segunda-feira, 3 de março de 2014

R.F.Lucchetti: Memória Cinematográfica


A VIDA E A OBRA DE EDGAR ALLAN POE
artigo de Rubens Francisco Lucchetti

Dedico este artigo ao meu
inesquecível amigo Hélio
do Soveral, que, como eu,
tinha Edgar Allan Poe como seu ídolo maior

Há duzentos anos, em 19 de janeiro de 1809, no número 33 da Rua Hollis, em Boston, Massachusetts, nascia Edgar Allan Poe. Seus pais, dois atores pobres, David Poe Jr. e Elizabeth Poe (nascida Elizabeth Arnold), achavam-se cumprindo contrato, num teatro de Boston; e sua carreira errante – viajando em carroções desconjuntados das companhias teatrais, que trilhavam caminhos tortuosos, empoeirados ou lamacentos; descendo rios a bordo de vetustos barcos fluviais, que carregavam uma profusão de bagagens e cenários rústicos; dormindo muitas vezes ao relento, sob a luz das estrelas – permitiram ao pequeno Edgar travar, desde muito cedo, contato com a vida sofrida dos deserdados da sorte. E essa vida nômade e movimentada perseguiria Edgar por todo o sempre. “Quando sou atacado”, escreveu ele, certa vez, “por um dos meus acessos de vagabundagem (e como eu conheço bem essa tendência que me impele a errar durante uma semana ou um mês sem descanso), não poderia, nem verdadeiramente desejaria, resistir a esse apelo, nem mesmo para agradecer ao Grão Mogol, se este me declarasse único legatário dos seus bens.”

David Poe Jr. era de ascendência irlandesa, provinha de uma família que emigrara para os Estados Unidos por volta de 1748 e que distinguira-se durante a Independência Americana. Destinado pelos seus à magistratura, tudo abandonou para seguir sua vocação: o teatro (sua estréia nos palcos ocorreu em Charleston, na Carolina do Sul, em 1803). Uma notícia da época descreve-o como sendo uma pessoa extremamente tímida, ao passo que “sua voz clara e melodiosa, só se revela quando ele representa libertado de sua timidez. Sua dicção parece bem distinta e articulada, e seu rosto e sua pessoa dizem muito a seu favor. Seu tamanho é daquele porte bem adequado à ação geral, se seu talento se adaptasse ao soco e ao coturno...”

Ao que se sabe, essa é a única descrição do aspecto físico do pai do poeta. Não se conhece também nenhum retrato dele. E suas qualidades de ator eram – quando muito – limitadas.

Quanto à mãe de Edgar Allan Poe, nasceu na primavera de 1787, em Londres. Era filha de Henry Arnold e de Elizabeth Arnold (nascida Elizabeth Smith), atores do teatro de Covent Garden. Henry Arnold faleceu em 1789; e, em novembro de 1795, a sra. Arnold mudou-se com a filha para os Estados Unidos, desembarcando em Boston. Foi nessa cidade que ela deu prosseguimento à sua carreira profissional e logo conheceu um ator chamado Charles Tubbs, também inglês – “de poucos dotes e pouco caráter” –, com quem se casou em segunda núpcias. O casal apresentou-se, cantando e dançando, em diversas cidades norte-americanas. E a pequena Elizabeth Arnold, cuja estréia nos palcos teatrais ocorreu quando tinha apenas nove anos de idade, atuava em papéis infantis e, posteriormente, juvenis, em todas as companhias que sua família ingressava. A partir de 1798, nada mais se soube a respeito do casal de atores; porém, a jovem Elizabeth fez carreira e logo seu nome começou a aparecer com destaque nos cartazes e nos jornais. E, no verão de 1802, durante uma de suas viagens como atriz, ela se casou com o também ator G. D. Hopkins. Ele faleceu em outubro de 1805; e, seis meses depois, Elizabeth casaria-se com David Poe Jr.

Com Hopkins, Elizabeth não teve filhos; no entanto, com o segundo marido, teve três: William Henry Leonard, nascido em 30 de janeiro de 1807, em Boston; Edgar; e Rosalie, que veio ao mundo em 1810 (ela faleceria em 1874), em Norfolk, na Virgínia.

Devido à pobreza deles, o casal Poe deixou o primeiro filho aos cuidados da cunhada, Maria Clemm (1790-1871), e partiu para Nova York, onde, segundo Hervey Allen (no livro Israfel – Vida e Obra de Edgar Allan Poe), “David Poe Jr. morreu ou abandonou a esposa (provavelmente fez esta última coisa). Desamparada e tendo de sustentar o menino Edgar, Elizabeth, algum tempo depois, deu à luz uma menina. Lançou-se suspeita, mais tarde, a respeito da paternidade dessa última criança e sobre a reputação da sra. Poe. (...) Não é preciso dizer que tal suspeita era injusta”.

Com a saúde minada pelos sucessivos partos – ela é descrita como “uma mulher franzina, com grandes olhos misteriosos e longos cabelos anelados de um negro azeviche, estatura insignificante, membros frágeis e uma fisionomia altiva” (descrição essa que muito se assemelha às das mulheres que povoam os contos de seu filho Edgar) – e vendo-se na mais absoluta miséria, Elizabeth arrastou Edgar e Rosalie para a última etapa de seu calvário: Richmond, na Virgínia.

Certo dia, ao visitarem-na, várias pessoas encontraram-na enferma, estendida sobre o leito. Ela estava no apogeu da decadência – sem dinheiro, sem conforto e sem o que comer. As duas crianças, com as faces marcadas pela fome, estavam nuas e choravam sem parar.

Em 7 de dezembro de 1811, os jornais anunciaram um recital em benefício de Elizabeth Arnold Poe. Ela, porém, exalou o último suspiro no dia seguinte – vitimada possivelmente pela pneumonia ou a tuberculose –, com apenas 24 anos de idade. Edgar e Rosalie foram amparados pelos membros da companhia teatral em que trabalhava Elizabeth.

Mas o infortúnio, tal qual a Máscara da Morte Rubra, achava-se à espreita. E, poucos dias após a morte da mãe, novo terrível acontecimento atingiu os infelizes órfãos: na noite de Santo Estevão, o teatro onde alguns dias antes fora realizado o recital em favor da sra. Poe foi destruído por um pavoroso incêndio, no qual sessenta espectadores perderam a vida. Os atores viram-se forçados a ir procurar trabalho em outras paragens, confiando os filhos de Elizabeth Arnold Poe à burguesia local.

