A VIDA E A OBRA DE EDGAR
ALLAN POE
artigo de Rubens Francisco Lucchetti
Dedico este artigo ao
meu
inesquecível amigo Hélio
do Soveral, que, como eu,
tinha Edgar Allan Poe como seu ídolo maior
Há duzentos anos, em 19 de janeiro de 1809, no número 33 da
Rua Hollis, em Boston, Massachusetts, nascia Edgar Allan Poe. Seus pais, dois
atores pobres, David Poe Jr. e Elizabeth Poe (nascida Elizabeth Arnold),
achavam-se cumprindo contrato, num teatro de Boston; e sua carreira errante –
viajando em carroções desconjuntados das companhias teatrais, que trilhavam
caminhos tortuosos, empoeirados ou lamacentos; descendo rios a bordo de
vetustos barcos fluviais, que carregavam uma profusão de bagagens e cenários
rústicos; dormindo muitas vezes ao relento, sob a luz das estrelas – permitiram
ao pequeno Edgar travar, desde muito cedo, contato com a vida sofrida dos
deserdados da sorte. E essa vida nômade e movimentada perseguiria Edgar por
todo o sempre. “Quando sou atacado”, escreveu ele,
certa vez, “por um dos meus acessos de vagabundagem (e
como eu conheço bem essa tendência que me impele a errar durante uma semana ou
um mês sem descanso), não poderia, nem verdadeiramente desejaria, resistir a
esse apelo, nem mesmo para agradecer ao Grão Mogol, se este me declarasse único
legatário dos seus bens.”
David Poe Jr. era de ascendência irlandesa, provinha de uma família que
emigrara para os Estados Unidos por volta de 1748 e que distinguira-se durante
a Independência Americana. Destinado pelos seus à magistratura, tudo abandonou
para seguir sua vocação: o teatro (sua estréia nos palcos ocorreu em
Charleston, na Carolina do Sul, em 1803). Uma notícia da época descreve-o como
sendo uma pessoa extremamente tímida, ao passo que
“sua voz clara e melodiosa, só se revela quando ele representa libertado de sua
timidez. Sua dicção parece bem distinta e articulada, e seu rosto e sua pessoa
dizem muito a seu favor. Seu tamanho é daquele porte bem adequado à ação geral,
se seu talento se adaptasse ao soco e ao coturno...”
Ao que se sabe, essa é a única descrição do aspecto físico do pai do poeta. Não
se conhece também nenhum retrato dele. E suas qualidades de ator eram – quando
muito – limitadas.
Quanto à mãe de Edgar Allan Poe, nasceu na primavera de
1787, em Londres. Era filha de Henry Arnold e de Elizabeth Arnold (nascida
Elizabeth Smith), atores do teatro de Covent Garden. Henry Arnold faleceu em
1789; e, em novembro de 1795, a sra. Arnold mudou-se com a filha para os
Estados Unidos, desembarcando em Boston. Foi nessa cidade que ela deu
prosseguimento à sua carreira profissional e logo conheceu um ator chamado
Charles Tubbs, também inglês – “de poucos dotes e pouco
caráter” –, com quem se casou em segunda núpcias. O casal apresentou-se,
cantando e dançando, em diversas cidades norte-americanas. E a pequena
Elizabeth Arnold, cuja estréia nos palcos teatrais ocorreu quando tinha apenas
nove anos de idade, atuava em papéis infantis e, posteriormente, juvenis, em
todas as companhias que sua família ingressava. A partir de 1798, nada mais se
soube a respeito do casal de atores; porém, a jovem Elizabeth fez carreira e
logo seu nome começou a aparecer com destaque nos cartazes e nos jornais. E, no
verão de 1802, durante uma de suas viagens como atriz, ela se casou com o
também ator G. D. Hopkins. Ele faleceu em outubro de 1805; e, seis meses
depois, Elizabeth casaria-se com David Poe Jr.
Com Hopkins, Elizabeth não teve filhos; no entanto, com o segundo marido, teve
três: William Henry Leonard, nascido em 30 de janeiro de 1807, em Boston;
Edgar; e Rosalie, que veio ao mundo em 1810 (ela faleceria em 1874), em
Norfolk, na Virgínia.
