Odete Lara em Boca de Ouro: A Plasticidade de uma Personagem Popular
Em tempos em que o pós-dramático ganhou força, devemos nos questionar sobre os rumos da atuação de cunho dramático-realista. A dicotomia, expressa no campo do teatro é ressonância da ideia contemporânea de fragmentação atrelada à autonomia de outras plasticidades que não a da ficção. A plasticidade do corpo torna-se uma chave junto ao som, o desenho da luz, a imagem; as camadas que diferentes materiais constituem, justapostas, não mais convergem para a criação da plástica ficcional; a palavra ainda tem o seu lugar, menos pelos efeitos de significação, mais pela plasticidade, ritmo e dinâmica da sua sonoridade.
No entanto, a atuação de cunho dramático-realista continua tendo um lugar em nossa cultura e o cinema pode ser tomado como seu herdeiro. Neste contexto, uma atuação como a de Odete Lara em “Boca de Ouro” (filme de 1963 de Nelson Pereira dos Santos a partir da peça de Nelson Rodrigues) instiga-me à reflexão sobre os princípios ali implicados. Observa-se o desenho, o movimento e as transformações (a plasticidade, portanto) de um percurso de ações internas e o que podemos ler como um pensamento da personagem: subjacente, “subtexto” (Stanislavski). Pensamento este atrelado a um ritmo por sua vez provocado pelo revezamento de ações que podem ser nomeadas; como “fechar a cara” em oposição a “sorrir alegremente” - quando Guigui se dispõe a falar de Boca de Ouro (Jece Valadão).
Contando com a imagética dos hábitos de um cotidiano popular, a atriz lança mão de uma plasticidade típica: a sensualidade nada vulgar com certo traço de sofisticação se junta ao deboche tipicamente brasileiro; a raiva contida no ponto certo, cotidiana (e a cotidianidade tem a propriedade da repetição e do automatismo) reveza-se com “a nobreza de uma cascavel” ou “uma conivência passiva cheia de relutância”. Ou, ainda, o excesso - quando sabe da morte de Boca: “Mataram o meu Boquinha!”. Com destreza, ela reveza os registros, criando o que, por fim, é a sua obra: a “Dona Guigui”.
No mais, a fala oferecida pela dramaturgia do Nelson Rodrigues cumpre um papel de enquadramento sonoro cujo estatuto valeria a pena interrogar.
Rejane K. Arruda para a BISTURI, junho de 2012.