É necessário acentuar esses dias de infortúnio, para que se possa compreender em parte a existência dramática e o gênio incomum de Edgar Allan Poe, que trazia, desde o berço, o estigma de um alcoolismo que muitos de seus biógrafos dizem ser hereditário. Durante toda a sua existência, Poe travou uma luta sem fim contra dois instintos antípodas: de um lado a firme resolução de não beber; e de outro a depressão e a morbidez funesta que o intoxicavam de complexos e da irresistível compulsão de procurar na bebida um estimulante, sendo, então, protagonista das mais humilhantes e asquerosas cenas a que um ser humano pode se entregar. A todo momento quebrava as promessas que fazia para se corrigir, e os atos que comprometiam e afeiavam seu nome desanimavam todos aqueles que se esforçavam em furtá-lo àquela degradante vida.
Entretanto, sua existência, despida de sorrisos, foi favorecida... Com cerca de dois anos de idade, Edgar foi levado para a casa de um abastado negociante (de tabaco) de origem escocesa, John Allan (1780-1834).

Quanto à pequenina Rosalie, recebeu abrigo na residência do casal William e Jane Scott Mackenzie. Os Allans e os Mackenzies eram amigos íntimos e vizinhos. As crianças acabaram ficando nessas casas (na casa dos Allans, “flutuava o perfume do tabaco e do punch, e também o odor dos escravos”), o que, com o correr do tempo, tornou-se equivalente a uma adoção. E, apesar da oposição do sr. Allan, Edgar foi batizado na Igreja Presbiteriana e acrescentaram ao seu nome o sobrenome de seu pai adotivo.

Frances Keeling Valentine Allan (1784-1829), esposa de John Allan, não tinha filhos, embora estivesse casada desde 1803. Por isso, ela e a irmã, Anne Moore Valentine, cercaram a criança de um afeto sufocante, satisfazendo-lhe todos os desejos. “A minha palavra era lei em toda a casa”, revelou Edgar, em certa ocasião. “E, na idade em que poucas crianças são arrancadas às saias da mãe, eu, senhor dos meus atos, podia entregar-me aos impulsos da minha vontade.”

Em 1815, no dia posterior ao da derrota de Napoleão, John Allan, que estava com os negócios comprometidos devido ao bloqueio naval imposto pelos ingleses durante a Segunda Guerra da Independência Americana, resolveu tentar a vida na Inglaterra. Instalou-se com a mulher em Londres; e Edgar foi mandado primeiro para a casa da severa sra. Mary Allan (ela era uma das irmãs de John Allan), em Irvine, na Escócia. Depois, o menino foi matriculado numa escola para meninas, em Londres; e, mais tarde, transferido para o colégio do reverendo John Bransby, em Stoke Newington (o lugar foi assim descrito por Poe: “Uma aldeia afogada numa multidão de árvores gigantescas e nodosas e onde todas as casas parecem excessivamente velhas”).

Mas os negócios de John Allan não se desenvolveram da forma como ele esperava; e, por outro lado, o clima úmido da Inglaterra foi nocivo à saúde frágil de sua esposa. Assim, em 1820, os Allans regressaram aos Estados Unidos, ou melhor, voltaram para Richmond. Porém, se os cinco anos passados na Inglaterra não correram para John Allan da maneira que ele esperava, trouxeram algum benefício a Edgar, que teve algumas noções de Francês, Latim, História e Literatura. Não foi muita coisa, mas serviu para enriquecer sua fértil imaginação, impressionada pelos castelos misteriosos, pelas casas decrépitas, pelas cavas úmidas e pelos corredores escuros, onde ele pressentia a presença do sobrenatural. São essas experiências que nos auxiliam a compreender certos aspectos de sua obra: o gosto pelo macabro e pelo misterioso, a atmosfera medieval existente em seus contos. Isso me faz recordar das palavras do sr. Dante Regis Vita, num antigo texto: “Beleza esquisita, imagens estranhas tocadas de sombras de tragédia, histórias cheias de mistério as de Edgar Allan Poe.”

Embora John Allan tivesse de se desfazer de parte de seus bens para satisfazer os credores, a vida da família Allan continuou a ser confortável (sobretudo a partir de 1825, quando John Allan recebeu de herança uma quantia considerável). Edgar foi mandado para uma escola freqüentada pelos filhos das melhores famílias de Richmond. Ali, sobressaiu-se em línguas, oratória, representações teatrais e realizou algumas notáveis façanhas na natação. Com treze anos, começou a escrever poesias. Em 1823, tornou-se amigo íntimo de seu colega de escola, Robert Craig Stanard (1814-1857), cuja mãe, Jane Stith Stanard, “tomou de terno interesse pelo brilhante jovem, afeição que foi ardente e romanticamente retribuída”. Foi para a sra. Stanard que Poe dedicou, depois, seu poema “Para Helena” (“To Helen”,1831), que começa assim: “Tua beleza, Helena, é para mim...”

Entretanto – não demorou muito –, nova tragédia abateu-se sobre o jovem poeta: a morte da sra. Stanard (ela morreu aos 31 anos de idade, tuberculosa e louca ), em 28 de abril de 1824. O golpe atingiu Edgar de forma tão intensa que ele, à noite, passou a rondar o túmulo da mulher, no cemitério solitário. E, ao que se sabe, a lembrança de Jane Stanard jamais o abandonaria.
Após a morte da sra. Stanard e praticamente durante toda a sua vida, Poe apaixonou-se platonicamente por inúmeras mulheres. A primeira delas foi uma jovem vizinha, Sarah Elmira Royster (1810-1888), de quem chegou a ficar noivo em segredo.

Em fevereiro de 1826, John Allan inscreveu o filho na Faculdade de Línguas Mortas e Vivas da Universidade de Virgínia, fundada em Charlottesville por Thomas Jefferson (1743-1826). O jovem estudante fez brilhantes progressos nos estudos, mas foi por essa época que começou a beber. Exatamente como acontecia nos prestigiosos colleges ingleses da época, os jogos de azar, o álcool, o ópio, o láudano, as mulheres e os duelos eram as principais distrações dos estudantes na Universidade de Virgínia. Não demorou muito tempo, e Edgar esgotou os dólares que John Allan lhe dera. Mas não foi o suficiente para fazê-lo abandonar os vícios. E, assim, afundou-se mais e mais em dívidas.

Esse comportamento desagradou John Allan; e, ao tomar conhecimento desses acontecimentos, o sr. Royster mandou a filha para fora por algum tempo, a fim de afastá-la de Edgar.

