Naturalismo e Vertigem em “A Separação” de Asghar Farhadi
“A Separação”, de Asghar Farhadi, vencedor do Globo de Ouro de 2012 e indicado ao Oscar de roteiro, tem início com os atores olhando em direção à câmera posicionada no lugar do juiz. O juiz decide que a mulher (Leila Hatami) que está deixando o marido (Peyman Moadi) não poderá levar a filha do casal de doze anos (Sarina Farhadi) para viver com ela no exterior. Na discussão acalorada, as falas se sobrepõem e parecem de improviso.
O foco desta coluna é o ator dentro do filme. No entanto, cada vez mais meu interesse se desloca para o filme onde o ator está inscrito. Um roteiro como o de “A Separação”, com conflitos de posições muito diferentes (construídas no desenrolar do filme) oferece ao ator material bastante concreto: uma espécie de significante que o seu personagem representa. Se há o enlaçamento emocional com esta posição, se o ator se enlaça a materiais verbais e visuais que esta posição implica (engendrando deslocamentos a partir deste significante), pode imprimir o “viver”. Trata-se da clássica demanda: “não são atores, mas pessoas”. Alguns diretores não querem imprimir a visualidade de uma situação de representação, mas de uma pessoa inscrita no cotidiano mimético. É como se a visualidade do contexto do ator (que representa) ofuscasse a visualidade da mimese de um cotidiano familiar.
A atuação naturalista é neste filme expressa especialmente por uma criança, cujas imprecisões e ambiguidades são bastante destacadas na mise-en-scene. A menina é filha da mulher (Serah Bayat) contratada para ajudar o personagem de Peyman Moadi a cuidar da casa quando sua esposa vai embora. Em certo momento, a menina está limpando as mãos, sujas de lixo, no vestido. A câmera captura a sua imagem quase de costas, meio de esguelho. A imagem da menina imprime balbucio, dúvida e escolha momentânea, ar de improviso, certa imprecisão e delicadeza (tal como a câmera, dançando um bocadinho). Como se a ação de limpar tivesse surgido naquele instante graças à determinação do significante anterior: “sujou a mão”. Aparece o sentido de um enlaçamento linear que, de repente, o diretor corta. Primeiramente, para uma coisa bastante óbvia (cuja elipse precipita): a mãe dando-lhe uma bronca. A ação é bastante simples, mas a maneira de filma-la implica fascínio. A ação seguinte segue a lógica linear: a mãe limpa o lixo no lugar da criança. Mas vem o corte (e aqui é a narrativa que nos sobressalta): “o velho pai” sumiu.
Ali-Asghar Shahbazi interpreta um velho doente que precisa de cuidados. É por causa dele que o personagem de Peyman Moadi não pode deixar o país. Com delicadeza, o filme tematiza as proibições sobre as mulheres, quando a empregada faz uma consulta por telefone para saber se, pela sua religião, deve ou não limpar o senhor que urinou nas calças. Quando é o personagem de Peyman Moadi que precisa ver as pernas do seu pai, ele pede para a sua filha adolescente sair do quarto. Como o velho continua imóvel, Peyman Moadi fecha a porta, bloqueando o nosso olhar (do espectador). Parece haver uma linha narrativa que abarca também a relação com o espectador. O olhar da câmera se denuncia com ângulos enviesados, os planos encobertos – estabelecendo a visualidade de uma relação com o que filma, enquanto o ator deve disfarçar (esconder) a visualidade da representação para se entregar como objeto, inscrito no cotidiano que ela captura. Há uma mise-en-scene, onde o ator está inscrito, que implica um discurso como efeito – e que necessita da sua “naturalidade” (digamos assim, mesmo sabendo que esta é construída com significantes que incidem sobre ele).
Em certo momento o cineasta interrompe o movimento da personagem de Sarah Bayet com um corte para a contra-ação[1]. O trabalho que o ator faria no teatro, manejando contra-ações para imprimir o impulso da ação em cena[2], o cineasta faz com o corte. A empregada está retirando o lixo da escada. A sua filhinha (que a acompanha no trabalho) vem lhe dizer que “o velho pai” não está no quarto. Ela manda que a menina vá procurar no banheiro e começa a subir a escada. No entanto, instantes antes, havia olhado para baixo, dando a entender que pensou em descer. Assim que começa a subir, o seu movimento é interrompido por um corte para o plano dela descendo. E correndo. Uma pequena elipse interrompe este momento e nos trás a personagem já na rua para, em seguida, mostrar a menina abrindo a porta da varanda do apartamento e espiando a mãe lá de cima. Vemos a mulher correndo entre os carros e novamente um corte para olharmos de perto. E outro para olharmos de frente. Neste momento o filme imprime um ritmo diferente. O princípio do recorte dos corpos através dos objetos (que o filme se utiliza desde o início) encontra aqui expressão. A imagem da mulher é engolida pelos carros no momento em que precisa resgatar um velho.