Devido à pobreza deles, o casal Poe deixou o primeiro filho aos cuidados da
cunhada, Maria Clemm (1790-1871), e partiu para Nova York, onde, segundo Hervey
Allen (no livro Israfel – Vida e Obra de Edgar Allan Poe), “David Poe Jr. morreu ou abandonou a esposa
(provavelmente fez esta última coisa). Desamparada e tendo de sustentar o
menino Edgar, Elizabeth, algum tempo depois, deu à luz uma menina. Lançou-se
suspeita, mais tarde, a respeito da paternidade dessa última criança e sobre a
reputação da sra. Poe. (...) Não é preciso dizer que tal
suspeita era injusta”.
Com a saúde minada pelos sucessivos partos – ela é descrita como “uma mulher franzina, com grandes olhos
misteriosos e longos cabelos anelados de um negro azeviche, estatura
insignificante, membros frágeis e uma fisionomia altiva” (descrição
essa que muito se assemelha às das mulheres que povoam os contos de seu filho
Edgar) – e vendo-se na mais absoluta miséria, Elizabeth arrastou Edgar e
Rosalie para a última etapa de seu calvário: Richmond, na Virgínia.
Certo dia, ao visitarem-na, várias pessoas encontraram-na enferma, estendida
sobre o leito. Ela estava no apogeu da decadência – sem dinheiro, sem conforto
e sem o que comer. As duas crianças, com as faces marcadas pela fome, estavam
nuas e choravam sem parar.
Em 7 de dezembro de 1811, os jornais anunciaram um recital em benefício de
Elizabeth Arnold Poe. Ela, porém, exalou o último suspiro no dia seguinte –
vitimada possivelmente pela pneumonia ou a tuberculose –, com apenas 24 anos de
idade. Edgar e Rosalie foram amparados pelos membros da companhia teatral em
que trabalhava Elizabeth.
Mas o infortúnio, tal qual a Máscara da Morte Rubra, achava-se à espreita. E,
poucos dias após a morte da mãe, novo terrível acontecimento atingiu os
infelizes órfãos: na noite de Santo Estevão, o teatro onde alguns dias antes
fora realizado o recital em favor da sra. Poe foi destruído por um pavoroso
incêndio, no qual sessenta espectadores perderam a vida. Os atores viram-se
forçados a ir procurar trabalho em outras paragens, confiando os filhos de
Elizabeth Arnold Poe à burguesia local.
É necessário acentuar esses dias de infortúnio, para que se possa compreender
em parte a existência dramática e o gênio incomum de Edgar Allan Poe, que
trazia, desde o berço, o estigma de um alcoolismo que muitos de seus biógrafos
dizem ser hereditário. Durante toda a sua existência, Poe travou uma luta sem
fim contra dois instintos antípodas: de um lado a firme resolução de não beber;
e de outro a depressão e a morbidez funesta que o intoxicavam de complexos e da
irresistível compulsão de procurar na bebida um estimulante, sendo, então,
protagonista das mais humilhantes e asquerosas cenas a que um ser humano pode
se entregar. A todo momento quebrava as promessas que fazia para se corrigir, e
os atos que comprometiam e afeiavam seu nome desanimavam todos aqueles que se
esforçavam em furtá-lo àquela degradante vida.
Entretanto, sua existência, despida de sorrisos, foi favorecida... Com cerca de dois anos de idade, Edgar foi levado para a casa de um abastado negociante (de tabaco) de origem escocesa, John Allan (1780-1834).
Entretanto, sua existência, despida de sorrisos, foi favorecida... Com cerca de dois anos de idade, Edgar foi levado para a casa de um abastado negociante (de tabaco) de origem escocesa, John Allan (1780-1834).
Quanto à pequenina Rosalie, recebeu abrigo na residência do
casal William e Jane Scott Mackenzie. Os Allans e os Mackenzies eram amigos
íntimos e vizinhos. As crianças acabaram ficando nessas casas (na casa dos
Allans, “flutuava o perfume do tabaco e do
punch, e também o odor dos escravos”), o que, com o correr do
tempo, tornou-se equivalente a uma adoção. E, apesar da oposição do sr. Allan,
Edgar foi batizado na Igreja Presbiteriana e acrescentaram ao seu nome o
sobrenome de seu pai adotivo.
Frances
Keeling Valentine Allan (1784-1829), esposa de John Allan, não tinha filhos,
embora estivesse casada desde 1803. Por isso, ela e a irmã, Anne Moore
Valentine, cercaram a criança de um afeto sufocante, satisfazendo-lhe todos os
desejos. “A minha palavra era lei em
toda a casa”,
revelou Edgar, em certa ocasião. “E,
na idade em que poucas crianças são arrancadas às saias da mãe, eu, senhor dos
meus atos, podia entregar-me aos impulsos da minha vontade.”