No Natal desse mesmo ano, Edgar teve uma violenta discussão com o pai adotivo, que se recusou a pagar-lhe as dívidas, que ultrapassavam os dois mil dólares. Em seguida, John Allan tirou Edgar da universidade e tentou fazê-lo interessar-se pelo mundo dos negócios. Não conseguiu seu intento. As discussões entre ambos tornaram-se frequentes. E, num ímpeto de arrogância, em 19 de março de 1827, Edgar abandonou a casa paterna, mudando-se para um sórdido hotel, a Taverna do Tribunal. Era o fim de uma vida abastada. Daquele dia em diante, Edgar teria de lutar pela própria sobrevivência. Chegou a escrever para o pai uma carta “cheia de dignidade”; porém, John Allan sequer lhe respondeu. A sra. Frances Allan, imbuída do sentimento maternal, tentou interceder em favor de Edgar. Foi em vão. Então, a fim de minimizar as agruras do filho adotivo, mandou-lhe algum dinheiro, por intermédio de um de seus escravos. De posse desse dinheiro e adotando o nome de Henri Le Rennét, Edgar abandonou Richmond com um amigo, Ebenezer Burling (1807-1832), e foi para Norfolk. Lá, separou-se de Burling e prosseguiu viagem num navio até Boston, onde chegou praticamente sem dinheiro em abril de 1827. O que aconteceu depois pode ser descrito como:

A BALELA GREGA DE POE

“Algumas deploráveis dívidas de jogo originaram uma desavença entre Edgar e seu pai adotivo. E Edgar, que possuía uma dose fortíssima de romantismo em sua mente impressionável, concebeu o projeto de se imiscuir na guerra dos Helenos, alistando-se no exército grego para combater os turcos. Partiu, pois, para a Grécia. Em que se tornou ele no Oriente? Que fez? Visitou as praias clássicas do Mediterrâneo? Por que iremos encontrá-lo em São Petersburgo, sem passaporte, envolvido num negócio escuso e forçado a apelar para o embaixador americano, Henry Middleton, a fim de escapar à justiça russa e regressar à sua pátria? Mistério! Há aqui uma lacuna que só ele próprio saberia preencher.” Essas palavras foram escritas por Charles Baudelaire em sua biografia de Edgar Allan Poe.

Em 1827, Edgar cerrava definitivamente atrás de si a porta da casa de John e Frances Allan. Foi, então, para Boston, onde publicou um pequeno volume de poesias, que, em sua opinião, se destinava a revolucionar o tranquilo mundo das letras norte-americanas. No entanto, a América não o compreendeu, não se sentiu subjugada pelo seu jovem gênio. Ei-lo, portanto, só, decepcionado, sem família e sem pátria. Só lhe restava uma única alternativa: procurar a glória em outra parte. Iria, assim, qual novo Lord Byron, combater pela independência dos gregos e retornar ao seu país coberto de louros. Que fez, então? Persuadiu um amigo, Ebenezer Burling, a partir com ele. Os dois embarcaram num navio, com destino à Europa. Na última hora, o amigo desistiu. Edgar foi sozinho e desembarcou na Grécia. Lutou. Foi ferido. E misteriosamente chegou a São Petersburgo, na Rússia, de onde escreveu dúzias de cartas a seus amigos nos Estados Unidos. No entanto, na Rússia, as coisas não foram muito bem. Viu-se implicado em obscuras histórias políticas. Envolveu-se com anarquistas e revolucionários, o que motivou uma sentença de deportação para a Sibéria. A fim de evitar essa deportação, o embaixador norte-americano teve de intervir. Entretanto, o calvário de Edgar não terminaria aí. No momento de embarcar de retorno à América (isso após viajar pela Alemanha, Itália, França e Inglaterra), encontrou meio de se meter noutro vespeiro. As informações a esse respeito são um tanto obscuras. Sabe-se apenas que foi ferido num duelo (possivelmente, teve de duelar com algum marido ultrajado). E foi somente graças ao desvelo de uma riquíssima condessa escocesa que pôde rever o solo dos Estados Unidos. E narrou essas e outras peripécias num romance, Vida de um Artista em Seu País e no Estrangeiro.

Mas tudo isso não passa de uma grande invenção. É tudo falso. Edgar não fez viagem alguma à Europa; na verdade, nem saiu da América. E a aventura que ele imaginou na Grécia aconteceu em seu próprio país: adotando o nome de Edgar A. Perry (nascido em Boston, em 1805), alistou-se no Exército dos Estados Unidos. E Edgar A. Perry logo desapareceu de circulação, eclipsando-se na guarnição do perdido Forte Moultrie, na Ilha Sullivan, na Carolina do Norte.

Em Boston, Edgar começou a escrever para um jornal e, sob um nome falso, ficou conhecendo um jovem impressor, Calvin F. S. Thomas (1808-1876), ainda inexperiente no ramo tipográfico. Valendo-se disso, Edgar convenceu-o a imprimir um pequeno volume de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827), e, como não teve condições de pagar a edição – de quinhentos exemplares –, coube-lhe apenas umas poucas cópias (o restante foi possivelmente destruído). Esse volumezinho (tendo como autor um bostoniano e contendo poesias que, nos dias de hoje, são famosas) não teve repercussão alguma na época (a imprensa dedicou-lhe tão-somente duas notas). Frustrado e sem dinheiro, Edgar alistou-se no Exército dos Estados Unidos, em 26 de maio de 1827, usando o nome falso de Edgar A. Perry. Foi destacado para a Bateria H do 1º Regimento de Artilharia dos Estados Unidos e passou todo o verão de 1827 no acampamento do Forte Moultrie.

Edgar permaneceu no Exército de maio de 1827 a abril de 1829. E, logo nos primeiros dias, os oficiais perceberam que ele tinha aptidão para os serviços de escritório. Não era um trabalho estafante e propiciava-lhe muito tempo livre, possibilitando-lhe ler, escrever poesias (data dessa época seu poema “Al Aaraaf”) e vaguear pelas praias (muitos anos mais tarde, ele se valeria dessas recordações nas praias da Ilha Sullivan para escrever “O Escaravelho de Ouro”). E, devido à sua boa conduta, chegou a primeiro-sargento. Mas não demorou para perceber que estava desperdiçando sua vida no Exército. Assim, numa tentativa de regressar à vida civil, escreveu uma carta a John Allan, pedindo-lhe perdão e permissão para voltar ao lar. Porém, seus rogos não obtiveram sucesso algum; e, em dezembro de 1828, seu regimento recebeu ordem para seguir para o Forte Monroe, na Virgínia.

