À GUISA DE INTRODUÇÃO
Marco
Aurélio Lucchetti
Tudo
começou com um telefonema.
Numa manhã de novembro de 2000, eu estava em casa, escrevendo um artigo para a
revista Comix Book Shop Magazine. De repente, o telefone tocou. Fui
atendê-lo. Era Edna Souza, secretária de redação do Estúdio Mercado Editorial –
localizado na Barra Funda, na zona oeste de São Paulo, esse estúdio produzia,
na época, aproximadamente duas mil páginas por mês para diversas editoras
paulistanas.
Com sua voz suave, Edna informou-me que Carlos Mann, o diretor superintendente do estúdio, queria conversar comigo. Fiquei esperando e, pouco depois, ouvi a voz de Carlos. Ele estava ligando a fim de dar-me os parabéns, pois acabara de ler o original do livro No Reino do Terror de R. F. Lucchetti, que eu havia organizado para sua editora, a Opera Graphica, e gostara muito de meu trabalho.
Com sua voz suave, Edna informou-me que Carlos Mann, o diretor superintendente do estúdio, queria conversar comigo. Fiquei esperando e, pouco depois, ouvi a voz de Carlos. Ele estava ligando a fim de dar-me os parabéns, pois acabara de ler o original do livro No Reino do Terror de R. F. Lucchetti, que eu havia organizado para sua editora, a Opera Graphica, e gostara muito de meu trabalho.
Confesso que suas palavras me deixaram alegre. Isso porque Carlos é exigente e
sincero. É incapaz de falar uma inverdade apenas para ser agradável a alguém. Portanto,
se estava dizendo que gostara de meu trabalho, era porque gostara realmente.
As palavras de Carlos também me trouxeram certa tranquilidade. E por uma razão
bem simples: por intermédio delas, pude comprovar que agira com total
imparcialidade ao organizar o livro, que enfoca o trabalho de meu pai como
roteirista de histórias em quadrinhos. Devo dizer que, na minha opinião, não é
tarefa das mais fáceis um filho organizar um livro que tem como tema o trabalho
de seu pai. É algo por demais incômodo, uma vez que se tem de agir com muita
frieza, para não se deixar levar pela emoção.
Agora, voltando ao telefonema de Carlos Mann... Conversamos por cerca de meia
hora. E, durante a conversa, Carlos convidou-me para organizar outro livro, que
faria parte da Coleção Opera Cult, cujo primeiro volume, Quando os
Macacos Dominavam a Terra, do jornalista Eduardo Torelli, tinha sido
recém-lançado. Disse-me também que esse livro deveria abordar tudo o que meu
pai fizera até então na área cinematográfica, deveria esgotar completamente o
assunto O CINEMA DE R. F. LUCCHETTI. Informou-me ainda que era
obrigatório o livro ter uma longa entrevista com meu pai.
A principio, assim como acontecera quando fora convidado para organizar No
Reino do Terror de R. F. Lucchetti, tive vontade de recusar o convite.
Porém, refletindo melhor, cheguei à conclusão – do mesmo modo que ocorrera da
vez anterior – de que ninguém melhor do que eu estaria em condições de realizar
o trabalho. Explico: devido aos quase quarenta anos de convivência com meu pai,
conheço, e muito bem, sua longa trajetória no Cinema, o que me possibilitava
saber quais as melhores perguntas a serem feitas na entrevista para o livro.
Falei a Carlos que aceitava o convite. Então, ele pediu-me para esperar um
instante e perguntou ao seu diretor de redação, o sempre prestativo o
extremamente competente Dario Chaves, o número de páginas que o livro teria
depois de impresso. Dario deu-lhe a informação; e, em seguida, Carlos
comunicou-me que o livro seria editado no mesmo formato de Quando os Macacos
Dominavam a Terra (21x28 cm) e teria pouco mais de duzentas páginas.
Consequentemente, meu original iria ter umas quinhentas laudas, já incluindo as
ilustrações e fotografias.
No dia seguinte, após terminar o artigo que estava escrevendo, relembrei a
conversa que tivera com Carlos e comecei a pensar no livro que ele me
encomendara. Não sabia como iniciá-lo. Repentinamente, meus olhos foram
atraídos para um grosso volume que estava sobre minha escrivaninha. Era uma
biografia do cineasta francês François Truffaut, eu a havia adquirido algumas
semanas antes. Peguei o livro e li algumas páginas ao acaso. E muito me ajudou
a leitura do seguinte trecho:
“(...) François Truffaut dá prosseguimento a um outro projeto, o de
uma longa conversa com Alfred Hitchcock, um de seus ‘mestres de Cinema’
(...). A ideia surgiu em Nova York, em abril de 1962 (...). Truffaut
fica transtornado com o profundo desconhecimento da obra de Hitchcock por parte
da crítica americana, que vê nele apenas um bom profissional, um ‘mestre do
Suspense’, cínico e sombrio, um ‘money maker’. Esta falta de
reconhecimento é que está na origem desse projeto de entrevistas (...).
