T. G.
NOVAIS, O HOMEM QUE PARECIA NÃO TER PASSADO
Rubens Francisco Lucchetti
A primeira
pessoa que me falou de Sherlock Homes foi meu pai; e só fui conhecer o detetive
criado por Arthur Conan Doyle nos meados da década de 1940, por meio das
revistas pulp Detective e Policial em Revista.
Com o passar dos anos, não me contentei em ler esporadicamente as aventuras de
Sherlock Homes. Sonhava em ter em minhas mãos um de seus livros. Porém, em
nosso país, as obras de Conan Doyle há muito estavam esgotadas; e eu, residindo
no interior, em Ribeirão Preto, não tinha condições de visitar os sebos de São
Paulo. Foi quando tive a ideia de recorrer à revista O Cruzeiro, que, na época, 1952,
vendia cerca de 210 mil exemplares semanais – eu era um de seus compradores assíduos,
apaixonado pelas reportagens de David Nasser, pelas fotos de Jean Manzon, pelas
“Garotas” (do Alceu Pena), pelo “O Amigo da Onça” (do Péricles) e pelo “O
Pif-Paf” (de Emmanuel Vão Gôgo). Um anúncio publicado em suas páginas
atingiria, no mínimo, mais de quatrocentos mil leitores, se considerarmos que
cada exemplar de uma publicação é lido por pelo menos duas pessoas. Então, sem
pensar duas vezes, redigi uma carta, em que me confessava “um ardoroso admirador de Sherlock Homes”
e informava que “estava à procura de seus livros em Português”,
e enviei-a para a seção ‘Escreve o Leitor’.
Não estava enganado quanto ao sucesso que imaginava que teria um anúncio
publicado em O Cruzeiro. Recebi mais de uma
centena de cartas, escritas por garotas sonhadoras interessadas em manter uma
correspondência sentimental ou por vigilantes da boa conduta e da moral
religiosa, que me aconselhavam a “dedicar-me à leitura de algo
proveitoso, a fim depurar o espírito, e esquecer as indignas e pecaminosas
narrativas policiais, que só servem para corromper a alma”. Mas de
concreto, com relação ao meu pedido... nada.
Algum tempo depois, quando já começava a conformar-me com o fracasso da minha
ideia, fui surpreendido com a chegada de um pacote registrado. Nele, havia três
livros de Conan Doyle: As Memórias de Sherlock
Holmes, A Volta de Sherlock Holmes
e O Cão dos Baskervilles, traduzidos
por Branca de Villa-Flor e lançados, por volta dos anos 1910 e 1920, por H.
Garnier, Livreiro-Editor, do Rio de Janeiro.
Nenhuma carta ou bilhete acompanhava os livros. Esperei alguma carta em
separado, o que não aconteceu.
Talvez um mês mais tarde, escrevi ao remetente do pacote – seu nome, T. G.
Novais, e seu endereço (na cidade do Rio de Janeiro) constavam no papel em que
foram embrulhados os livros –, agradecendo e perguntando o preço dos três
volumes gentilmente enviados. Minha carta não demorou a ser devolvida, com a
seguinte declaração: “Pessoa desconhecida no
endereço.”
Numa nevoenta e fria tarde de sábado de julho de 1952, recebi a visita de um
homem que dizia ser T. G. Novais. Devido ao frio cortante e à garoa, ele
trajava capa de chuva (de cor amarela, semelhante à de Dick Tracy) e usava
galochas. A primeira impressão que tive foi a de que era um ser saído das
páginas de um dos romances de Charles Dickens, alguém destoando completamente
de nossa época.
Confesso que não fiquei à vontade, diante daquela inesperada visita, que eu
recebia em nossa sala de jantar, uma vez que em casa não tinha sala de estar.
Quanto a T. G. Novais, parecia muito à vontade. Disse-me que trabalhava como
correspondente – na Europa e Estados Unidos – de publicações brasileiras e
argentinas (O Cruzeiro e Tit-Bits eram algumas dessas
publicações). Falou-me também que não assinava as matérias com seu verdadeiro
nome; mas não mencionou o(s) pseudônimo(s) que usava, e eu não me atrevi a
perguntar. E foi, por intermédio dele, que fiquei sabendo o verdadeiro nome de
Emmanuel Vão Gôgo: Millôr Fernandes (tenho certeza de que, na época, poucos
sabiam disso; e só muitos anos mais tarde tornou-se público que Emmanuel Vão
Gôgo era um pseudônimo de Millôr Fernandes).
Em seguida, T. G. Novais citou alguns atores e atrizes do cinema americano que
entrevistara: Lew Ayres, Linda Darnell, Alan Ladd, Maria Montez, Jon Hall, Will
Rogers, Audrey Totter, Dick Powell, Yvonne De Carlo, Ella Raines, Gail Russell,
Laird Cregar, Ralph Bellamy, Raymond Massey, Victor Jory, Basil Rathbone, Nigel
Bruce, Sidney Toler, Ray Milland, Jeanne Crain, Brenda Joyce, Gene Tierney,
Ruth Roman, Adele Mara, Esther Williams, Red Skelton, Gale Sondergaard, Barry
Fitzgerald, Bela Lugosi, Boris Karloff, Doris Day... E fez uma pausa, antes de citar
Carole Landis. E foi emocionado que ele me disse: “Entrevistei-a
poucos dias antes de sua morte. Ela estava cheia de planos e amava a vida. Por
isso, não creio que tenha se suicidado... Eu estive em sua casa, em Pacific
Palisades, e via-a morta no chão do banheiro, usando a mesma roupa que vestira
quando me dera a entrevista. Um momento que jamais esquecerei, enquanto viver...”
