Corte e Recorte de Carax com Lavant em “Sangue
Ruim”
Em “Sangue Ruim” (Leos Carax, 1986) Denis
Lavant traz uma atuação que oscila entre a contenção e a performatividade. Trata-se
deste tipo de contenção que se espera de um ator no cinema quando as variações
do enquadramento imprimem uma poética particular. A proposição “fazer menos é
mais” se tornou uma espécie de clichê, mas aqui ela se justifica. No entanto, é
preciso ver qual a poética que a sustenta, uma vez que podemos situar a estaticidade
(este “menos”) como uma modalidade de enquadramento impressa pelo ator. Se pudéssemos designar o corpo como
uma espécie de saco ou sacola com algo dentro, superfície que encapsula a alma,
pensamentos ou afetos – ou dizer que o ator passa por atravessamentos. Seja o
que for que atravessa este território marcado por uma memória, por uma história
de vida (que se poderia isolar e incluir no jogo naquele instante), ilumina Denis
Lavant e nos captura.
A coreografia precisa contrasta, por
exemplo, com as imprecisões de um outro tipo de poética, cujo paradigma se encontra
em Cassavetes: enquadramentos vulneráveis aos tempos e espaços ocupados pelos
corpos. Em Carax, ao contrário, é o ator que precisa circunscrever a sua
superfície nos limites bem definidos dos enquadramentos da câmera. Além disto,
a fala lacônica contrasta com a abundância inscrita na visualidade quase
mimética de Cassavetes; tende a separar-se do corpo, como voz over do rosto desfocado (quando a câmera acompanha a velocidade
dos seus movimentos em meio à correria); ou quando outra ação se precipita em
meio a uma fala que segue em voz over.
Mas em “Faces” (Cassavetes, 1968) há
silêncios onde o olhar parece testemunhar um pensamento que talvez se adivinhe.
Tal como quando Boca Fechada (Denis Lavant) observa Anna (Juliete Binouche) em
“Sangue Ruim”: lascivo apesar do rosto ser apenas o de um menino de mãos ágeis
que prepara um golpe. A construção de Boca Fechada inscreve elementos que não
se harmonizam (tal como as notas de um acorde dissonante) e nos entretém com equações
que talvez pudessem resolver as contradições. Um rosto do qual Denis Lavant sabe
extrair as consequências quando a narrativa (que escutamos nas entrelinhas dos
enquadramentos) evoca um sentido para o seu “quase nada” ou a sua dissonância.
Até a imobilidade se romper. Seja com os
números de circo para Anna sorrir ou com uma dança enfurecida ao som de David
Bowie. Jovem, bailarino, louco, lindo, acrobata, super-herói; criança que
brinca feliz; homem de borracha; meio dor, meio libertação (o que mais cabe em
uma imagem?). E quando ele pergunta, sem um rasgo (sem que ali, naquele rosto
imóvel, possamos ler qualquer coisa) se ela acredita em amor que vem pra ficar
– não sem passar pelo lençol marcado (tomada de cima), a cabeça entre os
degraus da escada, a porta, o silêncio – percebe-se este conjugar de dois
enquadramentos: o enquadre de um desenho (da imobilidade ou do movimento que a
rompe) que enquadra o que se possa ler de alma “dentro” do corpo, enquanto a
ardilosa decupagem o recorta.
Rejane Kasting Arruda. Bisturi, março de
2013.