Nos anos 50, Truffaut se depara na França com esta mesma incompreensão da obra
de Hitchcock. Para ele e seus colegas dos Cahiers, Rohmer, Chabrol,
Rivette e Godard, o ‘mestre do Suspense’ esconde na realidade sua
genialidade e sua inteligência por trás de uma aparência bonachona e cheia de
humor, para melhor seduzir um público um público mais amplo (...). Para
justificar esta dissimulação, Truffaut adianta uma explicação: Hitchcock é
‘o maior mentiroso do mundo’, pois é ele mesmo um personagem hitchcockiano
(...).” (1)
A leitura desse trecho ajudou-me muito. Coloquei uma folha de papel na máquina
de escrever e bati em letras maiúsculas: O CINEMA DE R. F. LUCCHETTI.
Esse seria o título do livro... do livro que abordaria, por meio de entrevistas
e artigos, a vida, a carreira e as ideias de um “dos raros roteiristas de
filmes populares, o único com carreira nos filmes tupiniquins de Terror”
(2).
Mas a leitura do trecho da biografia de Truffaut ajudou-me de que maneira? Foi
lendo esse trecho que percebi que tal qual a obra de Alfred Hitchcock o
trabalho do roteirista é incompreendido. O roteirista, entre todos os demais
técnicos cinematográficos, é o menos citado, o menos comentado, o menos notado,
o menos valorizado, o mais marginalizado. Ele é um ilustre desconhecido. No
entanto, as pessoas se esquecem de que os personagens e as cenas de uma fita
surgem primeiro na forma de palavras escritas... num roteiro. Se não existisse
o roteirista, não existiriam os filmes... e, por conseguinte, os demais
técnicos, inclusive o diretor, igualmente deixariam de existir. Assim,
compreendi a real importância de O CINEMA DE R. F. LUCCHETTI:
seria um dos únicos livros no Brasil – e também no mundo – em que o tema é um
roteirista. Um roteirista que, como Hitchcock, é “um dos maiores fantasistas
(eu poderia usar aqui o termo “mentiroso”, que foi usado por Truffaut
para qualificar Hitchcock; entretanto, acho-o ofensivo demais) do mundo”,
visto que, da mesma forma que o “mestre do Suspense”, é um personagem
criado por ele mesmo. Em suma: o roteirista R. F. Lucchetti é um personagem
lucchettiano. Explicando melhor: o homem Rubens Francisco Lucchetti, uma pessoa
tímida e afável, criou, sobretudo com a ajuda de algumas declarações de seus
amigos e parceiros José Mojica Marins (“No gênero Terror, o Lucchetti é o
roteirista perfeito.” “O Lucchetti é o gênio dos gênios.” “O Lucchetti é
um eremita que mora na região de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Vive
recluso em sua imensa biblioteca. Não recebe ninguém a não ser eu!”) e Ivan
Cardoso (“O Lucchetti é o Lovecraft de Ribeirão Preto. É o homem das mil
histórias e dos mil heterônimos. Quase todas as histórias policiais publicadas
na lendária revista X-9 foram escritas por ele.” “Infelizmente, o
Lucchetti não é valorizado o suficiente. Nenhum outro profissional possui uma
obra como a dele, que conta com mais de vinte roteiros para o Cinema. Em
qualquer outro lugar do mundo, ele seria um mito.” “Sou fã incondicional
do Lucchetti. Ele é um autor cosmopolita e universal. Dedicou-se a temas
considerados em nosso país, até pouco tempo atrás, estrangeiros ou malditos.”),
o intimidante roteirista R. F. Lucchetti. Foi pensando em tudo isso que concluí
que O CINEMA DE R. F. LUCCHETTI teria de, antes de tudo,
desvendar os segredos do criador (o Rubens Francisco Lucchetti articulista,
autor de seriados radiofônico, cinéfilo, teorizador, cineclubista, artista
plástico, desenhista, realizador de filmes experimentais, organizador de
eventos culturais, gerente de cinema, editor, correspondente de revistas
estrangeiras, pesquisador da obra de Chaplin etc.) e de seu personagem (o R. F.
