Neila
Tavares
Atriz
Você
atuou no filme Bonga, O Vagabundo. Como
e por quem recebeu o convite para atuar nesse filme? Como foi a experiência?
Não
tenho hoje uma lembrança muito clara. Mas eu protagonizava uma novela na
extinta TV Tupi, Enquanto Houver Estrelas.
Acredito que tenha sido por esse caminho.
Bonga,
O Vagabundo é
de 1971 e estrelado apenas por Renato Aragão. Quais as suas lembranças dessa
fase pré-Trapalhões?
Renato
sempre foi competentíssimo, afetuoso, engraçado, romântico, decente... Talvez
seja esse o carisma do Didi. Didi é o Renato.
Renato
Aragão já sinalizava, naquela época, a intenção de formar um quarteto?
Bem,
antes do quarteto, foi a dupla Didi e Dedé, né? Não sei se já pensava nisso. E
a verdade é que em filmagem, no ritmo em que Victor Lima filmava, não se tinha
muito tempo de conversar, trocar ideias... Mas o que posso dizer é que no segundo
filme que fiz com Renato, Ali Babá e os
Quarenta Ladrões, já era a dupla Didi e Dedé.
Bonga foi dirigido
por Victor Lima, um dos mais experientes diretores com quem você já trabalhou e
que, nas suas palavras, foi também o artista que influenciou toda a sua vida.
Gostaria que falasse sobre ele.
Victor
Lima era um mestre. Dirigiu mais de cem filmes e tinha um domínio absoluto de
seu ofício. Nunca se irritava, nunca perdia o humor... dirigia brincando,
filmava com uma rapidez impressionante e uma competência de tirar o chapéu. Não
fazia mistério, não fazia pose de diretor... E o respeito da equipe por ele era
absoluto. Victor Lma fazia um plano de filmagem que parecia impossível de ser cumprido.
Com cinquenta tomadas num dia, e ainda com cenas de ação. Tudo acontecia na
hora certa, sem espera. Era um plano perfeito, com opções de interior e
exterior (caso a luz do dia não fosse boa para exterior). A luz era montada no
tempo certo, chegavam os atores; e as coisas aconteciam, sem as esperas de hoje.
Diz-se agora que, para o ator, o cinema é a “arte
da espera”. E, muitas vezes, quando acabávamos,
ainda havia luz.
Poucos
conhecem a história e trajetória de Victor Lima. Na sua opinião, qual a razão
disso?
Talvez
porque fizesse filmes comerciais, para grandes plateias. Era o que gostava e o
que queria. Não se arvorava de grande artista, não tinha pretensão nenhuma de
fazer “filme de arte”.
Só queria fazer benfeito o que fazia. Era um contador de histórias. Em Ali Babá, além de fazer o
primeiro papel, eu também fui assistente de direção. E ali é que eu tive a
oportunidade de aprender mais sobre cinema que em todo o resto da minha vida.
Aprender com Victor Lima. As equipes eram muito pequenas naquele tempo. Só havia
um assistente de direção, que muitas vezes se encarregava também da continuidade
de cena, como foi nesse caso. Não havia os diretores de arte, os foquistas, os
preparadores, essas centenas de especialidades... Então, trabalhamos muito
estreitamente.
Victor
foi o primeiro diretor do Renato. A escolha foi do Renato? Como se deu esse
convite?
Não
sei responder a isso. Quando cheguei, Renato e Victor já estavam fechados nessa
parceria. Já vinham trabalhando há meses no projeto do filme, no roteiro.
Bonga, o Vagabundo foi
filmado onde?
No
Rio de Janeiro. Muitas locações. Mas todo no Rio.
Lembra
em qual bairro? Região?
Se
não me falha a memória (ela já falha com facilidade), entre São Conrado e Barra
da Tijuca (RJ). Pelo menos, minha parte foi filmada por ali.
Como
foi a sua participação no filme? Como compôs a sua personagem?
Com
Victor Lima, as coisas eram muito simples: ele passava o que queria do ator,
explicava a cena, fazia um ou dois ensaios e, pronto, ação. Na maioria das vezes,
valia de primeira, a não ser nas cenas mais complicadas, com muita gente e
muita ação.
Quais
as lembranças de bastidores do filme? Como foi o seu contato com Renato Aragão?
Renato
brincava o tempo todo com a equipe, com a direção, com os outros atores... Victor
Lima também tinha muito humor e entrava na brincadeira. A equipe se
divertia muito, na filmagem, nas pausas para almoço ou na volta pra casa. O tempo
todo. Trabalhávamos brincando. Renato é generoso, gentil e muito, muito
amoroso.
Esse
filme foi realmente inspirado no vagabundo Carlitos, de Charles Chaplin?
Com
certeza. Por isso, falei antes do romantismo de Renato. Bonga foi criado para ser um
tanto romântico, ter um apelo afetivo, emocionante, sem prejuízo da comédia. Renato
queria, na época, que Bonga fosse um personagem recorrente: as mesmas
características, sempre com aquela roupa, em diferentes filmes etc...
