. Coisas difíceis de achar, atualmente.

Nelson Xavier e Tânia Alves parecem que nasceram para os respectivos papéis. Que tem a falar sobre eles? Seguindo a ideia de pegar carona no sucesso da literatura, cinema e televisão brasileira para compor paródias, o grupo Os Trapalhões chegou em 1983 ao mundo do cangaço. A fórmula foi tão pensada que aproveitaram até mesmo Nelson Xavier e Tânia Alves para repetir o casal Lampião e Maria Bonita, que haviam interpretado no ano anterior na minissérie da Rede Globo. Isso foi proposital?
Sim, foi. Foi uma opção bem óbvia, me parece. Reforça esse viés da paródia ainda mais. Nelson e Tânia são grandes atores. Fizeram inúmeros outros papéis bem diferentes desses. Nelson vem desde o Cinema Novo. Fez Os Fuzis. Tânia é mais jovem, mas é uma atriz versátil, canta, dança, enfim...

Conte sobre a participação da Bruna Lombardi e Regina Duarte no filme.
Penso que os papéis não dão muita oportunidade, não fornecem riqueza dramática que o ator possa aproveitar. Os filmes dos Trapalhões sempre contam com atores e estrelas, que servem para abrilhantar a produção. É o caso das duas. A Regina faz o par romântico com o Renato. A Bruna é a Fada Bruxa, está muito bonita. Chamo a atenção para o figurino e a caracterização, principalmente da bruxa, que foram muito felizes.

Um dos profissionais que trabalharam no roteiro foi Doc Comparato. Como foi trabalhar com ele?
Normalmente não tenho qualquer interação com os roteiristas, trabalho apenas no set. E, nesse caso, o roteirista não estava presente no set.

Conte um pouco sobre sua formação. E o que achou do trabalho do Mário Monteiro em O Cangaceiro Trapalhão?
Como a minha área é a imagem, gostaria de frisar que o trabalho do diretor de arte Mário Monteiro foi extraordinário. Ele foi o primeiro profissional brasileiro a adotar essa denominação, que equivale ao production designer no cinema americano. Ele assinou também a direção de arte do Bar Esperança, outro trabalho maravilhoso. O filme contou com muitos efeitos especiais para reproduzir um clima mágico próprio dos filmes infantis mais bem produzidos da época. Teve efeitos como a casa que gira, realizado no estúdio, os ovos de ouro da Pedra da Galinha... e algumas citações a filmes clássicos, idealizadas pelo Daniel, como as cenas da Bruna Lombardi na piscina que fazem referência a filmes da Esther Williams, por exemplo, quando ela emerge da água linda, maquiada, cabelo feito, com uma tiara de luzes na cabeça. Gostaria de acrescentar ainda algumas informações sobre minha vivência pessoal que conduziu uma trajetória no cinema focada na questão da imagem. Tive uma formação bastante eclética e diversificada. Fiz a graduação em Design na ESDI, que, na época, era uma escola independente e inovadora. A experiência vivida nessa escola, onde ingressei em 1968, foi extremamente rica. Foi um momento político conturbado; mas, ao mesmo tempo, extremamente profícuo e criativo do ponto de vista cultural e artístico. O regime militar estava se consolidando no Brasil e ficou mais rígido a partir de 1967; o que se via era uma situação de protestos e de repressão. Mas, paralelamente, surgiam novas propostas de representação nas artes, como forma de expressar a liberdade de pensamento. Estudantes e professores da ESDI logo aderiram a esse espírito de experimentação. O que se evidencia nesses anos entre 1968 e 1972 é a multiplicidade de temas, áreas de interesse e atividades que permeavam o nosso dia a dia, independente das propostas diretas do curso. O ambiente da escola e a atmosfera geral reinante na época favoreciam o engajamento, a simpatia pela contracultura e a participação em movimentos culturais, que englobavam as artes plásticas, a música, o teatro, o cinema, a poesia em vivências e práticas transdisciplinares e globais. Após algum tempo trabalhando com projetos gráficos, passei a exercer a fotografia como principal ofício. Pouco tempo depois, apresentou-se a possibilidade de empregar a fotografia fixa no cinema, na forma de fotografia de cena. Isso gerou um longo período de trabalho em produções de filmes de ficção, brasileiros e estrangeiros, proporcionando-me uma vivência intensa de set de filmagem. Durante trinta anos, a fotografia de still foi a minha atividade principal. Essa prática proporciona interações em maior ou menor grau com todos os integrantes da equipe. Acima de tudo, a função pressupõe um intercâmbio intenso com o diretor de fotografia. As conversas e trocas sobre as questões conceituais da fotografia (iluminação, enquadramento, movimentos, texturas, cores) com esses profissionais são constantes. Uma observação curiosa das nuances desse trabalho e as singularidades de cada profissional me levaram a refletir sobre construção das imagens que eu registrava nas minhas fotos. Comecei a investigar as referências pessoais e os significados que resultava, daquela elaboração, o que acabou tornando- se tema das minhas pesquisas acadêmicas posteriores.