Em 1815, no dia posterior
ao da derrota de Napoleão, John Allan, que estava com os negócios comprometidos
devido ao bloqueio naval imposto pelos ingleses durante a Segunda Guerra da
Independência Americana, resolveu tentar a vida na Inglaterra. Instalou-se com
a mulher em Londres; e Edgar foi mandado primeiro para a casa da severa sra.
Mary Allan (ela era uma das irmãs de John Allan), em Irvine, na Escócia.
Depois, o menino foi matriculado numa escola para meninas, em Londres; e, mais
tarde, transferido para o colégio do reverendo John Bransby, em Stoke Newington
(o lugar foi assim descrito por Poe: “Uma
aldeia afogada numa multidão de árvores gigantescas e nodosas e onde todas as
casas parecem excessivamente velhas”).
Mas os negócios de John
Allan não se desenvolveram da forma como ele esperava; e, por outro lado, o
clima úmido da Inglaterra foi nocivo à saúde frágil de sua esposa. Assim, em
1820, os Allans regressaram aos Estados Unidos, ou melhor, voltaram para
Richmond. Porém, se os cinco anos passados na Inglaterra não correram para John
Allan da maneira que ele esperava, trouxeram algum benefício a Edgar, que teve
algumas noções de Francês, Latim, História e Literatura. Não foi muita coisa,
mas serviu para enriquecer sua fértil imaginação, impressionada pelos castelos
misteriosos, pelas casas decrépitas, pelas cavas úmidas e pelos corredores escuros,
onde ele pressentia a presença do sobrenatural. São essas experiências que nos
auxiliam a compreender certos aspectos de sua obra: o gosto pelo macabro e pelo
misterioso, a atmosfera medieval existente em seus contos. Isso me faz recordar
das palavras do sr. Dante Regis Vita, num antigo texto: “Beleza esquisita, imagens estranhas tocadas de
sombras de tragédia, histórias cheias de mistério as de Edgar Allan Poe.”
Embora John Allan tivesse
de se desfazer de parte de seus bens para satisfazer os credores, a vida da
família Allan continuou a ser confortável (sobretudo a partir de 1825, quando
John Allan recebeu de herança uma quantia considerável). Edgar foi mandado para
uma escola freqüentada pelos filhos das melhores famílias de Richmond. Ali,
sobressaiu-se em línguas, oratória, representações teatrais e realizou algumas
notáveis façanhas na natação. Com treze anos, começou a escrever poesias. Em
1823, tornou-se amigo íntimo de seu colega de escola, Robert Craig Stanard
(1814-1857), cuja mãe, Jane Stith Stanard, “tomou de terno interesse pelo brilhante jovem,
afeição que foi ardente e romanticamente retribuída”. Foi para a sra. Stanard que Poe
dedicou, depois, seu poema “Para Helena” (“To Helen”,1831), que começa assim: “Tua beleza, Helena, é para mim...”
Entretanto – não demorou
muito –, nova tragédia abateu-se sobre o jovem poeta: a morte da sra. Stanard
(ela morreu aos 31 anos de idade, tuberculosa e louca ), em 28 de abril de
1824. O golpe atingiu Edgar de forma tão intensa que ele, à noite, passou a
rondar o túmulo da mulher, no cemitério solitário. E, ao que se sabe, a
lembrança de Jane Stanard jamais o abandonaria.
Após a morte da sra. Stanard e praticamente durante toda a sua vida, Poe apaixonou-se platonicamente por inúmeras mulheres. A primeira delas foi uma jovem vizinha, Sarah Elmira Royster (1810-1888), de quem chegou a ficar noivo em segredo.
Após a morte da sra. Stanard e praticamente durante toda a sua vida, Poe apaixonou-se platonicamente por inúmeras mulheres. A primeira delas foi uma jovem vizinha, Sarah Elmira Royster (1810-1888), de quem chegou a ficar noivo em segredo.
