Artigo sobre a publicação do seu primeiro livro, intitulado
‘Música Secreta’, que R.F.Lucchetti editou em Ribeirão Preto por conta própria
(cem exemplares) em 1952.
Rafael,
O livro de poemas em
prosa ‘Música Secreta’ eu o publiquei em Ribeirão Preto em 1952. Foi uma
pequena edição de cem exemplares distribuída entre amigos, conhecidos e
críticos. Ele foi o preâmbulo de outros tantos poemas em prosa inspirados
naquela que foi a primeira e única mulher da minha vida, com quem viveria 54
anos e dois meses.
Os primeiros poemas
foram escritos sob a lembrança de sua imagem, quando sequer sabia seu nome.
Bastou vê-la uma única vez para que sua imagem se apoderasse do meu pensamento.
Vi-a poucas vezes e só cheguei nela por uma dessas coincidências cinematográficas.
É minha intenção
passar tudo para o papel, narrar como tudo aconteceu. Serviria de preâmbulo
para a publicação de uma parte desses poemas. Não sei se teria interesse na
Internet. Francamente que não sei.
O autor do artigo,
Armando Lagamba era professor de Português e crítico de arte. Eu copiei apenas
uma parte de seu artigo. Ele se encontra num dos jornais que fazem parte da
minha coleção e está encadernado.
Jardinópolis, 13 de
fevereiro de 2012.
MÚSICA SECRETA
Só em poder tocar o belo livro de
Rubens F.Lucchetti eu diria que nossos lábios ensaiam movimentos para balbuciar
as maviosas figuras criadas pelo novo poeta.
De fato em ‘Música Secreta’,
vamos nos encontrar num mundo diferente, onde o poeta nos transporta, na
primeira parte de seu livro, aos campos desconhecidos para os simples mortais,
indiferente ás maravilhas de poder “falar” com a alma como muito bem o faz o
jovem Rubens.
(...)no livro em toda a sua
primeira parte, o autor procura uma resposta em vão, talvez sofrendo um amor
desconhecido, mas sempre cantando em belas figuras, o seu amor eterno e
sincero, como muito bem podemos ver em ‘Sei que virás’ quando o poeta escreve: “...Estive esta manhã contemplando a
natureza das coisas e fiquei sabendo: o que é belo e real existindo sob a luz,
a palpitação da asa, a rósea explosão da aurora, o que está suspenso no exilio
e tua tristeza – todas esses coisas que contém o milagre da paz, não sei
anunciam jamais – elas chegam simplesmente: simplesmente chegam para preencher
o lugar que as esperava, o vapor róseo da manhã para fazer companhia ás rosas,
a asa para povoar de música o espaço
frio e tua tristeza, ah, a tua tristeza, onde estão as palavras que
poderiam mencioná-las sem ferir o corpo leve de tua tristeza...” E Rubens
F.Lucchetti continua procurando encontrar a bela mulher de seus sonhos, e a encontra quando ao passar de simples
espaços de tempo, nesta, terra, o futuro lhe chega aos pés contemplando-o com a
felicidade eterna!
(...)E muito mais nos fala e nos
toca o coração, ferindo ás vezes, nossa alma, com sua delicadeza e sua maviosa
capacidade de poder escrever aquilo que nós sentimos a todos os instantes, mas
que NÃO SABEMOS que sentimos, é o que podemos ver e sentir no livro ‘Música
Secreta’ (...) que agradará a todos, tenho certeza, principalmente na primeira
parte, quando o autor nos leva a sonhar e viver, como também sentir aquilo que
ele sentia quando escrevia as poesias.
Terminado, tenho apenas que
sugerir a leitura de ‘Música Secreta’ a todos os amantes da boa leitura, pois é
um dos raros livros que até hoje nos agradou.
Armando Lagamba
O
DIÁRIO
Ribeirão preto, 12 de junho de 1958
COMO O SONO SOBRE OS OLHOS DAS CRIANÇAS
“Doce
amor de adolescência perdoa...”
EMILE
BRONTE
Nem a luz deve tocar-te.
Tu que deixas nas minhas mãos a
lembrança fria de um pouco de água viva e de tua boca que cerro num beijo me
vem este gosto de tâmaras maduras, não me surpreende quando chegas
inesperadamente.
Sei que toda esta longa espera,
com a calma das horas dando uma volta na roda giratória do tempo, tem sido por
ti, não mais ninguém.
Vens mansamente, como o sono
sobre olhos das crianças. Olha: também sou criança, cante-me cantigas de ninar,
coisas de outro tempo, a doçura e a inocência boa, a alegria do quarto de
brinquedos, os desenhos com lápis de cor, e a alegria pueril do coração em
férias.
Tenho uma ternura mansa para te
dar. Uma ternura que tem a quietude do voo de uma gaivota em fins de tarde
sobre o mar.
As estrelas maduras e uma fonte
para os teus olhos!
