Incompletude em Charles Chaplin
O pequeno homem diante dos gigantes. Numa coreografia
de luta, a alusão ao boneco: dois para lá e dois para cá: uma relação
matemática que não o humaniza. E ainda assim, a marca pela diferença. Carlitos
faz tudo errado. Ele é o fracote e tal, não se encaixa bem ali. Ele não se
encaixa em lugar nenhum.
Em Sunnyside, trabalha como faz tudo num hotel de
quinta. Precisa limpar o chão, preparar a refeição. De pronto, quebra a lógica
das coisas: traz a vaca para dentro de casa, a galinha para cima do fogão. Põe
o ovo.
Ele faz tudo diferente. Muito açúcar no café. Engrossa
e come no pires. Depois passa no pão. Quando ordenha, é claro. Com aquele
jeitinho esquizito. Agora sonha com musas. Sai a bailar pelo pasto, imitando os
trejeitos. É claro que parece um bonequinho de corda. E isto dura.
Não se trata do instante, mas de uma série de
variações. O filme é uma sucessão de situações relativamente autônomas. Ele
sentado com a garota, o irmão ao lado. Como expulsá-lo? E isto dura.
A venda para brincar de cabra-cega. Então ficam a sós.
Ela toca. Ele canta. Depois trocam de lugar. Mas tem a sujeira na partitura.
Ele estranha o bemol: um carneirinho. Uma cabra.
Novamente no hotel, o patrão furioso. Chega o circo na
cidade.
Parece que o filme é um laboratório de Chaplin para experimentar
a plasticidade das coisas. Um desfile. Chega uma moça e ele se derrete. Elas sempre tão lindas. Com seus olhinhos e
mãozinhas. E o coitadinho do faxineiro.
Enroscado no fio do sapato que desfia. Tenta tocá-la,
ela tira a mão. O outro novamente lá. Só lhe resta o trilho do trem. Imagina os
chutes e ele ali, enfrentando o rival, o abraço da amada. O trem passa por cima
da sua bunda.
É como se a perna fosse autônoma. Keaton ainda arruma
as folhas no piano. Isto leva um tempo.
Chaplin cozinha o sapato. Coloca no prato. Capricha no
molho, afia a faca. Até esqueço que é um sapato.
Bocadinho por bocadinho. Em desacordo com algum tipo
de autoridade. O garçom não quer que ele sente com o chapéu. É o suficiente
para uma série de variações. O ritmo como o material por excelência. Sair ou
não sair: uma questão sustentada por um longo tempo.
Em Easy Street, um homem discursa. Uma mulher chega
com o bebê. Pede pra ele segurar. Será que fez xixi?
O garçom mal humorado joga a comida na mesa. Quando não
encontra o dinheiro no bolso, o corpo murcha.
Treina os socos se preparando pro pior. Mas a sorte lhe
sorri: uma moeda no chão. Finge cair. Isso acontece. Até que consegue. Mas chega
a conta. A coisa vai longe.
Novamente a plasticidade se perpetua no jogo entre o
sim e o não. A plasticidade de um fundo, evocado com a palavra: The Immigrant.
O jogo é duplo. A graça do indivíduo na situação. Sob
o fundo, amontoados. A justaposição de duas plasticidades.
Carlitos é personagem a deriva. O jogo de cartas é
mais uma situação-pretexto. De tudo ele tira ritmo: um barco, os soluços do
homem ao lado.
O encontro com a mulher. Sempre a luz do sorriso. O
esfusiamento dos afetos.
Rejane Kasting Arruda. Para a
BISTURI. Agosto de 2012.