Fiquei surpreso ao saber que T. G. Novais conhecia diversos autores de
histórias de Detetive & Mistério e de Horror – recordo-me de que ele disse
conhecer Clark Ashton Smith, August Derleth, Steve Fisher, Dashiell Hammett,
Raymond Chandler, Richard Sale e, entre outros, Robert Bloch, todos
colaboradores de revistas pulp como Black Mask e Weird Tales – e pertencia à The
Sherlock Holmes Society of London, uma sociedade que fora fundada para estudar “a vida” e “os feitos do grande detetive inglês”.
No entanto, o que mais me deixou maravilhado foi quando falou que conversara
diversas vezes com um escritor muito especial para mim: Walter B. Gibson, autor
da maioria das aventuras de O Sombra, o primeiro herói mascarado das pulps.
Foi por intermédio de T. G. Novais que travei conhecimento com algumas pessoas
ligadas aos Quadrinhos, aos filmes de Horror e aos livros populares. Algumas
delas se tornaram muito amigas, dentre às quais, posso citar: a escritora
inglesa Isadora Highsmith, autora de uma série de romances góticos; os
escritores norte-americanos B. Becker e Mary Shelby; e o editor espanhol Edgar
Montanero. Foi com este último que mantive um maior número de correspondências;
e, como não poderia deixar de ser, muitas vezes, nas cartas que trocávamos, T.
G. Novais era o assunto principal.
Da mesma forma que eu, Edgar Montanero pouco ou nada sabia a respeito de T. G.
Novais. E ele conhecia outras pessoas que, em algum momento de suas vidas,
travaram contato com nosso misterioso amigo. Entretanto, nenhuma dessas pessoas
soube dar qualquer informação sobre T. G. Novais. Assim, não conseguimos
avançar um milímetro no mistério que envolvia nosso amigo comum. Sequer
sabíamos o significado do “T. G.”. A única
coisa que Montanero conseguiu me informar foi que T. G. Novais nascera em 1927
no Brasil.
Em janeiro de 2009, recebi uma carta de Matilde Montanero, esposa de Edgar.
Nessa carta, ela falava da morte de Edgar (ele morrera vítima de um enfarto) e
contava-me que seu marido pretendia escrever-me a fim de me avisar que soubera
do falecimento de T. G. Novais.
A última vez que T. G. Novais me visitou foi por volta de 1974, quando eu já
morava no Rio de Janeiro, na Rua Bariri, em frente à sede do Olaria Futebol
Clube. Essa visita ocorreu numa segunda-feira. Já passava das nove horas da
noite; e meu filho e eu assistíamos – pela TV Rio, Canal 13 – a um episódio do
seriado Columbo (nesse episódio, o Tenente
Columbo, da Homicídios, investigava um crime ocorrido num quartel do Exército).
De repente, a campainha de casa tocou. Fui abrir a porta de entrada e
deparei-me com a figura de T. G. Novais. Ele entrou em nossa saleta, usando uma
capa de chuva (por demais semelhante à do Columbo) e galochas, já que fazia
frio e chovia muito. Pediu uma xícara de café quente. Bebeu o café de uma só
vez. Depois, falou para minha mulher, a Tereza, deixar o bule de louça ali,
sobre a mesinha de centro. De quando em quando, ele mesmo se servia da bebida.
Foi a mais agradável de suas visitas. E, durante nossa conversa, contou-nos
muitas coisas. Falou-nos a respeito das personalidades que conhecera, dos
lugares que visitara, dizendo ser “um grande dialogador pelo
mundo”. Porém, como das outras vezes, não fez qualquer referência
sobre sua origem, seus familiares...
Quando T. G. Novais se despediu (já passava da meia-noite), nós o acompanhamos
até o portãozinho de nossa casa. A rua estava deserta. A chuva havia passado;
mas nuvens esbranquiçadas corriam baixas num céu escuro. Ele nos disse que
subiria até a Rua Leopoldina Rego e pegaria um táxi. Ficamos ali parados,
vendo-o caminhar lentamente, sem pressa. Sua imagem afastando-se está bem viva
em minha memória. Suas galochas não produziam ruído algum na calçada molhada,
onde sua sombra era projetada pela iluminação esmaecida das lâmpadas dos postes
espacejados.
Só entramos quando ele desapareceu no fim da rua. Nesse momento, um trem
passava, indo em direção aos subúrbios. Imaginarmos que deveria ser o último
trem que deixara a Estação Dom Pedro II.
Resta dizer que, por mais de cinquenta anos, T. G. Novais me enviou um
sem-número de pacotes, que, continham, entre outras coisas, livros e revistas
de meu interesse, originais de sua autoria e traduções (feitas por ele) de
histórias de Horror e de Detetive & Mistério. Entretanto, nesses pacotes
nunca veio nenhuma carta ou bilhete. Dessa maneira, eu não tenho nada que comprove
a existência de T. G. Novais... T. G. Novais, o homem que parecia não ter
passado.
Rubens
Francisco Lucchetti é ficcionista e roteirista de Cinema e Quadrinhos.