Em fevereiro de 1826, John
Allan inscreveu o filho na Faculdade de Línguas Mortas e Vivas da Universidade
de Virgínia, fundada em Charlottesville por Thomas Jefferson (1743-1826). O
jovem estudante fez brilhantes progressos nos estudos, mas foi por essa época
que começou a beber. Exatamente como acontecia nos prestigiosos colleges ingleses da época, os jogos de azar, o álcool, o
ópio, o láudano, as mulheres e os duelos eram as principais distrações dos
estudantes na Universidade de Virgínia. Não demorou muito tempo, e Edgar
esgotou os dólares que John Allan lhe dera. Mas não foi o suficiente para
fazê-lo abandonar os vícios. E, assim, afundou-se mais e mais em dívidas.
Esse comportamento
desagradou John Allan; e, ao tomar conhecimento desses acontecimentos, o sr.
Royster mandou a filha para fora por algum tempo, a fim de afastá-la de Edgar.
No Natal desse mesmo ano,
Edgar teve uma violenta discussão com o pai adotivo, que se recusou a pagar-lhe
as dívidas, que ultrapassavam os dois mil dólares. Em seguida, John Allan tirou
Edgar da universidade e tentou fazê-lo interessar-se pelo mundo dos negócios.
Não conseguiu seu intento. As discussões entre ambos tornaram-se frequentes. E,
num ímpeto de arrogância, em 19 de março de 1827, Edgar abandonou a casa
paterna, mudando-se para um sórdido hotel, a Taverna do Tribunal. Era o fim de
uma vida abastada. Daquele dia em diante, Edgar teria de lutar pela própria
sobrevivência. Chegou a escrever para o pai uma carta “cheia de dignidade”; porém, John Allan sequer lhe
respondeu. A sra. Frances Allan, imbuída do sentimento maternal, tentou
interceder em favor de Edgar. Foi em vão. Então, a fim de minimizar as agruras
do filho adotivo, mandou-lhe algum dinheiro, por intermédio de um de seus
escravos. De posse desse dinheiro e adotando o nome de Henri Le Rennét, Edgar
abandonou Richmond com um amigo, Ebenezer Burling (1807-1832), e foi para
Norfolk. Lá, separou-se de Burling e prosseguiu viagem num navio até Boston,
onde chegou praticamente sem dinheiro em abril de 1827. O que aconteceu depois
pode ser descrito como:
A BALELA GREGA DE POE
“Algumas deploráveis dívidas de jogo originaram
uma desavença entre Edgar e seu pai adotivo. E Edgar, que possuía uma dose
fortíssima de romantismo em sua mente impressionável, concebeu o projeto de se
imiscuir na guerra dos Helenos, alistando-se no exército grego para combater os
turcos. Partiu, pois, para a Grécia. Em que se tornou ele no Oriente? Que fez?
Visitou as praias clássicas do Mediterrâneo? Por que iremos encontrá-lo em São
Petersburgo, sem passaporte, envolvido num negócio escuso e forçado a apelar
para o embaixador americano, Henry Middleton, a fim de escapar à justiça russa
e regressar à sua pátria? Mistério! Há aqui uma lacuna que só ele próprio
saberia preencher.” Essas palavras foram escritas por Charles Baudelaire
em sua biografia de Edgar Allan Poe.
Em 1827, Edgar cerrava
definitivamente atrás de si a porta da casa de John e Frances Allan. Foi,
então, para Boston, onde publicou um pequeno volume de poesias, que, em sua
opinião, se destinava a revolucionar o tranquilo mundo das letras
norte-americanas. No entanto, a América não o compreendeu, não se sentiu
subjugada pelo seu jovem gênio. Ei-lo, portanto, só, decepcionado, sem família
e sem pátria. Só lhe restava uma única alternativa: procurar a glória em outra
parte. Iria, assim, qual novo Lord Byron, combater pela independência dos
gregos e retornar ao seu país coberto de louros. Que fez, então? Persuadiu um
amigo, Ebenezer Burling, a partir com ele. Os dois embarcaram num navio, com
destino à Europa. Na última hora, o amigo desistiu. Edgar foi sozinho e desembarcou
na Grécia. Lutou. Foi ferido. E misteriosamente chegou a São Petersburgo, na
Rússia, de onde escreveu dúzias de cartas a seus amigos nos Estados Unidos. No
entanto, na Rússia, as coisas não foram muito bem. Viu-se implicado em obscuras
histórias políticas. Envolveu-se com anarquistas e revolucionários, o que
motivou uma sentença de deportação para a Sibéria. A fim de evitar essa
deportação, o embaixador norte-americano teve de intervir. Entretanto, o
calvário de Edgar não terminaria aí. No momento de embarcar de retorno à
América (isso após viajar pela Alemanha, Itália, França e Inglaterra),
encontrou meio de se meter noutro vespeiro. As informações a esse respeito são
um tanto obscuras. Sabe-se apenas que foi ferido num duelo (possivelmente, teve
de duelar com algum marido ultrajado). E foi somente graças ao desvelo de uma
riquíssima condessa escocesa que pôde rever o solo dos Estados Unidos. E narrou
essas e outras peripécias num romance, Vida de um Artista em Seu País e no Estrangeiro.