Sem possibilidades de retornar ao lar, restou a Edgar apenas uma alternativa: a de alistar-se na Academia Militar de West Point. Para isso contou com o apoio de alguns oficiais de seu regimento. Eles tomaram para si a incumbência de intercederem junto de John Allan, em favor de Edgar. Mas o sr. Allan manteve-se irredutível, sequer cedendo aos rogos da esposa moribunda, que desejava ver seu “querido menino”.

Quando Edgar teve permissão de regressar à casa do pai adotivo, já era tarde demais: “tudo quanto mais ele amava no mundo se achava sepultado” (sua mãe adotiva morrera em 28 de fevereiro de 1829).

Quanto a John Allan, viu-se obrigado a uma “reconciliação” com o filho adotivo – ele prometera à esposa, poucos minutos antes de ela morrer, “não abandonar Edgar”.

Por volta de abril de 1829, Edgar embarcou para Washington, levando na bagagem algumas cartas de recomendação de seus oficiais e uma de John Allan, que, entre outras coisas, dizia: “Francamente, senhor, declaro que não tenho com ele nenhum parentesco.”

Contudo, as formalidades burocráticas para a admissão de Edgar em West Point arrastaram-se por semanas, meses. Ele partiu, então, para Baltimore e instalou-se na casa de Maria Clemm, irmã de seu pai. E, nessa casa, ficou conhecendo sua avó paterna, que tinha já uma idade avançada e estava paralítica; e reencontrou seu irmão, William Henry, que fora marinheiro. Também conheceu sua priminha Virginia, que tinha apenas sete anos de idade (ela nasceu em 22 de agosto de 1822). Imediatamente, estabeleceu-se entre os dois primos uma estranha relação fraternal. Edgar acompanhava a menina em longos passeios, contando-lhe maravilhosas histórias que ele mesmo imaginava, e serviu-se dela para permutar cartinhas melosas com uma jovem vizinha, Mary Devereaux.

Esse foi um dos raros períodos felizes da vida de Edgar. A sorte sorriu-lhe também no campo literário. Logo após uma apreciação favorável do crítico John Neal (1793-1876), nas edições de setembro e dezembro de 1829 da Yankee and Boston Literary Gazette, o seu poema “Al Aaraaf” foi editado, juntamente com Tamerlane and Other Poems, pela Hatch & Dunning. Não era exatamente a glória, mas pelo menos Edgar já não era mais um desconhecido no mundo das letras.
Talvez esse acontecimento tenha servido para abrandar o coração do sr. John Allan (todavia, acreditamos que tenha sido mesmo a perspectiva de o filho adotivo estar prestes a ingressar na prestigiosa Academia Militar de West Point), que permitiu que Edgar regressasse à sua casa em janeiro de 1830. O poeta pôde, ainda que por pouco tempo, voltar ao fausto.

Finalmente, em março de 1830 chegou a esperada nomeação de Edgar para a Academia Militar. Os exames de admissão aconteceriam no final de junho; e, em maio, Edgar despediu-se de John Allan e partiu para West Point. Fez uma parada em Baltimore, para visitar seus parentes. E em 1º de julho de 1830 prestou o juramento, sendo admitido na Academia Militar de West Point, onde permaneceria até fevereiro de 1831.

Nos primeiros meses em West Point, Edgar declarou-se “extremamente satisfeito com tudo e com todos”. Porém, a vida dispendiosa que sustentava – para poder manter as aparências junto aos seus colegas ricos – obrigou-o a contrair dívidas que, como de costume, John Allan se recusou a pagar. Por essa época, o sr. Allan havia casado novamente (sua nova esposa, Louisa Gabriella Patterson, era aproximadamente vinte anos mais jovem que ele) e estava à espera de um herdeiro legítimo. Portanto, Edgar já não podia mais contar com a fortuna de seu pai adotivo. Então, resolvido a abandonar a Academia, começou a faltar às aulas, a não ir ao culto religioso... e, certo dia, desertou do posto da guarda. Em razão disso, o Tribunal Militar expulsou-o ignominiosamente de West Point.

Sem perda de tempo, Edgar dirigiu-se para Nova York, a fim de editar novo livro de poemas, dedicado ao corpo de cadetes da Academia Militar.

Em Nova York, Edgar quase morreu, vítima de um resfriado, tendo uma séria infecção do ouvido.
Sem dinheiro e sem outra alternativa, o poeta, mais uma vez, viu-se obrigado a apelar para John Allan. Não é necessário dizer que sua apelação foi totalmente em vão.

Edgar permaneceu em Nova York até a publicação de seu novo livro, Poems – Second Edition, com um prefácio dirigido ao “Querido B.”, sobre o qual algumas opiniões críticas do jovem autor foram pela primeira vez expostas.

No final de março de 1831, Edgar partiu de Nova York e foi para Baltimore, instalando-se de novo na casa de sua tia Maria Clemm, uma senhora bondosa e que, segundo Charles Baudelaire (1821-1867), era “o anjo da guarda do poeta”. O irmão de Edgar, William Henry, que faleceria em 1º de agosto de 1831 (ele entregara-se ao vício da bebida), ainda morava na casa da sra. Clemm. Nesse período, Edgar procurou dedicar-se à prosa (escreveu alguns contos). Também reatou seu romance com Mary Devereaux. No entanto, esse romance terminou bruscamente, no dia em que o poeta, embriagado, chicoteou o tio da moça.

Em outubro de 1833 veio, enfim, o primeiro sucesso concreto: Edgar ganhou, com o conto “Manuscrito Encontrado numa Garrafa”, o prêmio de cinqüenta dólares num concurso organizado pelo jornal Baltimore Saturday Visiter. O dinheiro supriu as terríveis necessidades da família; mas o efeito mais importante para a carreira de Poe veio de um eminente membro do júri, John P. Kennedy (1795-1870), homem muito rico, bondoso e que, tendo se afeiçoado pelo jovem autor, o recomendou a Thomas Wilkes White, diretor do Southern Literary Messenger, de Richmond.

White contratou imediatamente Edgar, que começou a colaborar com críticas e contos e, depois, foi convidado a ir para Richmond, como “redator para todo o serviço”. Data dessa época a única peça de Poe, Cenas de “Policiano” (Politian), talvez escrita por influência de John P. Kennedy, que era teatrólogo.

