Que o processo de criação de personagens envolve um pensamento, não duvidamos. A grande questão é como uma malha de imagens acústicas é construída “entre” diretor e atores – para dar sustentação ao lançar-se no jogo que esta “rede de proteção” possibilita. No caso de Mike Leight, em seis meses de ensaios, com conversas individuais e improvisações, esta malha é criada, revista e reconstruída. Interrogado, em palestra no Berlin Internacional Film Festival (2004), sobre um momento de Segredos e Mentiras em que Blenda Blethyn lembra-se que dormiu com um negro, Mike Leight nos dá um exemplo de um procedimento com os atores:
Muito simples, eu e ela nos sentamos juntos para construir tudo o que aconteceu com Cynthia. Ela começou a beber e vivenciou vários tipos de festas e, em um determinado ponto, muito bêbada, entrou em um banheiro com um cara negro e claramente aconteceu. Tomamos a decisão que isto era vago o suficiente para ela ter esquecido e, tendo dormido com outra pessoa na época, havia pensando que era outro o pai da criança. Ela nunca viu a criança porque não quis ver e a entregou para adoção. Nós construímos a história, inventando mil e uma, milhões de coisas, sobre a sua vida inteira; esta era apenas uma.
O que me intriga é a quantidade: “mil e uma, milhões de coisas”, para que a atriz, no aqui e agora do jogo, “pince” uma alavanca - que pode, de súbito, instalar-se, na medida em que está articulada à pergunta feita pela outra atriz em cena: “porque eu, negra, não posso ser sua filha?” Não é difícil imaginar que a atriz pode escorregar pelas imagens acústicas e visuais trocadas (que podem ser atualizadas no instante da cena) - se, de fato, percorresse um caminho, uma cadeia, e esbarrasse, de repente, em uma delas (o corpo reagindo “como se tivesse lembrado, com as marcas, contorções, ritmo, pausas, espasmos que são dele). Este momento de Brenda Blethyn no filme nos causa a profunda impressão de que algo vivo foi criado “na hora”. No entanto, atriz e diretor criaram, verbalmente, o “passado da personagem” - para que o material imagético (e significante) pudesse escapulir do baú. Trata-se de algo extremamente paradoxal, como assume Leight: o espírito de improvisação é mantido (o ator em momento algum tem acesso a um escript), no entanto, há ensaio e repetição, para que se torne seguro do que fará.
Há polêmicas, questões, paradoxos, implicados, e Leight é mais um a criticar o Método, bem como o procedimento de “ilhar-se” do mundo para “viver” o personagem. Ele aponta a necessidade do ator “sair e entrar” do personagem, na medida em que o cria “em terceira pessoa”. O Método stanislavskiano talvez possa ser resumido com um “se eu fosse” (o personagem). Stanislavski pede ao ator para “colocar-se em situação” e agir “como se eu” assim estivesse. Knébel diz: “exercer o poderoso direito de atuar em nome próprio”. Em Leight inverte-se: o operador é o “ele”. Será que “ele” agiria assim? A regra “Nunca se referir a ação da personagem em primeira pessoa” é um detalhe que, a primeira vista, pode parecer insignificante. No entanto, jogar com o imaginário sobre “ele” sendo “eu” é um paradoxos e eu me pergunto de onde vem a verdade deste jogo.
Leight diz que o ator pode “entrar e sair” do “ele”. O que seria este “ele” se não uma malha de imagens acústicas que o ator cria, reconstrói e pode percorrer? Leight fala dos figurinos que deixam o ator confortável e seguro para viver “o ele”. Mas não é o figurino capaz de sustentar o estalo de uma associação e alicerçar o corpo na cadeia articulada de ações. Uma malha de imagens acústicas, uma rede de linguagem (de palavras trocadas) poderia construir um mundo para que o ator “entre” - tal como em um sistema virtual aos moldes de Matrix? O ator entra “lá” com a sua carne e sofre as cadeias desta rede (escorregando, com o organismo, pelos furos) que nunca está completa? Leight faz questão de dizer que “nunca está pronto” (nem para ele) e que o ator tem que encarar “que não sabe o que é”. E não apenas encarar, mas colocar-se a serviço de saber, de buscar, de inventar.
Mas, se a cena, depois de constituída em improvisações, é repetida e ensaiada, onde está “o não saber”? Não haveria um intervalo, entre cada ação e cada frase, que o organismo preencheria “na hora”? E, especialmente se não há o tamponamento através de uma certeza de saber, não seria a vertigem que o ator ali encontra? E não seria esta a condição para se imprimir a busca e a descoberta que se estabelece em cada passo (na cena) mesmo com as ações já definidas? O “não saber”, o “não tamponar a rede com a inteireza do imaginário”, é mais um “detalhe” do procedimento metodológico de Leight. O ator não produz a completude de uma compreensão ou o tamponamento dos furos com a interpretação de um mundo, como se este estivesse, em algum momento, pronto. Há vazio, lacuna. Há espaço para vôo cego mesmo com a rede de palavras intensamente trocadas.
Há também discussões, acertos, negociações e certezas “sobre um detalhe” – como deixa entrever outro exemplo de “Segredos e Mentiras”. Claire Rushbrook não queria voltar para a família depois da revelação de que tem uma irmã: “Roxanne não faria isto” – diz a atriz. Mas, para Leight, ela voltaria. A “resolução do problema” se deu com a introdução de um elemento: Roxanne pergunta ao namorado se ele acha que ela deve voltar. “Sim”, ele responde. E ela volta. Há coerência, sentido, lógica, no entanto, em confecção intensa, que envolve uma certeza escondida no corpo: “Ela não voltaria” (a atriz não ia ceder na negociação com o diretor). Apenas quando algo novo se enlaçou o desvio foi constituído: “E se ele falar que sim?”. “Aí sim”. Uma frase foi introduzida de maneira a tecer mais um pedacinho de simbólico. Uma palavra trocada e já era outro o trajeto da personagem; bem como do corpo enquanto encarnação fantasmática da ação da personagem (este “lugar” criado). Mais uma via na rede cravada no tempo e espaço do mundo.
Ainda há a precisão do enquadramento ao qual o ator serve. O jogo não é apenas com o universo ficcional. A rede de palavras implica também o olhar da câmera metaforizado: “Não é apenas um exercício de câmera panorâmica; o ator é como um coelho em uma gaiola que quer escapar e você vê-lo rondando” (Leight). Há linguagem por toda a parte, uma rede, que suporta o frescor e as feridas na carne exposta e, então, flagra a sua imagem (metaforizando a sua relação com ela).
Rejane Kasting Arruda para Bisturi de abril de 2012.