Mas tudo isso não passa de
uma grande invenção. É tudo falso. Edgar não fez viagem alguma à Europa; na
verdade, nem saiu da América. E a aventura que ele imaginou na Grécia aconteceu
em seu próprio país: adotando o nome de Edgar A. Perry (nascido em Boston, em
1805), alistou-se no Exército dos Estados Unidos. E Edgar A. Perry logo
desapareceu de circulação, eclipsando-se na guarnição do perdido Forte
Moultrie, na Ilha Sullivan, na Carolina do Norte.
Em Boston, Edgar começou a
escrever para um jornal e, sob um nome falso, ficou conhecendo um jovem
impressor, Calvin F. S. Thomas (1808-1876), ainda inexperiente no ramo
tipográfico. Valendo-se disso, Edgar convenceu-o a imprimir um pequeno volume
de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827), e, como não teve
condições de pagar a edição – de quinhentos exemplares –, coube-lhe apenas umas
poucas cópias (o restante foi possivelmente destruído). Esse volumezinho (tendo
como autor um bostoniano e contendo poesias que, nos dias
de hoje, são famosas) não teve repercussão alguma na época (a imprensa
dedicou-lhe tão-somente duas notas). Frustrado e sem dinheiro, Edgar alistou-se
no Exército dos Estados Unidos, em 26 de maio de 1827, usando o nome falso de
Edgar A. Perry. Foi destacado para a Bateria H do 1º Regimento de Artilharia
dos Estados Unidos e passou todo o verão de 1827 no acampamento do Forte
Moultrie.
Edgar permaneceu no Exército de maio de 1827 a abril de
1829. E, logo nos primeiros dias, os oficiais perceberam que ele tinha aptidão
para os serviços de escritório. Não era um trabalho estafante e propiciava-lhe
muito tempo livre, possibilitando-lhe ler, escrever poesias (data dessa época
seu poema “Al Aaraaf”) e vaguear pelas praias (muitos anos mais tarde, ele se
valeria dessas recordações nas praias da Ilha Sullivan para escrever “O
Escaravelho de Ouro”). E, devido à sua boa conduta, chegou a primeiro-sargento.
Mas não demorou para perceber que estava desperdiçando sua vida no Exército.
Assim, numa tentativa de regressar à vida civil, escreveu uma carta a John
Allan, pedindo-lhe perdão e permissão para voltar ao lar. Porém, seus rogos não
obtiveram sucesso algum; e, em dezembro de 1828, seu regimento recebeu ordem
para seguir para o Forte Monroe, na Virgínia.
Sem possibilidades de retornar ao lar, restou a Edgar apenas uma alternativa: a
de alistar-se na Academia Militar de West Point. Para isso contou com o apoio
de alguns oficiais de seu regimento. Eles tomaram para si a incumbência de
intercederem junto de John Allan, em favor de Edgar. Mas o sr. Allan manteve-se
irredutível, sequer cedendo aos rogos da esposa moribunda, que desejava ver seu
“querido menino”.
Quando Edgar teve permissão de regressar à casa do pai adotivo, já era tarde
demais: “tudo quanto mais ele amava no mundo se achava sepultado”
(sua mãe adotiva morrera em 28 de fevereiro de 1829).
Quanto a John Allan, viu-se obrigado a uma “reconciliação”
com o filho adotivo – ele prometera à esposa, poucos minutos antes de ela
morrer, “não abandonar Edgar”.
Por volta de abril de 1829, Edgar embarcou para Washington, levando na bagagem
algumas cartas de recomendação de seus oficiais e uma de John Allan, que, entre
outras coisas, dizia: “Francamente, senhor, declaro
que não tenho com ele nenhum parentesco.”