Também nessa época, Edgar e Virginia tornaram-se mais íntimos e, por volta do início de 1835, começaram a falar em casamento. Escandalizado, um parente de Virginia declarou que ela era ainda muito jovem para se casar e que estava disposto a cuidar dela até que completasse dezoito anos. Entretanto, Edgar tinha uma aliada preciosa na pessoa de sua tia Maria, que o amava como a um filho e a quem ele celebraria no poema “A Minha Mãe” (“To My Mother”,1849):

“Minha mãe verdadeira, que eu mal conheci,
Era só minha mãe; mas você, a meu ver,
Sendo a mãe da mulher que eu amei e perdi,
Mais querida se torna que a mãe natural.”
(tradução de Hélio do Soveral)

Contudo, os projetos matrimoniais foram deixados de lado, quando, em julho de 1835, Edgar aceitou o emprego no periódico de Thomas White.

Mais uma vez, Edgar estava em Richmond, onde seu pai adotivo havia morrido em 27 de março de 1834. O nome do poeta nem sequer fora mencionado no testamento.

Decidido a conquistar a glória a qualquer preço, Edgar atirou-se febrilmente ao trabalho. “Agora sou feliz e com uma excelente expectativa de triunfo”, escreveu ele a John P. Kennedy. Mas bastaram algumas poucas semanas, e novamente todos esses seus sentimentos mudaram. “Nesta altura, encontro-me num estado verdadeiramente lastimável”, declarou. “Sofro de uma depressão que jamais experimentei. Tenho lutado em vão contra a melancolia. Encontro-me, pois, num estado miserável, e ignoro o porquê.” Então, entregou-se à bebida e perdeu todo o interesse pelo trabalho. Sem outra alternativa, Thomas White o despediu.

Como sempre acontecia nos momentos de maior desespero e sem ter a quem recorrer, Edgar regressou a Baltimore, indo buscar refúgio na casa de “mamãe” Clemm. E, em 22 de setembro de 1835, realizou-se secretamente seu casamento com sua jovem prima. Nesse meio tempo, John P. Kennedy intercedeu junto de Thomas White, em favor de Edgar. White acabou readmitindo-o, com “uma advertência paternal” e a condição de ele comportar-se bem.

Edgar regressou a Richmond, acompanhado por sua esposa e sua tia; e foram morar numa pensão de propriedade de uma tal sra. Yarrington, na Praça do Capitólio.

A partir do outono de 1835, Edgar entregou-se a um trabalho tenaz e duro, como redator-auxiliar de Thomas White, no Southern Literary Messenger. E, em pouco tempo, a tiragem do periódico aumentou de setecentos para três mil exemplares; e Poe foi nomeado redator-chefe, tornando-se um dos jornalistas mais influentes do Sul dos Estados Unidos. Então, muitos de seus poemas foram republicados, depois de revistos (Poe parecia nunca estar satisfeito com o que escrevia e passou a vida inteira reescrevendo seus poemas). Por outro lado, diversas histórias – entre elas “Metzengerstein” – que pretendia publicar num volume intitulado Tales of the Folio Club, apareceram no Messenger e logo chamaram a atenção por causa de seu estilo mórbido e pelas descrições cheias de aspectos trágicos e macabros.

Foi nessa época que Edgar pôde casar-se oficialmente com Virginia, já que o primeiro matrimônio não tinha valor legal algum. E, em 16 de maio de 1836, Edgar Allan Poe, de 27 anos, desposava Virginia Clemm, que tinha quase quatorze anos. Uma testemunha complacente atestou, então, que a jovem tinha 21 anos! O pastor presbiteriano que oficializou a cerimônia devia estar com os dois olhos fechados, para não perceber que isso era uma mentira, uma vez que Virginia tinha a aparência de uma menina. O casamento foi realizado na pensão da sra. Yarrington.

O poeta encontrara, finalmente, uma família. Mas teria também encontrado a felicidade, a paz? A resposta é não. Novamente não conseguiu dominar seu espírito desassossegado, indo buscar refúgio no álcool e nas drogas. Suas crises passaram a ser mais constantes e violentas, caindo em terríveis fases de depressão que o faziam detestar sua profissão. Tinha fixação num projeto que o perseguia desde os tempos de Baltimore: ser o editor de um grande magazine literário (Poe foi, sem dúvida alguma, um dos primeiros homens no mundo a perceber as possibilidades do jornalismo moderno, no que se refere a um magazine). Começou a pensar em transferir-se para o Norte, um pouco devido à sua crescente fama e muito devido aos atritos cada vez mais freqüentes com Thomas White, em virtude de não haver cumprido o que prometera e embebedar-se constantemente.

Em janeiro de 1837, Edgar abandonou seu cargo no Southern Literary Messenger e partiu com a família para Nova York, indo morar num edifício na esquina da Sexta Avenida com a Praça Waverly, no mesmo andar em que residia o livreiro William Gowans (1803-1870), que muito o ajudaria. E o que levara Edgar a escolher Nova York para fixar residência? A resposta é muito simples: porque tinha ali alguns conhecidos (entre os quais, James Kirke Paulding, os irmãos Harper e o professor Charles Anthon), pessoas com quem fizera amizade por correspondência.

Uma dessas pessoas, o sr. Paulding, havia sugerido a Edgar, em fevereiro de 1836, que “ele deveriaescrever uma longa narrativa de cunho bem popular”. Lembrando-se dessa sugestão, Poe escreveu “Narrativa de Arthur Gordon Pym”, publicada em livro pelos irmãos Harper em 1838. O êxito do livro foi pequeno e não lhe trouxe nenhum dinheiro. Talvez isso o motivou a negociar com o sr. White a sua publicação, em forma de folhetim, no Southern Literary Messenger.

A despeito de sua fama, Edgar não conseguiu arrumar um emprego fixo. Assim, coube à bondosa sra. Maria Clemm a incumbência de sustentar a filha e o sobrinho. Ela alugou uma casa na Rua Carmine e passou a aceitar pensionistas.

