O
DENOMINADOR (IN)COMUM DO CINEMA
Bernardo Vorobow
Se
o Cinema é a Sétima Arte – por codificar as artes anteriores e por anunciar as
outras que viriam a seguir, como os Quadrinhos –, Rubens Francisco Lucchetti é
um dos (últimos) sétimos artesões mais inquietos ainda em atuação no Brasil.
Isso porque seu campo principal de lavor é (aparentemente) a Literatura, mas
cujo solo solitário e fértil estende-se por outras terras da comunicação (sim,
de massa).
Homem de Cinema, ele dedicou-se também ao rádio [ Grande Teatro de Aventuras e Grande Teatro A-7 (PRA-7
Rádio Club, Ribeirão Preto, 1956-1958)] e à televisão [Quem Foi? (TV Tupi,
Ribeirão Preto, 1961), Além,
Muito Além do Além (TV Bandeirantes, São Paulo, 1967-1968) e O Estranho Mundo de Zé do Caixão
(Tupi, São Paulo, 1968)].
Paralelamente à devoção apaixonada, o que parece mover Lucchetti em sua
incursão pelas narrativas visuais – dizia o pintor Paul Klee: “a arte não reproduz o visível, ela
torna visível” – é um espírito crítico intuitivo. Não satisfeito
com o abundante “fazer”,
ele escreveu textos quase metalinguísticos, publicados em jornais e revistas,
dos quais podemos citar como exemplo a história em quadrinhos “Como se Faz uma
Estória de Terror”.
Outro exemplo são os diários que ele acalenta há anos e permanecem inéditos,
com reflexões e anotações variadas. Seu livro Carlitos o Mito Através da Imagem (1987) não
deixa de seguir Ezra Pound na esfera crítica: às variações iconográficas
desenhadas por ele, coligiu citações de Otto Maria Carpeaux, Alberto
Cavalcanti, Jean Cocteau, Georges Sadoul, Carlos Heitor Cony, Eisenstein,
Blaise Cendrars, Buster Keaton, Max Linder, André Gide, Fernand Léger, Jean
Mitry, Maiakóvski, Luigi Chiarini, entre outros. E há outros índices de tal
ímpeto.
Outro empenho crítico foi a atividade cineblubística, que contribuiu para a
(in)formação de plateias do interior de São Paulo. Entre os eventos e as
mostras de filmes que realizou, constam: Semana
Chapliniana (1960), Festival
Introdução ao Cinema Francês (1960), Festival do Cinema de Animação (Museu de Arte
Moderna de São Paulo, 1962), Festival
Sherlock Holmes (1965), I
Festival Internacional do Cinema de Animação (VIII Bienal de São
Paulo, 1965).
Duas palestras no Centro Médico de Ribeirão Preto iriam mudar completamente o
curso da vida de Lucchetti. A primeira delas, proferida por Paulo Emílio Sales
Gomes (na época, conservador da Cinemateca Brasileira), aconteceu em 28 de
agosto de 1959 e lançou a pedra fundamental do Clube de Cinema de Ribeirão
Preto, que teve Lucchetti como um de seus principais animadores. A segunda,
tendo como conferencista Carlos Vieira, diretor do Centro dos Cineclubes do
Estado de São Paulo, ocorreu em 25 de junho de 1960, quando foram exibidos
alguns filmes de Arte, entre os quais três do canadense Norman McLaren, um dos
mais famosos e respeitados realizadores de filmes experimentais de Animação.
A descoberta dos filmes de McLaren levou Lucchetti a querer fazer filmes como
as abstrações pintadas diretamente sobre a película e as animações quadro a
quadro. Então, Lucchetti se uniu a Bassano Vaccarini (artista plástico,
cenógrafo e um dos fundadores do TBC); e juntos fundaram o Centro Experimental
de Cinema (CEC), liigado à Escola de Artes Plásticas de Ribeirão Preto.
Lucchetti e Vaccarini atuaram de modo independente, sem qualquer subsídio
oficial.
As dificuldades financeiras eram cobertas pela loja de autopeças de Lucchetti,
levada à falência pelo capital investido nos filmes. Usavam um laboratório no
Panamá, o que acarretava longa espera na volta do material 16 mm revelado. O
trabalho da dupla foi destaque em três páginas da revista lisboeta Filme (número 42, setembro
de 1962) e na Primeira
Exposição Documental de Cinema de Animação de Lisboa.
Entre 1960 e 1962, Lucchetti e Vaccarini realizaram quatorze filmes
experimentais de Animação: Abstrações
– Estudos 1, 2, 3 e 4 (1960), Fantasmagorias
(1960, inacabado), Estudo
5 (1960-1961), Cosmos
(1961), Tourbillon
(1961), A Sombra
(1961, inacabado), Vôo
Cósmico (1962), Rinocerontes
(1961), Viagem à Lua
(1961), Catedralle
(1961), Arabescos (1962),
Variações Sobre um Tema de
Miró (1962), Painel
Abstrato (1962) e Planificação
(1962, inacabado).