Inspirava- se, sim, em Chaplin, conscientemente e disso falou muitas vezes na
filmagem.
Que
ele falava exatamente?
Trabalhava-se
intensamente e conversava pouco, só no almoço ou lanche. Mas ouvi de Renato isso,
que o Bonga era um primeiro movimento de um personagem para o qual tinha um
projeto maior, de mais filmes, e que sua inspiração era Chaplin.
Renato,
muitos anos depois voltou a usar o apelido Bonga em seu programa semanal na
Rede Globo, no quadro “Vila Vintém”, dado o seu apreço pelo personagem. Recorda-se?
Vagamente.
Na época, eu trabalhava muito e pouco via televisão.
Um
anos depois, em 1972, você volta a repetir a parceria com Renato Aragão e Victor
Lima, como surgiu o segundo convite para trabalhar. Dessa vez em Ali Babá e os Quarenta Ladrões?
Consequência
de meu trabalho no Bonga.
Renato
gostava de trabalhar com amigos. É isso?
Não.
Eu não fiquei amiga de Renato. Eu tenho certeza de que nos identificamos, que
tivemos uma grande empatia... E poderíamos ter sido grandes amigos, com certeza.
Se fôssemos amigos, seríamos dos grandes. Mas em nossa profissão é assim:
convivemos com um grupo naquele filme, naquela peça. Aí, termina; vamos fazer
cada um outro trabalho, com outras pessoas com às quais agora conviveremos. Às
vezes, nunca mais voltamos a encontrar aquele ator ou diretor ou fotógrafo; ou
talvez o reencontre imediatamente amanhã em outro trabalho, ou daqui a cinco
anos... Nunca mais vi Renato ou Dedé ou Victor Lima Só lembro de ter ido uma
única vez à casa de Renato, durante um desses processos. E, quando soube da
morte de Victor Lima eu só pensava: “Puxa, eu
gostaria de terlhe dado
ainda pelo menos mais um abraço.” Nem sei
se foi Renato ou Victor quem lembrou meu nome para o Ali Babá.
Esse
filme já conta com a participação de Dedé Santana. Quais as mudanças que ocorreram
com a chegada dele?
Poucas.
Didi já não era Bonga, era Didi. Não era mais o vagabundo, mas tinha o mesmo
clima de uma história de amor; ele sempre se dando mal no final, mas sem perder
a graça.
Quais
as semelhanças e diferenças que você encontrou entre Renato e Dedé?
O
trabalho era intenso no filme em que eu era atriz principal, assistente de
direção, fazendo continuidade de cena. Foi minha primeira e única assistência
de direção. Oportunidade que o velho Victor Lima deu a uma jovem atriz com sede
de aprender cinema... Eu só posso falar então disto: de Renato e Dedé em
trabalho. Um trabalho de muita harmonia. Renato sempre teve a liderança, é
natural dele, e os grupos de trabalho precisam ter um líder, alguém que toque,
que faça, que resolva, que decida, que levante a bola, que levante o moral da
turma quando este fica baixo. Mas ele é tão vocacionado para a liderança que
fazia isso sem imposição, sem atritos, uma liderança de parceiro mesmo. Ele é
parceiro de verdade dos que trabalham com ele. Dedé e Didi são dois clowns. E as boas duplas de clown são aquelas: em que os clowns têm temperamentos diferentes
e às vezes antagônicos; e as que têm um clown dominante
e um clown “escada”, que é o que prepara
a piada que será finalizada pelo outro. Dedé sempre foi “escada”, por natureza, por
temperamento, por registro de ator (atores têm registro, assim como na ópera há
tenores, baixos, e papéis para cada um)... É ali, nesse lugar, que Dedé é
inigualável, magnífico, essa figura histórica... Mas, nas duplas de clown, o “escada” não é, como às vezes
se pensa, menor que o clown dominante.
E o dominante não sabe ser “escada”,
que é um trabalho muito especial e específico, que exige técnica, precisão,
atenção, carisma... O clown dominante
depende do “escada”
para que sua graça funcione; e o outro, dele. Esse era o jogo que vi dos dois. Como
dois trapezistas, não há um mais importante que outro. Renato sempre foi o clown dominante na dupla,
além de líder; e Dedé, o “escada”.
Renato
e Dedé sempre estavam em sintonia, formando uma parceria ideal. Você concorda
com isso?
O
que pude ver é que Renato tinha muito prazer em trabalhar com Dedé. Uma cumplicidade
cênica muito grande. Parceirões, os dois. Um jogo que chegava a ser
emocionante, para quem olhava de fora. Combinavam a cena e lá iam eles.
Eles
não obedeciam muito o roteiro?