Tens um poder químico sobre a vida:
as coisas que tocas se transfiguram, e a pedra é estrela, a água dos lagos, um
pedaço de céu liquefeito, e assim indefinidamente tua passagem vai
multiplicando as coisas com essas cambiantes de luz e magia dos repuxos nos
jardins, o giro multicolor das fontes luminosas com a água escalando o ar em
cordas de ouro, prata, ametistas; as lágrimas das pedras preciosas escorrendo
na saudade dos garimpos e das bateias a água incendiada dos repuxos.
Teu nome soa como um beijo nos
meus ouvidos com rumor de cristais partidos e desenhos de seus no perfil das
peras.
Muitas vezes tenho visto toda a
vida contida apenas no gesto de alguém adorando a beleza na face de uma menina
e sabendo que, mesmo que nunca mais a veja, a luz daquele rosto não se apagará
mais de seu sonho.
Quem te viu não te esquece mais!
NAS MÃOS DA NINFA
“Coisa
maravilhosa forte e cruel é a vida...”
JOHN
GALSWORTHY
És luz, como a luz levada através
de escuros caminhos.
Sinto-te nos meus olhos, na
cumplicidade das fontes, na água incendiada dos repuxos e das estrelas por onde
tua cabeleira passa veloz como um cavalo a galope.
Vens de secretos mistérios, com
esse desejo que nos dá de ser campo onde apascentarás tuas ovelhas e rebanhos,
a ternura dos rios e a meiga oferta das colheitas.
Penso que te devo possuir. Esta
posse é necessária como a entrada das raízes na terra. Mas sinto que antes devo
banhar-me de inocência para que te possua com a naturalidade instintiva com que
colho maçãs nas macieiras.
Estender as mãos para ti – não é
um ato que eu possa fazer muitas vezes. Tenho que estar cheio de noite,
carregado de inquietações noturnas, com a noite toda espelhada pelo meu corpo
como uma envoltura de que não me libertarei, para que ao estender as mãos para
ti esse gesto seja como uma aurora irrompendo na minha carne.
Carrego madrugadas no ímpeto do
meu desejo. Há cheiro de maresia nos meus cabelos, vertigens de montanhas no
meu peito.
Vem como um veleiro para estes
mares.
Todo em coisas: eles ficam cheias
de música.
Fito o cerne das plantas:
escorrem cânticos das resinas.
Os minerais se desfazem em
lágrimas nas minhas mãos, como água dos mares na concha dos búzios.
Também tu te dissolverás no meu
corpo como uma pérola no oceano.
A praia da minha posse te espera:
rola pelas suas areias. Sofro no mistério o silêncio insondável das ninfas.
DÁDIVA CONCEDIDA À VIDA
A música está dizendo-te palavras
que não diz a mais ninguém, exceto se ela pudesse ser ouvido pelo mar. O mar,
ou os nevoeiros, os lagos em calma. Ah, como eu gostaria de chegar perto de ti
a esse hora e descobrir o brilho inaugural das primeiras luzes do dia no teu
rosto. Explico: carrego comigo o desejo obstinado de ver as coisas da “mesma
maneira” pela qual são vistas por Deus. Ainda agora vou imaginando que quando
te levantares amanhã de manhã a aurora há de sorrir refletida nos teus olhos
dizendo-te que és jovem e tua graça, dádiva concedida à vida.
REFLEXÕES
Rubens
Francisco Lucchetti
“Algum
humano, em meio á humana lida, lamenta acaso quem aqui repousa? Chora o teu
próprio exílio e não a minha vida: Com a terra por mãe, e o sono por esposa – ó
frios hibernais, correi! – que a primavera aqui tem imortal guarida. Quem
hesita? Um imbecil. Quem bate? O Rei”.
CHARLES
MORGAN
I
Não saber nunca o segredo das
pessoas. Como é feroz a solidão de vida nesta morte que vivemos.
II
Há um único momento de amor
absoluto: é quando amando uma mulher queremos saber como ela foi no tempo de
criança.
III
A ternura. Esta coisa manda que
pacifica, mais profunda que o amor porque há na sua essência um desejo de comunhão
absoluta, de tão calma identidade que o próprio amor não supera, apesar da
violência de sua penetração. A ternura comunica essa ideia de segurança, de
realidade subjacente sem a qual sentimos que nos falta um centro de gravidade á
nossa vida. Todo poder de arte vem desta capacidade de ternura, desta difusa
doçura em que inunda nossas zonas de mistério. É por isso que toda grande arte
é sempre uma conquista de paz, um acréscimo de calma á nossa impura
turbulência. Calma, quanta força contida nesta palavra.
IV
Pensar numa mulher como numa
enseada cheia de sol. Ser como o crepúsculo que modifica a paisagem sem lhe
alterar a quietude das águas.
V
Estive hoje pensando na mágoa
recôndita de todas as criaturas que se sentem na vida como em país estrangeiro.