A experiência com a animação abstrata precedeu a experiência que talvez tenha
marcado de modo mais evidente a obra de Lucchetti. A partir de 1967, ele
começou a se lançar nos roteiros de filmes de Horror. Na lista extensa,
aparecem Trilogia de Terror (1968,
episódio “Pesadelo Macabro”; direção de José Mojica Marins), O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1968,
direção de José Mojica Marins), Ritual
dos Sádicos (1969, liberado pela Censura em 1983 e rebatizado com o
título de O Despertar da
Besta; direção José Mojica Marins), Finis Hominis (1971, direção de José Mojica
Marins), Exorcismo Negro (1974,
direção de José Mojica Marins), Inferno
Carnal (1976, direção de José Mojica Marins), Delírios de um Anormal (1978,
direção de José Mojica Marins), O
Segredo da Múmia (1982, direção de Ivan Cardoso), As Sete Vampiras (1986,
direção de Ivan Cardoso) e, entre outros, O
Escorpião Escarlate (1989, direção de Ivan Cardoso), além de
inúmeros roteiros escritos para Mojica e jamais filmados.
Nessa mesma época de efervescência de roteiros, Lucchetti criou várias
publicações, sempre conjugando palavras e imagens. Foram revistas policiais pulp como Série Negra (1969) e Mistérios (1970); revistas
de histórias em quadrinhos como A
Cripta (1968-1969), O
Estranho Mundo de Zé do Caixão (1969) e Fantastykon Panorama do Irreal (1972); e
livros em quadrinhos como O
Filho de Satã (1970), Carne
Fresca para a Mesa (1970) e Os
Vampiros Não Praticam o Sexo (1970). De 1968 a 1971, escreveu
roteiros de fotonovelas para revistas femininas. E, em 1970, organizou o
catálogo da seção brasileira do Congresso Internacional de História em
Quadrinhos (Museu de Arte de São Paulo).
Um ano antes de José Mojica Marins lançar o Zé do Caixão em À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964)
– Lucchetti viria a colaborar com Mojica na definição do perfil deste personagem
a partir do filme O Estranho
Mundo de Zé do Caixão –, a Editora Outubro lançava Noite Diabólica, antologia
de contos de Lucchetti, considerado “o
primeiro livro de Terror escrito no Brasil” (Rudolf Piper, O Grande Livro do Terror!,
São Paulo, Argos, 1978, p. 38).
O próprio Lucchetti comenta a gênese do livro (e não deixa de ser curioso, se
pensarmos que o livro foi editado mais ou menos na mesma época em que Mojica
gestava Zé do Caixão): “As
minhas primeiras histórias em quadrinhos não foram escritas como tal. Eu
desconhecia inteiramente a técnica da roteirização. Assim, imaginei-as como
argumentos e mandei-as, num dia qualquer de 1962, para a Editora Outubro
(alguns anos depois, ela passaria a se chamar Editora Taika), a fim de serem
apreciadas pelos seus diretores. Esperava que, caso aprovados, os argumentos
fossem adaptados por Hélio Porto, então o principal roteirista da editora, e
quadrinizados por Nico Rosso, a quem eu considerava um dos mestres dos
Quadrinhos (...). Fiquei
aguardando ansioso por uma resposta, enquanto ia comprando todos os meses a
revista Seleções de Terror,
na qual eram publicadas as histórias em quadrinhos do Drácula, valorizadas
pelos desenhos do Nico. Sonhava encontrar num dos números, como complemento,
uma das minhas histórias. Passaram-se os meses. Nem carta, nem história
quadrinizada. A frustração começou a apoderar-se de mim. Em outubro de 1963,
quando já estava quase conformado, fui surpreendido com o primeiro
pocket book da
Série de Terror da coleção
Super Bolso, da Editora
Outubro. Nesse pequeno volume de 149 páginas, intitulado Noite
Diabólica, estavam
publicados dezoito argumentos e uma poesia que eu havia enviado à editora. Na
quarta capa, os editores prometiam: ‘Nesta coleção desfilarão os
maiores nomes da literatura de Terror e Mistério.’ Eu achava que aqueles histórias não eram indicadas para
figurar num livro que dava início a uma coleção que prometia tanto. Eram apenas
argumentos. Mais tarde, fiquei sabendo que Hélio Porto gostara tanto dos meus
textos que resolvera publicá-los como eu os havia escrito. Entretanto, se eu
não ficara satisfeito com a forma com que esses textos foram aproveitados, fui
recompensado com a capa e as ilustrações do livro. Elas foram feitas por um
mestre na arte do Desenho: Jayme Cortez, que era um dos diretores da Outubro”
(No Reino do Terror de R. F.