No entanto, este foi apenas buscar o jornal. O que poderia ser grave é também um gesto corriqueiro. A ambiguidade se resolve somente quando sabemos que houve de fato um atropelamento, mas da mulher, que perde o bebê. Não vemos este momento (só sabemos disto mais tarde) e o que o filme esconde implica uma série de deslizamentos. O que pensávamos que era não era. O que pensávamos que era tema (a separação do casal) também não era. Trata-se de um homem acusado de empurrar a empregada grávida da escada. O filme se agrava e uma questão que se coloca é: de que separação se trata então? A cena do quase atropelamento do “velho pai” nos trai uma expectativa (já que ele não é atropelado) que pouco depois é satisfeita: a mulher foi. E não é sem porque que o corte seguinte é para uma mesa de jogo. As duas meninas (filha da empregada e filha do patrão) gritando. Pela primeira vez vemos “o velho pai” integrado com a sua família. As garotas em uma alegria só, com seus gritinhos expandidos, jogando Pimball. Seria um capricho distanciar neste momento a câmera para trás de uma janela envidraçada? Fazendo nosso olhar se deslocar abruptamente e retornar? Um detalhe tão ínfimo poderia ter ficado fora da montagem. No entanto, ele não seria também signo de que algo está errado? Como se nos solicitasse um pouco mais de cuidado ao olhar aquela confraternização? Mais um corte e vemos a empregada de olhos fechados lavando o rosto na pia da cozinha. E é com ela que seguimos, no ônibus, cansada a ponto de dormir em pé. Estaria apenas cansada do trabalho. Mas novamente o filme nos fará deslocar o olhar sobre esta mulher que no dia seguinte chega meia hora atrasada e recebe uma chamada da vizinha por deixar “o velho pai” esperando (além de ter deixado a escada suja).
Junto a elipses e deslocamentos do olhar (tanto do olhar sobre a narrativa quanto sobre a visualidade do cotidiano daquela família), o cineasta cumpre “o protocolo do linear” quando nos mostra planos quase “normais” do pai buscando sua filha na escola. Não fosse a vertigem do olhar sobre o trânsito da cidade (e as mulheres encobertas) e a maneira como captura a filha através do espelho do retrovisor, esta seria uma das tantas que vemos nos filmes que apenas “contam uma história”. Em meio à “normalidade”, novamente um corte: quando pai e filha chegam, a empregada não abre a porta. Parece-me que o cineasta reveza, entre linguagem da câmera e do roteiro (entre construção da história e misce-en-scene), a responsabilidade do corte. Ele maneja duas ferramentas que, de tempos em tempos, imprimem sobressalto. Quanto às posições do olhar que a narrativa implica, os saltos são abruptos e tortuosos – de maneira que o conflito torna-se contradição. O pai e a sua filha encontram o velho caído, ao lado da cama, amarrado pelos pulsos. O amor incondicional expresso nos cuidados deste filho (e mesmo na maneira como toca o pai), o choro da menina: tudo nos leva a olhar a cena de maneira a acusar empregada que sumiu. No entanto, ficamos sabendo que ela saiu porque precisou ir ao médico (depois de limpar a escada a pedido da vizinha) e tinha abortado. A vítima era ela. Mas o que seria conflito é contradição também (no sentido brechtiano, determinada socialmente). Afinal, porque uma mulher grávida precisa trabalhar limpando escadas e se responsabilizar por um velho pai fujão que caminha entre os carros com o risco de ser atropelado?
A partir daí, o conflito se complica: a empregada acusa o patrão de ter-lhe empurrado da escada. Como não sabemos o que é verdade e o que não é (pois o filme não mostra como ela abortou), o olhar acusativo é voltado, então, para aquele pai de família que até então era bom e dedicado. Ele passa, até aos olhos da filha, a canalha mentiroso (e então a razão se desloca novamente para a mãe, que foi embora). É neste sentido que os saltos do olhar sobre a narrativa nos faz mudar de posição. O olhar passeia entre um e outro ponto de vista. Compreende-se a plasticidade deste olhar que circula e não encontra terra firme para aportar porque o que está em questão não é a razão de um ou de outro personagem e sim as contradições sociais que o filme mostra.
Rejane Kasting Arruda, abril de 2013.