Que tem para falar a respeito do racha dos Trapalhões?
Pelo que sei, não houve motivação artística ou dramática na cisão dos Trapalhões. A separação ocorreu por discordâncias em relação a dinheiro e atribuições de poder. Mas, como se viu rapidamente que essa cisão não rendeu bons frutos, eles resolveram retomar a parceria. Nunca me passou pela cabeça que eu estaria tomando partido de um lado ou de outro. E, pelo que eu saiba, nenhum outro membro da equipe pensou assim. Tenho vários amigos que participaram do filme Atrapalhando a Suate, produção dos outros três Trapalhões e que ocorreu simultaneamente a O Trapalhão na Arca de Noé, realizado pelo Renato Aragão. Isso só gerou comentários bem-humorados entre nós; e, até hoje, lembramos com risadas desse tempo. Nesse meio, somos livres colaboradores. Recebemos convites para trabalhar num determinado filme e aceitamos ou não. O filme acaba, e partimos para o próximo. Na época, havia muitas produções boas e muita oferta de trabalho para os bons profissionais.

Fale sobre o filme O Trapalhão na Arca de Noé.
No que diz respeito à imagem, houve um trabalho muito cuidadoso e elaborado do Carlos Egberto da Silveira, diretor de fotografia. Mas em alguns momentos a imagem fotográfica sofre de algumas precariedades, por conta das condições que eu mesma presenciei no set. Durante as filmagens, choveu muito. Nas locações externas em Jacarepaguá, predominava uma mata fechada; e o tempo chuvoso não favorecia uma imagem com mais contraste. Não havia quantidade suficiente de equipamento de luz para dar o realce necessário nos planos gerais. Por esse motivo, a imagem nessas sequências é bastante “empastelada”. A direção de arte não oferece a mesma unidade conceitual que marcou o anterior O Cangaceiro Trapalhão, que tinha um conceito geral de linguagem imagética que perpassa todo o filme. Mas toda a equipe técnica do filme é de alto nível: o já mencionado diretor de fotografia Carlos Egberto é um profissional renomado e realizou um trabalho bem mais elaborado do que era usual nos outros filmes dos Trapalhões. Também outros profissionais da equipe estavam entre os mais destacados da época, como Juarez Dagoberto, técnico de som, e toda a equipe da direção de arte. A direção ficou a cargo do Del Rangel, que, durante muito tempo foi o (excelente) diretor de produção dos filmes da R. A. Era sua estreia na direção, e ele se dedicou muito. Como tinha pouca experiência, estudava e preparava muito bem as decupagens. Chegava ao set sabendo bem o que iria fazer. Pelo que sei, a sua participação na elaboração do roteiro é pequena. O story-line desse, como dos outros filmes, é do Renato Aragão. Os créditos do roteiro são do Doc Comparato, do Aguinaldo Silva, mas incluem o Del. A meu ver, o filme, apesar ter seus méritos, tem algumas questões complicadas, tanto na temática como na realização. Havia, sim, uma ambição de produção hollywoodiana. Mais uma vez o filme se afasta da simplicidade, da produção despretensiosa e da narrativa ingênua dos filmes anteriores. Dessa vez, entrando na onda do politicamente correto, da temática ecológica (a proteção dos animais, no caso). São os temas que entraram em moda na época, No filme, isso acaba virando um clichê. As questões não são aprofundadas, e o assunto fica raso. Tecnicamente, a proposta de incluir um animal fictício à la Spielberg acabou resultando num desastre. O Papangu foi um fiasco. O personagem, que deveria ser um “sauro” simpático e indefeso, ficou inconsistente. Mas sofrível mesmo foi a realização técnica do bicho. A equipe responsável não tinha competência nem experiência. E a pretensão de fazer efeitos com nível de cinema americano, sem recursos nem capacidade técnica suficientes, deu um resultado lamentável. A precariedade técnica já ficou clara para todos durante a filmagem, mas não se encontrou uma solução para evitar o indisfarçável desastre. A linha narrativa básica é a mesma de todos os filmes: histórias rocambolescas, que servem como gancho para as brigas coreografadas e as palhaçadas circenses que tanto sucesso fizeram ao longo da carreira dos quatro. E o personagem do atrapalhado Didi sempre acaba compondo um par romântico pouco provável com uma bela heroína. Mas o que funcionava num esquema de dramaturgia, narrativa e produção menos pretensiosa... acabou ficando ridículo e chato.