Dizendo-se perseguido e incompreendido, Edgar estava reduzido à mais absoluta miséria. Porém, contava com a ajuda do livreiro Gowans, que, agora, era um dos pensionistas da sra. Clemm. E o livreiro o apresentou a alguns literatos, entre os quais um inglês de nome James Pedder, que não tinha o mínimo talento para escrever, mas tinha ligações com alguns magazines da Filadélfia, na época o grande centro editorial dos Estados Unidos. Pedder induziu Edgar a mudar-se para esta cidade, onde tinha duas irmãs que eram proprietárias de uma casa de cômodos, na Rua Doze. Assim, um pouco antes do final do agosto de 1838, Edgar, acompanhado por sua esposa, sua tia e James Pedder, mudou-se para a Filadélfia. A princípio, foram pensionistas das irmãs do sr. Pedder; entretanto, logo o poeta decidiu mudar para mais perto das livrarias e tipografias. Então, tinha em mente dois projetos: Primeiro Livro do Concologista ou Sistema de Malacologia dos Testáceos e uma coletânea com seus contos escolhidos. No primeiro, teria a seu cargo a editoração, mais um prefácio e uma introdução, tendo ainda de assiná-lo. Foi apenas um trabalho mercenário, que lhe rendeu cinqüenta dólares e ainda a acusação de haver plagiado o livro de um naturalista e malacologista inglês, o Capitão Thomas Brown (1785-1862). O segundo, Tales of the Grotesque and Arabesque, publicado em dois volumes em 1840, foi um fracasso total e não lhe rendeu um centavo sequer (tudo o que recebeu foram alguns exemplares para distribuir entre os amigos).

Por volta dos meados de 1839, Edgar arrumou um emprego fixo: escrever artigos sobre esportes e resenhas literárias no Burton’s Gentleman’s Magazine. Nessa publicação, cujo proprietário era o jornalista e empresário teatral William Evans Burton (1804-1860), apareceram algumas poesias de Poe (“A Alguém no Paraíso”/“To One in Paradise”, escrita em 1833, foi uma delas) e alguns contos importantes e famosos (“A Queda da Casa de Usher”, “William Wilson”, “Morella”, entre outros).
Nesse ínterim, Edgar também se correspondeu com algumas figuras notáveis das letras norte-americanas, entre as quais Washington Irving (1783-1859).

No entanto, a mente inquieta de Edgar levou-o a ansiar novamente poder possuir uma publicação própria. Então, em janeiro de 1841, ele lançou o prospecto do projeto do Penn Magazine, “um jornal literário mensal a ser redigido e publicado (por Edgar A. Poe) na Filadélfia. Nesse prospecto, expôs “toda a sua teoria a respeito de um magazine”. Era sua intenção, com o prospecto, sensibilizar futuros sócios para seu empreendimento. Contudo, não obteve sucesso algum e foi obrigado, uma vez mais, a aceitar um trabalho assalariado. Dessa vez, no Graham’s Magazine, recebendo um ordenado de oitocentos dólares por ano.

Em pouco tempo, graças à capacidade editorial de Edgar e à colaboração de notáveis redatores (todos contratados por Poe), a tiragem do Graham’s Magazine foi aumentada de cinco mil para quarenta mil exemplares. Durante o período em que ocupou o cargo de editor da revista (fevereiro de 1841 a abril de 1842), Edgar publicou alguns de seus melhores trabalhos e chamou a atenção do público e da crítica em geral. Tornou-se, então, vastamente conhecido como competente redator, crítico brilhante e severo, escritor de histórias arrepiantes e poeta. Mas logo voltou a almejar ser dono de seu próprio magazine e entregou-se à bebida, o que motivou “o notável e competentíssimo redator e antologista Rufus Wilmot Griswold” (1815-1857) ser contratado para seu cargo. Ao encontrar, certo dia, Griswold sentado em sua cadeira, Edgar abandonou a redação do Graham’s Magazine e nunca mais voltou, passando apenas a colaborar na publicação.

Em seguida, Edgar tentou encontrar emprego na alfândega da Filadélfia, contando com a ajuda de amigos influentes em Washington. Porém, uma malfadada visita à Casa Branca, em que compareceu completamente embriagado, pôs tudo a perder e nem mesmo seus amigos influentes puderam ajudá-lo.

Edgar estava na mais completa miséria. E ficou desesperado, vendo sua amada esposa definhar-se, devido à tuberculose. Recorreu, então, à bebida (há provas de que também começou a fazer uso do ópio).

Em 6 de abril de 1844, no auge do desespero e com pouco mais de quatro dólares no bolso, Edgar embarcou, com a família, para Nova York. Foram residir no número 130 da Rua Greenwich, numa pensão miserável.

Mesmo desesperado, Edgar conseguiu, ainda, forças para escrever para o jornal New York Sun uma balela – na época, as balelas estavam em voga e eram até incentivadas pelos editores –, “A Balela do Balão”, que se tornou um grande sucesso, permitindo à família se mudar para uma pensão de melhor aspecto.

Antes do final da primavera de 1844, um piedoso casal de irlandeses, os Brennans, proprietário de uma fazenda localizada na Estrada de Bloomingdale (hoje, no local, situa-se a Rua 84 e a Broadway), deu asilo para a família Poe. E foi nesse aprazível vale do Rio Hudson que Edgar concluiu seu famoso poema “O Corvo” (“The Raven”), no qual vinha trabalhando desde 1841-1842.

No verão de 1844, Edgar correspondeu-se com o escritor James Russell Lowell (1819-1891). E, no outono, estava novamente sem dinheiro. Então, a sra. Clemm resolveu procurar trabalho para Edgar e não foi difícil para ela convencer o bondoso sr. Nathaniel Parker Willis (1806-1867), editor do jornal Evening Mirror, de Nova York, a empregá-lo como redator.

Ainda que não fosse esse o tipo de trabalho que almejava, Edgar procurou valer-se dele em seu próprio benefício e, a fim de chamar atenção para si, fez rasgados elogios à poesia de certa srta. Elizabeth Barrett (depois, sra. Robert Browning) e iniciou uma polêmica com o poeta Henry Longfellow (1807-1882), a quem chamou de plagiador.

Embora o sr. Willis demonstrasse um especial carinho por ele, Edgar, desgostoso, já começava a pensar em abandonar suas medíocres funções. Foi quando Lowell apresentou-o a um grupo de jornalistas que estava prestes a lançar o Broadway Journal, financiado por um tal Briggs. Edgar foi logo contratado como redator geral. Assim, deixou a publicação do sr. Willis, “que se conservaria seu fiel amigo até o fim”.

Em 29 de janeiro de 1845, o Evening Mirror publicou o poema “O Corvo”, sem o nome do poeta. Foi um sucesso. E, na edição de 8 de fevereiro, o poema voltou a ser publicado, agora tendo o nome de seu autor. Foi o triunfo! O frisson! O público ficou literalmente galvanizado por tão insólita poesia. Finalmente o nome de Edgar Allan Poe estava ao lado dos maiores luminares das letras contemporâneas.

Esse sucesso literário veio acompanhado de um sucesso mundano. Edgar principiou a percorrer todos os Estados Unidos para declamar o seu grande sucesso. Foi um período de deslumbramento.