Lucchetti, Vinhedo, Opera Graphica, 2001, pp. 11-12).
Em 1966, logo após mudar-se para São Paulo, Lucchetti tornou-se um prolífico
roteirista de histórias em quadrinhos de Horror.
O FEITO SUSPENSE
A revista Suspense,
cujos contos eram selecionados por Alfred Hitchcock, publicou em um de seus
números, o 67, a história “Em Pleno Espetáculo”, escrita por Lucchetti. Foi um
feito inédito para um escritor brasileiro; e Lucchetti, que, na época, estava
com aproximadamente trinta anos, viu-se abençoado pelo mestre do Cinema e dos
gêneros de Mistério e Horror que tanto cultuava. Talvez como ninguém nos
domínios da indústria dos mass
media, Hitchcock soube explorar os mecanismos de medo e desejo, da
tensão entre ausência e presença (ou entre mostrar e esconder), que geram o
suspense e fizeram do gênero um modelo protomatriz das emoções em multimídia.
Podemos ler nesse feito uma súmula não só da sina de Lucchetti com relação à
falta de reconhecimento por sua obra (um exemplo disso é a ingratidão de
Ribeirão Preto, a cidade adotada, que até na hora de um documentário-homenagem
se furtou a retribuir com pouco o muito que Lucchetti lhe deu, perdendo – ou
furtando? – o projeto original que os produtores enviaram à Secretaria
Municipal da Cultura; curiosamente, Carlos Reichenbach escreveu após ver o
filme: “Tenho a impressão de
que Adriano vai pagar (mais uma vez) o preço da exuberância de seu talento.”).
O feito Suspense também
concentra a imantação que o Cinema exerceu sobre os outros modos de comunicação
cultivados por Lucchetti.
LUCCHETTI, UM
ESCRITOR VISUAL
Uma das virtudes de Lucchetti é seu desprendimento (outra é a paciência). A
renúncia a uma vida confortável levou-o ao caminho dos sonhos que só podem ser
compartilhados no ambiente escuro e coletivo da projeção de cinema. Ou, em
última análise, acalentados no mais recôndito da própria imaginação, aquela que
se recusa – como enunciou Giotto – a se deixar registrar, por acreditar que não
vale a pena sua apresentação após sua concepção (para que trazer ao mundo real,
se a coisa já existe no mundo da imaginação?).
Uma escrita que lida com substantivos e com a transubstanciação de inefáveis
sentimentos em vocábulos quase palpáveis acaba mexendo com forças estranhas ou
sobrenaturais [Lucchetti gosta de colecionar casos reais incríveis acontecidos
com ele e que competem (em “além
da realidade”) com suas ficções]. E, quando estas penetram a rotina
da circulação das mercadorias ditas culturais, é natural que ocorra um
curto-circuito... e que esses modos de narrar sejam alijados por serem
incompatíveis com as demandas “modernas”
e sejam deslocados para as franjas da memória irremediável.
Se o homem é a medida de todas as coisas (numa visão pós-renascentista e
pré-panteísta), o Cinema para o homem Lucchetti é o denominador comum de suas
experiências, a tábula rasa e o plano de vôo (além de campo de pouso) de seus
projetos. O Cinema parece coagular as ambições mais caras de Lucchetti, agenciando
os dotes da Literatura e dos Quadrinhos, justamente por colocá-los em movimento
e por materializar a palavra (ou as idéias) em imagem.
Lucchetti é um escritor – ou ficcionista, como ele mesmo prefere se
autodenominar, em um de seus múltiplos autorretratos e auto-heterônimos em
raios X – visual. E o Cinema é o canal privilegiado que ele parece ter
escolhido (mesmo que involuntariamente) para tornar o imaginário em
representável.
Este
texto foi escrito em São Paulo, em fevereiro de 2003
Bernardo
Vorobow (1946-2009) foi programador cultural. Criou e dirigiu o setor de Cinema
do Museu da Imagem e do Som (MIS) de São Paulo e o departamento de programação
da Cinemateca Brasileira. Foi programador de filmes do Museu de Arte
Contemporânea (MAC) de São Paulo e diretor técnico e de programação da
Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC). Realizou os filmes Depois da Lua (Obrigado, Chacrinha), Minha Escola (censurado e inacabado), O
Discurso e Cinema
Paulista – Ovo de Codorna.
Com Carlos Adriano, escreveu o livro Peter Kubelka: A Essência do
Cinema e organizou Cinepoética, uma antologia de textos sobre o
cineasta Julio Bressane. É co-produtor e co-roteirista do
documentário-homenagem O Papa da Pulp: R. F. Lucchetti – Faces e
Disfarces.