Contudo, as formalidades burocráticas para a admissão de Edgar em West Point
arrastaram-se por semanas, meses. Ele partiu, então, para Baltimore e
instalou-se na casa de Maria Clemm, irmã de seu pai. E, nessa casa, ficou
conhecendo sua avó paterna, que tinha já uma idade avançada e estava
paralítica; e reencontrou seu irmão, William Henry, que fora marinheiro. Também
conheceu sua priminha Virginia, que tinha apenas sete anos de idade (ela nasceu
em 22 de agosto de 1822). Imediatamente, estabeleceu-se entre os dois primos
uma estranha relação fraternal. Edgar acompanhava a menina em longos passeios,
contando-lhe maravilhosas histórias que ele mesmo imaginava, e serviu-se dela
para permutar cartinhas melosas com uma jovem vizinha, Mary Devereaux.
Esse foi um dos raros períodos felizes da vida de Edgar. A sorte sorriu-lhe
também no campo literário. Logo após uma apreciação favorável do crítico John
Neal (1793-1876), nas edições de setembro e dezembro de 1829 da Yankee and Boston Literary Gazette,
o seu poema “Al Aaraaf” foi editado, juntamente com Tamerlane
and Other Poems, pela Hatch & Dunning. Não era exatamente a
glória, mas pelo menos Edgar já não era mais um desconhecido no mundo das
letras.
Talvez esse acontecimento tenha servido para abrandar o coração do sr. John Allan (todavia, acreditamos que tenha sido mesmo a perspectiva de o filho adotivo estar prestes a ingressar na prestigiosa Academia Militar de West Point), que permitiu que Edgar regressasse à sua casa em janeiro de 1830. O poeta pôde, ainda que por pouco tempo, voltar ao fausto.
Talvez esse acontecimento tenha servido para abrandar o coração do sr. John Allan (todavia, acreditamos que tenha sido mesmo a perspectiva de o filho adotivo estar prestes a ingressar na prestigiosa Academia Militar de West Point), que permitiu que Edgar regressasse à sua casa em janeiro de 1830. O poeta pôde, ainda que por pouco tempo, voltar ao fausto.
Finalmente, em março de 1830 chegou a esperada nomeação de Edgar para a
Academia Militar. Os exames de admissão aconteceriam no final de junho; e, em
maio, Edgar despediu-se de John Allan e partiu para West Point. Fez uma parada
em Baltimore, para visitar seus parentes. E em 1º de julho de 1830 prestou o
juramento, sendo admitido na Academia Militar de West Point, onde permaneceria
até fevereiro de 1831.
Nos primeiros meses em West Point, Edgar declarou-se “extremamente satisfeito com tudo e com
todos”. Porém, a vida dispendiosa
que sustentava – para poder manter as aparências junto aos seus colegas ricos –
obrigou-o a contrair dívidas que, como de costume, John Allan se recusou a
pagar. Por essa época, o sr. Allan havia casado novamente (sua nova esposa,
Louisa Gabriella Patterson, era aproximadamente vinte anos mais jovem que ele)
e estava à espera de um herdeiro legítimo. Portanto, Edgar já não podia mais
contar com a fortuna de seu pai adotivo. Então, resolvido a abandonar a
Academia, começou a faltar às aulas, a não ir ao culto religioso... e, certo
dia, desertou do posto da guarda. Em razão disso, o Tribunal Militar expulsou-o
ignominiosamente de West Point.
Sem perda de tempo, Edgar dirigiu-se para Nova
York, a fim de editar novo livro de poemas, dedicado ao corpo de cadetes da
Academia Militar.
Em Nova York, Edgar quase morreu, vítima de um resfriado, tendo uma séria
infecção do ouvido.
Sem dinheiro e sem outra alternativa, o poeta, mais uma vez, viu-se obrigado a apelar para John Allan. Não é necessário dizer que sua apelação foi totalmente em vão.
Sem dinheiro e sem outra alternativa, o poeta, mais uma vez, viu-se obrigado a apelar para John Allan. Não é necessário dizer que sua apelação foi totalmente em vão.
Edgar permaneceu em Nova York até a publicação de seu novo livro, Poems – Second Edition, com um
prefácio dirigido ao “Querido B.”,
sobre o qual algumas opiniões críticas do jovem autor foram pela primeira vez
expostas.