Falam um idioma tão suave que o mundo não as escuta – não o mundo distante, dos
homens ou das coisas estranhas, mas este outro mundo mais frio porque mais
próximo e que é constituído pelos seres que vivendo sob o mesmo teto nada sanem
de nós mesmos.
VI
Creio que liberdade foi o
primeiro nome que no mundo se deu à solidão.
VII
É noite e estou escrevendo e se
posso mencionar um desejo é para que, assim como sucede ás estrelas, a Sua vida
seja contada em termos de anos-luz.
VIII
Escritor: visitar em silêncio os
corações mais distantes e ignorados como se estivesse andando á noite, pela
nossa própria casa.
IX
Bem sabe Deus que não tenho
inimigos, mas se os tivesse eu os perdoaria aqui.
(Contemplando
o “Gran Canyon”)
X
Muitas e muitas vezes sinto-me
como um enfermo que, entrando em agonia, dispusesse de alguns segundos para
rever a existência de longos anos.
XI
A calma radiação, esta casta e
suave atmosfera das jovens que sonham no crepúsculo...
XII
A insensibilidade, a falta de
delicadeza da alma, eis o pecado para o qual não há remissão.
XIII
A felicidade não é coisa que nos
sucede; devemos construí-la como um arquiteto constrói um edifício. É preciso
carregar pedra sobre pedra. É um fracasso da imaginação não subordinar a vida a
um vigoroso conceito arquitetônico. Nossa vida é uma catedral: a necessidade da
prece e da paz está implícita na severa ordem da construção.
XIV
Tocar a calma da vida é a
experiência absoluta e final. Nós lutamos por muitas coisas vazias. Estamos na
voragem e não conseguimos ver. Quantos percorrem o caminho até o fim, cegos
para o seu próprio equivoco, e se vão embora na angustia de pessoas que entrando
e saindo de uma casa nunca param no jardim?
XV
O essencial é não abandonar a
palavra, não passar um só dia sem escrevê-la. Não a palavra que todos usam, mas
aquela que estão procurando descobrir, tentando ouvir. Possivelmente não estará
nos dicionários. As crianças talvez se lembram dela, porque as crianças não tem
vergonha de dizer que precisam de ternura.
XVI
Há em certas mulheres uma doçura
tão intima como se elas tivessem sido feitas de sombras, de pérolas e sedas.
Lembram camurças e veludos. Mulheres que nasceram para proteger, mulheres que
são como o repouso de um guerreiro. Seu colo é uma enseada onde ancoram
silenciosamente os navios vindos de alto mar.
XVII
Fazer concessões é o principio de
toda degradação. Ser intransigente na defesa dos valores profundos de nossa
vida, sem contudo chegar á intolerância – esta é a calma determinação dos que
aspiram atingir um glorioso objetivo.
XVIII
Humildemente venho trabalhando
para que a minha imaginação conquiste um reino de possibilidades insuspeitadas
e eu possa olhar a vida sem envergonhar-me de tê-la entre as minhas mãos.
XIX
Tarde quieta. Chuva fina, lenta e
fria. Parece que alguém, não sei onde, como? Está tocando piano...
XX
Elegia de inverno: por que
estamos sempre nos despedindo dos seres que mais amamos?
XXI
Detesto os que se consideram
desgraçados. Até no sofrimento é preciso haver arte. É muito mais puro ser
triste do que infeliz.
XXII
Porque é maravilhoso quando este
está com a nossa pequena, e, muitas vezes parar a conversa, e os dois ficarem calados,
nada dizendo, e ela sabendo que naquele silêncio está sendo mais adorado do que
nunca, se tornando mais linda no quieto silêncio. E até agora ninguém sabe como
fazer silêncio no meio de uma carta; evidentemente não há de ser deixando um
espaço em branco, ou um certo trecho usando palavras mais ternas, de macio
sussurro. Para os violinos há surdina, pianíssimo, nos pianos mas na carta,
apesar de ser um belo instrumento onde se toca música vinda do coração, não há
esse recurso da delicadeza. Existe apenas uma certa espécie de pausa, que é o
espaço em branco, mas quem escreve para abrir claros numa carta? Pensa-se que
foi distração, ou excentricidade, ou extravagância, ou ainda preguiça de
escrever; ou que não se sabe dizer, o que se queira dizer; não se soube
descobrir as palavras verdadeiras, e o espaço em branco ficando como sinal de
ignorância, não de admirável silêncio, puríssima adoração, calada ternura.
XXIII
Não quero ser Deus. Tenho medo da
solidão dos deuses.
XXIV
Hoje, dia triste: escrever tendo
pelas palavras o mesmo cuidado que se tem pelos doentes.
XXV
Ter, a essa hora, uma palavra
noturna para que as estrelas reconheçam que vivem no nosso pensamento...
XXVI
Nestas horas suspensas da
meia-noite, escuto vozes tão profundamente vindas de meu coração que penso
estar ouvindo sinos tocando numa cidade submersa...
Do livro inédito ‘Música Secreta’.