Foi também um período em que se apaixonou por diversas mulheres ligadas à Literatura. Uma dessas mulheres foi a bela poetisa Frances Sargent Osgood (1811-1850), esposa de um pintor de certo renome. Os dois eram vistos constantemente juntos. Devido ao escândalo provocado por sua ligação amorosa com Poe e também devido ao seu estado de tuberculosa, Frances teve de viajar para Albany, no estado de Nova York. Edgar a acompanhou; depois, viajaram a Boston e Providence. Nesta cidade, ele conheceu a sra. Sarah Helen Whitman (1803-1878), de certa reputação literária e de “considerável encanto”. O segundo poema “A Helena” (“To Helen”, 1848) celebra esse encontro.
Em outubro de 1845, Edgar obteve os direitos exclusivos do Broadway Journal, algo que nunca deveria ter feito. Investiu na publicação todo o seu dinheiro e, em pouco tempo, encontrou-se inadimplente. Procurou desesperadamente um sócio. Foi uma busca em vão e, não conseguindo resgatar uma letra de cinquenta dólares, desistiu da publicação.

Mais uma vez, “mamãe” Clemm acorreu em seu auxílio e levou-o para o campo, para Fordham. Foram habitar uma casinha de madeira, onde, na mais completa miséria, viveram da caridade dos vizinhos e dos donativos de pessoas piedosas.

Nessa época, uma das grandes alegrias do poeta era ouvir sua jovem esposa, Virginia – ela estava com a saúde cada vez mais debilitada –, cantar, sentada ao piano ou dedilhando a harpa. E, certa noite, a melodia se interrompeu bruscamente: um vaso dos pulmões de Virginia se rompera, e Edgar não ouviria “nunca mais” a voz que o enlevava. A partir daí, Virginia não podia mais suportar a menor mudança de temperatura e tinha necessidade de tratamentos que o marido não podia lhe dar, devido à falta de recursos. Em sua memória, Edgar compôs o angustiante “Ulalume” (“Ulalume: A Ballad”, 1847), que se inicia assim:

“O céu estava cinzento e sombrio;
e os pinheiros crispados, torcidos,
os pinheiros curvados, pendidos;
era a noite do inverno mais frio
que eu sofria nestes anos sofridos (...).”

Um pouco antes de Virginia morrer, a sra. Marie Louise Shew (1821-1877), uma amiga de Edgar dos tempos de Nova York, visitou-o. Então, encontrou a jovem esposa do poeta deitada numa cama de palha e enrolada num capote. Na casa, não havia alimento algum. Angustiada, Marie Louise fez “um apelo público pelos jornais, e imediatamente as necessidades da família foram aliviadas”.

Após a morte de Virginia, ocorrida em 30 de janeiro de 1847, a sra. Shew continuou visitando Edgar. “Mas se viu obrigada a retirar-se, devido às exigências amorosas de seu amigo.” Em homenagem a ela, Poe escreveu um poema.

Também em Fordham, Edgar redigiu Eureka, uma longa dissertação “semicientífica e metafísica”. Esse livro, publicado em 1848 por Geo P. Putnam, de Nova York, foi, como os demais, um fracasso editorial, apesar de Edgar já ser um nome famoso.

Durante todo o verão de 1847, Edgar Allan Poe fez uma série de conferências em diversas cidades. Numa dessas cidades, Lowell, no estado de Massachusetts, conheceu a sra. Annie Richmond (1820-1898), para quem escreveu o poema “Para Annie” (“For Annie”, 1849), que, em determinado trecho, diz o seguinte (a tradução é de Hélio do Soveral):

“Quietamente meu espírito aqui jaz,
no mais prático dos leitos,
aspirando, ou imaginando,
um odor de amores-perfeitos,
de alecrins e de puritanos
e virginais amores-perfeitos.
E, feliz, ele aqui descansa,
mergulhado num perene,
lindo sonho da constância
do amor da bela Annie,
aconchegado junto às tranças
e ao calor da bela Annie.
Ternamente, ela beijou-me,
disfarçando o seu receio;
foi, então, que eu quis dormir
docemente no seu seio,
quis dormir profundamente
no Nirvana do seu seio.”

Depois, em Fordham, Edgar reviu a sra. Sarah Helen Whitman. Imediatamente, começou a cortejá-la e enviou-lhe várias cartas apaixonadas. Chegou a pedi-la em casamento. Porém, a mulher relutou em aceitar o pedido, pressentindo que havia algo de artificial nessa paixão do poeta por ela. E seu pressentimento estava certo, pois, nem bem a pedira em casamento, Edgar voltou-se para a sra. Richmond, confessando-se “escravo de seus encantos”. Essa facilidade em apaixonar-se “perdidamente”pelas mulheres, levou o infeliz Edgar a um lastimável estado de espírito. E, em novembro de 1848, ele tentou suicidar-se, ingerindo láudano. Felizmente, a dose foi pequena e provocou apenas vômitos.

Então, Edgar retornou a Fordham, para receber os cuidados confortadores de “mamãe” Clemm. Depois, voltou a procurar a sra. Whitman. Seu estado, na ocasião, era deplorável; e, devido a isso e pressionada pelos parentes, a mulher descartou-o.

Nesse meio tempo, as editoras para as quais Edgar trabalhava faliram; e ele ficou sem receber pelos manuscritos remetidos. Passou a delirar, imaginando-se proprietário de The Stylus, “o jornal literário mais importante do mundo”. Nesses delírios, via também “o rosto diáfano de uma mulher minada pela tísica”. Foi mais ou menos nessa época que ele escreveu: “Há seis anos, uma mulher que eu amava como jamais amou outro homem teve uma corda vocal partida, quando cantava. Temeu-se pela sua vida. Comecei então a separar-me dela pouco a pouco e para sempre. Um ano mais tarde, a corda tornou a romper-se; e eu voltei a sofrer o mesmo suplício. Depois, uma vez ainda, e outra... e mais outra. Cada crise da doença me fazia amá-la com mais ternura e me acorrentava à sua vida com obstinação cada vez maior e mais desesperada. E sofri toda a agonia de sua morte.”

Refeito, “mas um fantasma de si mesmo”, e sempre pensando em seu jornal literário, o fantástico The Stylus, Edgar deixou a sra. Clemm em Nova York, sob os cuidados de uma poetisa amiga e partiu para uma série de conferências em Richmond e Norfolk. Numa dessas viagens, encontrou-se com a sra. Shelton, em solteira Sarah Elmira Royster, um de seus primeiros amores.