Sim
e não. Os dois entravam no set com
o texto na ponta da língua, prontos para filmar, na hora certa, e de bom humor
às seis ou sete da manhã. Então, ensaiavam. Na hora da cena ou entre uma e outra,
um chamava o outro num canto com uma ideia para a cena. Acertavam, levavam a proposta
para Victor, o terceiro parceiro no caso, que sempre se divertia muito com o
que os dois traziam. O Victor também era conhecido pelo seu refinadíssimo
humor... Victor fazia mais algumas sugestões, encontrava a solução cinematográfica
e chamava Antônio Gonçalves, diretor de fotografia, que também sugeria outras
coisas e, rapidamente e divertidamente, ajustava câmera e luz... e filmava-se.
Com respeito ao roteiro e sem atrapalhar o plano de filmagem. Tudo muito
rápido. Era um trabalho de equipe, em que todos tinham espaço para inventar,
sugerir.
Renato
costumava parodiar filmes estrangeiros de sucesso ou adaptar clássicos da
literatura. Em Ali Babá,
ele usa esse artifício. Que acha dessa diretriz que ele seguiu em seu cinema?
Acho
bacana. É uma linha que me agrada, essa de trabalhar sobre mitos, sobre histórias
que já estão no inconsciente do público.
Renato
Aragão tem fama de ser perfeccionista. Isso procede? Ele acompanha tudo? Ele
participava da escolha do elenco?
Sim,
perfeccionista demais. Ele gosta de precisão no que faz. Brinca. Brinca; mas é
um profissional seríssimo, preocupado em dar o melhor de si, trabalhando junto
com a direção. Nunca o vi fazer uma imposição, mas sim colaborar, de forma
muito atenta, muito participativa no filme inteiro
Como
foi a sua participação no filme. Como compôs a sua personagem?
No Ali Babá era
engraçado: eu sentava na cadeira de rodas, fazia a cena, depois corria para
anotar a continuidade, reunir os atores no set
de filmagem, discutir com Victor as
necessidades da próxima cena a ser filmada e de novo sentava na cadeira e
voltava à trapezista como atriz...
Em
Ali Babá,
Wilson Grey fez uma pequena participação. Que tem para falar sobre ele nesse
filme, em especial?
Bom,
Wilson Grey era tudo aquilo que a gente sabe. Um ator especialíssimo. Trabalhei
com ele também no teatro, em A
Falecida, de Nelson Rdrigues. Era igualzinho dentro
e fora de cena. Era um ator único, uma graça. Chegava já com sua roupa de
filmar. O figurino era dele, pessoal; não gostava da interferência do
figurinista. Nunca mais o cinema produzirá nada parecido.
Por
que, na sua visão, os críticos e a Academia rejeitam os filmes produzidos e estrelados
pelos Trapalhões?
Acho
que isso está mudando. Já fui procurada por pessoas que faziam teses de pós-graduação
sobre Os Trapalhoes.
Um preconceito que havia com o cinema de grandes plateias, assim como havia no
cinema e no teatro o preconceito com a televisão.
Como
classifica o cinema feito pelos Trapalhões?
Eu
tenho o maior orgulho de ter participado dessa história. Comercial? Ótimo. Precisamos
fazer a formação de plateias, de criar o hábito de ir ao cinema, de ver filmes
nacionais... Um cinema feito para grandes plateias, feito com a maior competência,
o melhor acabamento... e muito brasileiro.
Gostaria
que falasse o que aconteceu para que você e Victor Lima não trabalhassem mais
com Os Trapalhões no
cinema. J. B. Tanko iniciou, então, uma longa parceria com Os Trapalhões; e
você não atuou mais com eles...
Eu
nunca mais encontrei Victor Lima, nem Renato (nunca mais nos cruzamos) e por
isso não sei lhe dizer. Tanko trabalhava numa linha semelhante à de Victor, e
era tão competente quanto... E acho que, para Renato e Os Trapalhões, o melhor mesmo
era mudar de atores e de direção, variar, respirar outros ares, explorar outros
talentos... Mas, se um dia Renato me chamar outra vez, largo o que estiver
fazendo e vou correndo.
Que
representa para uma atriz trabalhar em um filme dos Trapalhões?
Olha,
eu gostei tanto daquilo tudo! O clima era tão bom, era tudo tão direito,
tão limpo, tão fluente! Eu já tinha
feito coisas com diretores de Cinema de Arte, se
se pode mesmo separar um cinema do outro... E as coisas eram arrastadas, a
criação era meio torturada, sofria-se
muito naquela época. Bom ator, bom intelectual,
bom diretor devia ser sofrido... Coisas
da época. E apendi ali que nossa profissão
é lúdica e que, quanto mais você se divertir fazendo, melhor fica o trabalho.
Para mim, essa é uma página bacana de
minha biografia. Meu olhar, de hoje,
é amoroso, grato.. e mais não sei. Se
sabíamos que fazíamos um filme histórico? Eu não tinha a menor ideia. E, até
hoje, apesar de toda a minha experiência,
quando faço um trabalho, nunca sei se ele
vai morrer ou ficar. Talvez Renato, que é um visionário, tivesse; não sei.