domingo, 16 de setembro de 2012

BISTURI - Rejane K. Arruda

A Palavra na Carne ou o Fio dos Seus Olhos:
Uma Reflexão Sobre Irandhir Santos em “Febre do Rato”


Eu já tinha visto Irandhir Santos em“Olhos Azuis” (José Joffily, 2007). A intensidade com que desempenhouo papelme entusiasmou. Quando me deparo com um ator assim, intenso, pergunto-me o que latejaali, naquele engajamento. Se há algo escondido. Afinal, como pode colocar-se em uma situação que não é a sua, com palavras que não são as suas com tamanha apropriação?É sobre isto que gostaria de refletir, um pouquinho, neste texto.
Em 2004, quando filmei “Corpo” (Rewald e Foglia, 2006) com Leonardo Medeiros,escutei ele dizerque oseu personagem tinha pouca ação externa, mas muita ação interna. São termos que recheiam o cotidiano, a prática e a pesquisaem nosso campo; termosque adquirem um valor todo especial para nós, atores. Seja em referência a uma visualidade com a qual, em rememoração, sustentamos o nosso olhar (e, oculta, não se inscreve na tessitura da obra apreendida pelo espectador), seja em referência à imagem que, acústica, ecoa e provoca o corpo.Ou, ainda, a uma fala externa que, devidamente emaranhada na cena, também cumpre a função de atiçar, pinçar, o corpo.
Mas poderíamosdizer que esta divisão (interno e externo)perdeu o sentidodesde que, contemporaneamente, se abriu mão de uma imanência do sujeito. De que “interno”falamos?Desenvolvo: seria o interno do corpo? Poderia, pois temos um coração (e o termo “sangue” adquire, então, todo ovalor). No entanto, quando um ator se enche de afeto, ele o sente por todos os poros, bordas e superfícies: internas e externas. Ou, seria interno à alma? Mas há algo fora disto,se o simples ato de captura do mundo pelo olharimplica algo de próprio?
De maneira que, analisar o trabalho de um atornospermite entrar em questões que ultrapassam o nosso campoe este exercício torna-se instigante. Poderíamos dizer que pensar o ator nos abre a porta para pensara questão do sujeitoenquanto tal, apresentado no pensamento pós-Freud ou pós-Lacan como dividido pela refração do significante (e não mais imanente, não mais um ser com dentro e fora, enquanto o corpo individual está atravessado pela linguagem, estrutura que não é sem resto, resto-causa da pulsão que sentimos no corpo).
É o que Irandhir Santos parecetestemunharem “Febre do Rato”, repetindo o mesmo engajamento corporal nas palavras que havia construídoem outros filmes e especialmente em “Olhos Azuis”, quando interpreta um brasileiro barrado nos EUA.Mas em “Febre do Rato” ele vai além, porque o filme tematiza, entre outras coisas, esta relação:corpo-palavra. Ou palavra-corpo: o poeta escreve sobre a pele; os corpos são xerocados como as palavras dos livros;o verboexpelido no ar é condição primeira de vida. É como se opoeta não disfarçasse, não fizesse a menor questão de guardar para si o tecido de que é feito. No ar, ele solta-se, liberta-se, desencarrilha-se, desfia-se. Ainda no banho ou no sexo, a vertigem de tudo o que esta fala deixa de fora: um urro latejando o filme inteiro. A paixão dói, a exclusão dói, a palavra escorre. Ele experimenta o xixi (em uma ontológica cena com Nanda Costa). Não se corta, mas a exposição da pele na rua, a voz aos quatro ventos no meio das favelas, a veia solta, ele ri e ri e ri. E some.O poeta morre.
E, como espectadora,eu lamento porque ele não teve mais cuidado. Lançar-se assim aos ratos? Em um rio sujo de uma Recife suja. Seus amigos continuam sorrindo e ele cara a cara lá com os ratos. Mas, como atriz, acredito que a amarração entre palavra e gozo está escancarada nestaperformance e também na que este ator trabalhou no filme “Olhos Azuis”. Vale a pena pensar um pouco sobre o que, tal como o seu personagem poeta,Irandhirtestemunha com a entrega à vertigem de uma amarração entre palavra e corpo assim exposta diante do outro.Às palavras, às quais falta o ser, ele empresta a carne; testemunho de umcorpo sulcado pela linguagem cujos traços, na incidência da palavra de outro, se encontra. E talvez o caráter enigmático da atuação de Leonardo em “Corpo”também implique este recheio de um pensamento vazio cravado na carne. Tornamo-nos, nós atores, agenciadores de uma plasticidade que não se dá a ver, tal como o segredo ou a mentira. Ou ainda, como o artifício, artesãos que somos dos fios de nossos olhos.

Rejane K. Arruda para a BISTURI de setembro de 2012.
                                                 

Rejane K. Arruda é umaatriz catarinense, também encenadora e professora. Membro do “Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica do Ator” (CEPECA), na Universidade de São Paulo, desenvolve pesquisa de doutoramento em Artes Cênicas com apoio da FAPESP junto à criação do espetáculo “Casa”. Em cinema atuou em “Rendas no Ar” (Sandra Alves, em finalização), “Medo de Sangue” (curta de Luciano Coelho, 2011), “Corpo” (Rewald e Foglia, 2006) e “O Veneno da Madrugada” (Ruy Guerra, 2006), entre outros.