Edgar e Elmira haviam se conhecido por volta de 1824. Ele era, então, um rapaz bonito – de semblante quase sempre tristonho – e pouco comunicativo. Tinha uma conversa verdadeiramente empolgante, quando discorria sobre temas que lhe interessavam, porque se inflamava, tomado de um entusiasmo impetuoso. Assim, era o Edgar Poe que Elmira conhecera. Mas o namoro dos dois durou pouco. O pai da jovem os separou. Mantiveram, contudo, contatos esporádicos. Trocavam entre si cartas em que juravam amor eterno um pelo outro. No entanto, o sr. Royster não era tolo. Interceptou várias dessas cartas e terminou casando a filha com um comerciante idoso chamado A. Barrett Shelton, que era justamente o oposto de Edgar: pouco inteligente, mas rico. Agora, mais de vinte anos depois, o amor entre Edgar e Elmira reflorescia. Porém, em que circunstâncias? “Por causa de The Stylus, escreveu uma das supostas amigas do poeta. “Poe tinha, antes de tudo, absoluta necessidade de dinheiro. Todo o resto dependia disso. O dinheiro era indispensável para ele, não lhe importando o sacrifício que tivesse de fazer. Foi assim que nasceu ‘o negócio Shelton’.” A sra. Shelton era uma mulher muito respeitável, embora de maneiras fúteis e espírito vulgar. E não possuía os encantos capazes de atrair um homem do gosto e do temperamento de Edgar. Portanto, o poeta reaproximou-se dela mais como um caçador de dotes que como um cavalheiro. E apressou-se em lhe falar de certo retrato que lhe tirara quando jovem e que conservava como a coisa que lhe era mais preciosa no mundo. Disse também que iria escrever para “mamãe” Clemm e pediria a ela para enviar, o mais depressa possível, o tal retrato. E assim o fez. No entanto, não esqueceu de indicar na carta a resposta que sua “mamãezinha” deveria lhe dar: “Eis o que deve me escrever textualmente: ‘Procurei com pertinácia o retrato da sra. Shelton, mas não consegui encontrá-lo em parte alguma. Rebusquei em todas as gavetas, folheei todos os livros, um por um; e, se não foi Elisa White que o levou, então não sei que rumo teve. A última vez que o vi foi nas mãos dela. No entanto, a cópia que tu manchaste de tinta deveria estar ainda aqui. Tentarei encontrá-la.’” Na verdade, Edgar tinha necessidade de recorrer a semelhante estratagema, pois a viúva estava muito bem impressionada com ele. “Era um dos homens mais sedutores que conheci. Admirava-o mais que a qualquer outro”, confessaria ela mais tarde. Com amor verdadeiro ou fingido, o casamento foi finalmente marcado para 17 de outubro de 1849.

Edgar apressou-se em partir para Nova York. Devia ir procurar “mamãe” Clemm e também ver um editor.

Em 27 de setembro de 1849, Edgar partiu para Nova York. Fez uma parada em Baltimore, para visitar um amigo, o dr. Nathan C. Brooks. Já estava meio embriagado. Depois, encontraram-no desmaiado e sem bagagem no expresso para Filadélfia e mandaram-no de volta para Baltimore. Quando ele chegou a Baltimore, realizava-se eleição para membros do Congresso e representantes do Legislativo estadual. As práticas políticas eram, então, as mais primitivas e grosseiras que se possam imaginar. Para votar não eram necessários título de eleitor e listas de votantes. Bastava a pessoa apresentar-se num escritório eleitoral e, ali, na presença de testemunhas, jurar que ainda não havia votado (assim, uma pessoa podia votar várias vezes, em lugares diferentes). Quadrilhas de malfeitores infestavam a cidade, a fim de conseguir o maior número de eleitores para esse ou aquele candidato ou partido. E o infeliz Edgar caiu nas garras de um desses bandos, que o levou às mais sórdidas tabernas e o embebedou com todo tipo de bebida alcoólica. Não demorou muito, e Edgar sofreu um ataque de delirium tremens. Então, seus carrascos involuntários abandonaram-no, já meio morto, numa viela. Foi encontrado, em 3 de outubro, por um tipógrafo do Baltimore Sun, Joseph W. Walker, que chamou o dr. James E. Snodgrass, único nome que conseguiu arrancar daquele farrapo humano. Assim que viu Edgar (“Seu rosto estava macilento, para não dizer entumecido, e sujo; seu cabelo, despenteado; e toda a sua aparência física, repulsiva. Estava sem colete e sem colarinho, enquanto o peito da camisa mostrava-se tão amarrotado quanto horrivelmente sujo...”), o dr. Snodgrass mandou-o para o Hospital Washington.

Edgar manteve-se em coma durante vários dias. De quando em quando, delirava, chamando repetidas vezes um tal Reynolds (possivelmente, J. N. Reynolds, ligado a um projeto de exploração dos mares polares do Sul. Edgar mostrara-se interessado por isso, por volta de 1837-1838. Talvez tenha até entrevistado Reynolds, em Nova York, quando “Narrativa de Arthur Gordon Pym” foi publicado); e, depois, acalmava-se. “O meu melhor amigo será aquele que me fizer saltar os miolos”, murmurou ele, desesperado, ao médico de plantão, o dr. J. J. Moran, num dos raros momentos em que esteve consciente. Então, voltou a delirar e falou: “As abóbadas do céu esmagam-me! Deixem-me ir embora! Deus escreveu legivelmente os seus decretos nas frontes das criaturas humanas... Os demônios apoderam-se de um corpo... eles têm por cárcere as vagas turbilhonantes do mais negro desespero. Já entrevejo o porto para além do abismo... Onde ficou a lama, a miséria? A calma eterna... sumiram-se as margens!” Em seguida, aquietou-se e pareceu repousar. Depois, moveu lentamente a cabeça na direção do médico e disse: “Senhor, amparai minha pobre alma.” E soltou seu último suspiro. Era a madrugada de 7 de outubro de 1849, um domingo.

Apenas dez pessoas acompanharam o funeral de Edgar Allan Poe, sepultado quase furtivamente no cemitério presbiteriano de Baltimore. Colocaram sobre a sua tumba um bloco de granito sem qualquer inscrição – apenas o número 80 e nada mais. Um dos grandes gênios da humanidade teve de esperar 26 anos até que lhe erigissem um túmulo decente. E foi ao poeta simbolista francês Stéphane Mallarmé (1842-1898) que se ficou devendo o soneto comemorativo mais belo e a um escritor inglês, Swinburne (1837-1909), a carta mais ardente.

Uma versão resumida deste artigo foi publicada no número 23 da revista Conhecimento Prático Literatura.