Lucchetti idealizador da filosofia de Zé do Caixão e roteirista de filmes como O
Estranho Mundo de Zé do Caixão, Ritual dos Sádicos, Exorcismo
Negro, Delírios de um Anormal, O Segredo da Múmia, As Sete
Vampiras e O Escorpião Escarlate). E a principal forma de desvendar esses
segredos seria entrevistando criador/personagem.
AS
ENTREVISTAS
Foi
numa sexta-feira, 17 de novembro de 2000, que comecei a entrevistar meu pai.
Essa entrevista durou exatos cinco meses. E nela meu pai fala, entre outros
assuntos, sobre os primeiros filmes que viu quando era criança, atrizes de
Cinema do passado e do presente, as fitas que o marcaram, o produtor Val
Lewton, os artigos que escreveu a respeito da arte cinematográfica, o cineclube
que ajudou a fundar em Ribeirão Preto, os filmes experimentais que realizou com
o artista plástico e cenógrafo Bassano Vaccarini, os eventos culturais que
idealizou e organizou, seu trabalho como gerente de cinema, seu histórico
encontro com José Mojica Marins, os roteiros que escreveu para Mojica e Ivan Cardoso,
roteiros escritos e nunca filmados e o já falecido cineasta Jean Garrett.
Poucos dias depois de haver terminado de datilografar a entrevista, recebi uma
ligação do outro diretor da Opera Graphica, Franco de Rosa, a quem conheço há
quase 25 anos, desde os tempos da Press Editorial.
Durante a conversa que tivemos, Franco me disse que meu livro As Sedutoras
dos Quadrinhos, cujo original eu havia lhe remetido nos meados de 2000, não
dava para ser editado da forma que estava. Informou-me que o livro não tinha o
número de páginas desejado e incumbiu-me de escrever sobre mais algumas
personagens femininas das histórias em quadrinhos.
Para atender a incumbência do Franco, fui obrigado a deixar de lado – por algum
tempo – O CINEMA DE R. F. LUCCHETTI.
Em outubro de 2001, poucas semanas antes do lançamento dos livros As
Sedutoras dos Quadrinhos e No Reino do Terror de R. F. Lucchetti (3),
voltei a dedicar-me a O CINEMA DE R. F. LUCCHETTI. Então, fiz uma
nova entrevista com meu pai.
Essa segunda entrevista, à qual dei o título de “O Escorpião Escarlate –
De Script Radiofônico a Roteiro Cinematográfico”, aborda principalmente
a realização do roteiro do filme O Escorpião Escarlate, cujo argumento é
baseado num seriado radiofônico que meu pai escreveu para a PRA-7 Rádio Club de
Ribeirão Preto na segunda metade da década de 1950.
Concluída a entrevista, dediquei-me a organizar – também para a Opera Graphica
– o livro A Múmia – Os Melhores Quadrinhos de Horror de Julio Shimamoto
& R. F. Lucchetti.Em conseqüência disso, as duas entrevistas de O
CINEMA DE R. F. LUCCHETTI ficaram engavetadas por mais ou menos um ano.
Por volta de setembro de 2003, eu as li atentamente e constatei que havia
alguns assuntos que precisavam ser abordados. Fiz, então, uma terceira e última
entrevista.
Nessas entrevistas, entre outras coisas, meu pai fala sobre sua colaboração nas
principais revistas pulp brasileiras, os filmes do agente secreto 007, o
roteiro que escreveu para a fita Sexo e Sangue na Trilha do Tesouro, os
filmes de Horror/Terror produzidos na atualidade, adaptações de histórias em
quadrinhos para o Cinema, o trabalho do roteirista, os críticos
cinematográficos e as revistas brasileiras de Cinema
O
ROTEIRO DE O ESCORPIÃO ESCARLATE
Quando
estava datilografando a primeira entrevista, decidi que O CINEMA DE R. F.
