domingo, 27 de outubro de 2013

R.F.Lucchetti: Memória Cinematográfica


MADRUGADAS
José Edson Gomes

Certa vez, recebi de Gramado, no Rio Grande do Sul, uma carta de um amigo querido, roteirista de Cinema, que fora àquela cidade para receber um prêmio. A carta era de Rubens Francisco Lucchetti, que é o responsável pelos roteiros dos filmes de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. Mais recentemente, ele roteirizou as fitas O Segredo da Múmia e As Sete Vampiras, dirigidas por Ivan Cardoso.

Mojica e Ivan Cardoso, como o Rubens, são apaixonados pelo mistério e o terror. Mas não são apaixonados por esse terror cotidiano que persegue a Baixada Fluminense, persegue o Rio de Janeiro, persegue o país. São apaixonados pelo terror fictício (será?) que inclui múmias, duendes, vampiros.
Pois bem. Eu dizia ter recebido de Gramado, no Rio Grande do Sul, uma carta de um roteirista de Cinema, que estava ali para receber um prêmio. Cidade linda, diferente da maioria ou de todas as cidades bonitas do Brasil, Gramado poderia despertar em Rubens a admiração por tudo de belo que existe ali. E, de fato, despertou, como vim a saber em cartas posteriores e em conversas ao pé do fogão, nas diversas visitas que fiz a Ribeirão Preto, onde ele mora. Mas naquela ocasião, ele dizia:

“Acordei cedo. A cidade estava coberta por uma neblina forte, que diluía as formas, alterava os objetos. Estaria em Londres? Não sei. Londres, mesmo disfarçada pelo fog, nunca seria tão bela. E, então, sem pensar em Gramado, em Londres ou em cidade alguma, saí caminhando sem destino, um pouco à espera de encontrar duendes, descobrir o mistério que se escondia sob a névoa mas, acima de tudo, esperando que tudo de fantástico, que aquele mundo incluía, não se desfizesse. Eu precisava daquela realidade oculta sob a neblina e ao mesmo tempo sabia que o sol a diluiria.”

Qualquer pessoa mais prática – ou menos prática, para falar a verdade – pensaria no seguinte: quando a neblina se desfizesse, a cidade surgiria esplêndida. Mas essas pessoas menos práticas talvez nunca levem em conta o fato óbvio de que, surgindo a claridade, afastando-se a neblina, o que surgiria seria uma Gramado visível a todos, bela, belíssima; entretanto, sem os mistérios reservados a poucos olhos, a poucas sensibilidades, a poucas pessoas como o Rubens.

Quantos acordariam em Gramado, na manhã em que receberiam um prêmio importante, e, no lugar de comemorar procurando pessoas que o elogiassem e dissessem-lhe coisas sobre o triunfo, sairiam procurando formas que se ocultassem sob a névoa?

Isso é bom? Isso é ruim?

Eu diria que nem bom e nem ruim, mas que é disso que se forma a poesia; e, mais além, nesse tipo de sensibilidade, nessas ocasiões, nessas descobertas raras se ocultam as molas básicas que fazem girar o mundo ou, modificando a frase, o conceito, tornam o mundo ideal para viver, para ser observado e sentido.

Quem sabe se todos nós não caminhamos dia a dia levando na alma o desejo de encontrar alguma coisa diferente que surja da realidade e nos emocione?
O Rubens achou.

Este texto foi escrito no Rio de Janeiro, em junho de 1991.

José Edson Gomes é escritor de temática social e jornalista. Escreveu, entre outras coisas, os livros de contos As Sementes de Deus, Os Ossos Rotulados e O Ovo no Teto, as novelas A Roda Partida e Agonia no Natal, o romance O Jogo da Asa da Bruxa e a peça teatral Os Usos do Homem. Colaborou em diversos jornais brasileiros, entre os quais O Globo, do Rio de Janeiro.