No final de março de 1831, Edgar partiu de Nova York e foi
para Baltimore, instalando-se de novo na casa de sua tia Maria Clemm, uma
senhora bondosa e que, segundo Charles Baudelaire (1821-1867), era “o anjo da guarda do poeta”. O
irmão de Edgar, William Henry, que faleceria em 1º de agosto de 1831 (ele
entregara-se ao vício da bebida), ainda morava na casa da sra. Clemm. Nesse período, Edgar procurou dedicar-se à prosa (escreveu alguns contos).
Também reatou seu romance com Mary Devereaux. No entanto, esse romance terminou
bruscamente, no dia em que o poeta, embriagado, chicoteou o tio da moça.
Em outubro de 1833 veio, enfim, o primeiro sucesso concreto: Edgar ganhou, com
o conto “Manuscrito Encontrado numa Garrafa”, o prêmio de cinqüenta dólares num
concurso organizado pelo jornal Baltimore Saturday Visiter.
O dinheiro supriu as terríveis necessidades da família; mas o efeito mais
importante para a carreira de Poe veio de um eminente membro do júri, John P.
Kennedy (1795-1870), homem muito rico, bondoso e que, tendo se afeiçoado pelo
jovem autor, o recomendou a Thomas Wilkes White, diretor do Southern Literary Messenger, de
Richmond.
White contratou imediatamente Edgar, que começou a colaborar com críticas e
contos e, depois, foi convidado a ir para Richmond, como “redator para todo o serviço”. Data
dessa época a única peça de Poe, Cenas de “Policiano” (Politian), talvez escrita por
influência de John P. Kennedy, que era teatrólogo.
Também nessa época, Edgar e Virginia tornaram-se mais íntimos e, por volta do
início de 1835, começaram a falar em casamento. Escandalizado, um parente de
Virginia declarou que ela era ainda muito jovem para se casar e que estava
disposto a cuidar dela até que completasse dezoito anos. Entretanto, Edgar
tinha uma aliada preciosa na pessoa de sua tia Maria, que o amava como a um
filho e a quem ele celebraria no poema “A Minha Mãe” (“To My Mother”,1849):
“Minha mãe verdadeira, que eu mal conheci,
Era só minha mãe; mas você, a meu ver,
Sendo a mãe da mulher que eu amei e perdi,
Mais querida se torna que a mãe natural.”
(tradução de Hélio do Soveral)
Contudo, os projetos matrimoniais foram deixados de lado, quando, em julho de
1835, Edgar aceitou o emprego no periódico de Thomas White.
Mais uma vez, Edgar estava em Richmond, onde seu pai adotivo havia morrido em
27 de março de 1834. O nome do poeta nem sequer fora mencionado no testamento.
Decidido a conquistar a glória a qualquer preço, Edgar atirou-se febrilmente ao
trabalho. “Agora sou feliz e com uma excelente expectativa de
triunfo”, escreveu ele a John P. Kennedy. Mas bastaram algumas
poucas semanas, e novamente todos esses seus sentimentos mudaram. “Nesta altura, encontro-me num estado
verdadeiramente lastimável”, declarou. “Sofro
de uma depressão que jamais experimentei. Tenho lutado em vão contra a
melancolia. Encontro-me, pois, num estado miserável, e ignoro o porquê.”
Então, entregou-se à bebida e perdeu todo o interesse pelo trabalho. Sem outra
alternativa, Thomas White o despediu.
Como sempre acontecia nos momentos de maior desespero e sem ter a quem
recorrer, Edgar regressou a Baltimore, indo buscar refúgio na casa de “mamãe” Clemm. E, em 22 de setembro
de 1835, realizou-se secretamente seu casamento com sua jovem prima. Nesse meio
tempo, John P. Kennedy intercedeu junto de Thomas White, em favor de Edgar.
White acabou readmitindo-o, com “uma advertência paternal”
e a condição de ele comportar-se bem.
Edgar regressou a Richmond, acompanhado por sua esposa e sua tia; e foram morar
numa pensão de propriedade de uma tal sra. Yarrington, na Praça do Capitólio.
A partir do outono de 1835, Edgar entregou-se a um trabalho tenaz e duro, como
redator-auxiliar de Thomas White, no Southern Literary Messenger.
E, em pouco tempo, a tiragem do periódico aumentou de setecentos para três mil
exemplares; e Poe foi nomeado redator-chefe, tornando-se um dos jornalistas
mais influentes do Sul dos Estados Unidos. Então, muitos de seus poemas foram
republicados, depois de revistos (Poe parecia nunca estar satisfeito com o que
escrevia e passou a vida inteira reescrevendo seus poemas). Por outro lado,
diversas histórias – entre elas “Metzengerstein” – que pretendia publicar num
volume intitulado Tales of the Folio Club,
apareceram no Messenger e logo chamaram a atenção
por causa de seu estilo mórbido e pelas descrições cheias de aspectos trágicos
e macabros.