LUCCHETTI tinha de ter um roteiro de meu pai, senão o livro não estaria
completo. Em seguida, dei uma olhada em todos os roteiros escritos por ele e
acabei escolhendo o do filme O Escorpião Escarlate, que participara de
um concurso realizado em 1987 pela extinta Embrafilme e recebera de um dos
jurados, o diretor Carlos Alberto Prates Correia (dentre os filmes dirigidos
por ele, destacam-se: Cabaré Mineiro, com Nelson Dantas e Tânia Alves; e
Noites do Sertão, inspirado numa novela de Guimarães Rosa), o seguinte
comentário:
“Se o cinema brasileiro, para levantar o moral das bilheterias, precisa de
humor e amor, ação e imaginação, de forma leve e inteligente, todos esses
elementos estão presentes no roteiro de O Escorpião Escarlate, que tem
tudo para vir a ser um filme de grande sucesso (no mínimo junto ao público
infanto-juvenil). Escrito por R. F. Lucchetti, para Ivan Cardoso-e o espírito é
o mesmo das fitas anteriores do diretor –, trata-se de uma imaginosa intriga de
história em quadrinhos assumidamente filiada ao gênero ‘comédia romântica e
de aventuras’ e desenrolada na época em que os folhetins radiofônicos
dominavam a fantasia popular. E, embora isso não fosse obrigatório, dadas as
liberdades de linguagem do Cinema, o roteiro tem razão de ambientar-se no
passado, na chamada ‘Era de Ouro do Rádio’, pois o clima de nostalgia
cobre a trama, deliberadamente ingênua, com um manto de irresistível magia. Não
há muito o que dizer. Ivan Cardoso, a meu ver, já se credenciaria ao apoio da
Embrafilme só pelo êxito excepcional de As Sete Vampiras, com seu um milhão de
espectadores. Mas, além disso, seu novo projeto tem méritos próprios
indiscutíveis, de qualquer ponto de vista. É uma deliciosa brincadeira
metalinguística feita em torno dos seriados antigos (do rádio e do Cinema), na
qual a ficção se alterna, se prolonga, se mistura com a realidade
para puro divertimento da plateia. Com uma ou duas alterações insignificantes,
o filme poderia, inclusive, ganhar censura livre, aumentando em muito o seu
mercado potencial. Recomendo sem ressalvas.”
E escolhi o roteiro de O Escorpião Escalate – bem entendido: o roteiro
original, o que participara do concurso da Embrafilme, uma vez que, a pedido de
Ivan Cardoso, foi escrito um segundo roteiro, no qual o personagem principal
deixou de ser O Morcego (uma homenagem a O Sombra) e passou a ser o Anjo, o
popular herói do rádio e das histórias em quadrinhos –, porque nele meu pai
homenageia grande parte daquilo que compõe o seu universo: as revistas pulp,
os seriados radiofônicos, as histórias de Detetive & Mistério, os filmes Noir,
os quadrinhos, os personagens mascarados da ficção, as femmes fatales...
E todas essas homenagens foram enumeradas e comentadas por meu pai em
“Homenagens e Citações no Roteiro de O Escorpião Escarlate”, que é um
apêndice do roteiro.
OS
ARTIGOS
No
final de 2002, na época em que eu ainda estava organizando o livro A Múmia,
tomei a decisão de que O CINEMA DE R. F. LUCCHETTI deveria ter,
além das entrevistas e do roteiro de O Escorpião Escarlate, alguns
artigos abordando a obra de R. F. Lucchetti e/ou o homem Rubens Francisco
Lucchetti. Entretanto, os artigos teriam de ser inéditos, isto é, escritos
especialmente para o livro. Então, contatei os dois diretores com quem meu pai
mais trabalha e com os quais mais se identifica – o sr. José Mojica Marins e
Ivan Cardoso – e alguns cineastas, professores universitários, críticos e
jornalistas que conhecem seu trabalho. E pedi a cada um deles que escrevesse um
artigo.
O resultado desses pedidos foram nove artigos (cada um enfocando um aspecto da
obra lucchettiana). E a esses artigos acrescentei um outro – “Madrugadas”, de
José Edson Gomes --, que não era inéditos; mas merecia ser incluído no livro,
por enfocar aspectos não abordados nos demais artigos.
O
CINEMA DE R. F. LUCCHETTI E ESTA EDIÇÃO DO JORNAL DO CINEMA
O
CINEMA DE R. F. LUCCHETTI foi concluído no segundo semestre de 2004 e enviado ao
Carlos Mann. Infelizmente, por razões que não interessam ser mencionadas aqui,
não foi lançado. Mas, agora, parte dele, incluindo o roteiro de O Escorpião
Escarlate, está sendo publicado junto com outros textos que não figuravam
no livro, neste número do Jornal do Cinema, uma edição comemorativa dos
setenta anos de carreira de meu pai.
NOTAS:
(1)
BAECQUE, Antoine de & TOUBIANA, Serge. François Truffaut – Uma Biografia
(François Truffaut), tradução de Clóvis Marques, Rio de Janeiro, Record,
1998, pp. 259-260.
(2) MIRANDA, Luiz Felipe. “LUCCHETTI, Rubens F. (Rubens Francisco
Lucchetti)” (verbete), in Fernão Ramos & Luiz Felipe Miranda
(organizadores), Enciclopédia do Cinema Brasileiro, São Paulo, SENAC São
Paulo, 2000, p. 343.
(3) Esses dois livros foram lançados em 24 de novembro de 2001, um sábado, na
Comix Book Shop, na Alameda Jaú, em São Paulo.