Foi nessa época que Edgar pôde casar-se oficialmente com Virginia, já que o
primeiro matrimônio não tinha valor legal algum. E, em 16 de maio de 1836,
Edgar Allan Poe, de 27 anos, desposava Virginia Clemm, que tinha quase quatorze
anos. Uma testemunha complacente atestou, então, que a jovem tinha 21 anos! O
pastor presbiteriano que oficializou a cerimônia devia estar com os dois olhos
fechados, para não perceber que isso era uma mentira, uma vez que Virginia
tinha a aparência de uma menina. O casamento foi realizado na pensão da sra.
Yarrington.
O poeta encontrara, finalmente, uma família. Mas teria também encontrado a
felicidade, a paz? A resposta é não. Novamente não conseguiu dominar seu
espírito desassossegado, indo buscar refúgio no álcool e nas drogas. Suas
crises passaram a ser mais constantes e violentas, caindo em terríveis fases de
depressão que o faziam detestar sua profissão. Tinha fixação num projeto que o
perseguia desde os tempos de Baltimore: ser o editor de um grande magazine
literário (Poe foi, sem dúvida alguma, um dos primeiros homens no mundo a
perceber as possibilidades do jornalismo moderno, no que se refere a um
magazine). Começou a pensar em transferir-se para o Norte, um pouco devido à
sua crescente fama e muito devido aos atritos cada vez mais freqüentes com
Thomas White, em virtude de não haver cumprido o que prometera e embebedar-se
constantemente.
Em janeiro de 1837, Edgar abandonou seu cargo no Southern
Literary Messenger e partiu com a família para Nova York, indo
morar num edifício na esquina da Sexta Avenida com a Praça Waverly, no mesmo
andar em que residia o livreiro William Gowans (1803-1870), que muito o
ajudaria. E o que levara Edgar a escolher Nova York para fixar residência? A resposta é
muito simples: porque tinha ali alguns conhecidos (entre os quais, James Kirke
Paulding, os irmãos Harper e o professor Charles Anthon), pessoas com quem
fizera amizade por correspondência.
Uma dessas pessoas, o sr. Paulding, havia sugerido a Edgar, em fevereiro de
1836, que “ele deveriaescrever uma longa narrativa de
cunho bem popular”. Lembrando-se dessa sugestão, Poe escreveu
“Narrativa de Arthur Gordon Pym”, publicada em livro pelos irmãos Harper em
1838. O êxito do livro foi pequeno e não lhe trouxe nenhum dinheiro. Talvez
isso o motivou a negociar com o sr. White a sua publicação, em forma de
folhetim, no Southern Literary Messenger.
A despeito de sua fama, Edgar não conseguiu arrumar um emprego fixo. Assim,
coube à bondosa sra. Maria Clemm a incumbência de sustentar a filha e o
sobrinho. Ela alugou uma casa na Rua Carmine e passou a aceitar pensionistas.
Dizendo-se perseguido e incompreendido, Edgar estava reduzido à mais absoluta
miséria. Porém, contava com a ajuda do livreiro Gowans, que, agora, era um dos
pensionistas da sra. Clemm. E o livreiro o apresentou a alguns literatos, entre
os quais um inglês de nome James Pedder, que não tinha o mínimo talento para
escrever, mas tinha ligações com alguns magazines da Filadélfia, na época o
grande centro editorial dos Estados Unidos. Pedder induziu Edgar a mudar-se
para esta cidade, onde tinha duas irmãs que eram proprietárias de uma casa de
cômodos, na Rua Doze. Assim, um pouco antes do final do agosto de 1838, Edgar,
acompanhado por sua esposa, sua tia e James Pedder, mudou-se para a Filadélfia.
A princípio, foram pensionistas das irmãs do sr. Pedder; entretanto, logo o
poeta decidiu mudar para mais perto das livrarias e tipografias. Então, tinha
em mente dois projetos: Primeiro Livro do
Concologista ou Sistema de Malacologia dos Testáceos e uma
coletânea com seus contos escolhidos. No primeiro, teria a seu cargo a
editoração, mais um prefácio e uma introdução, tendo ainda de assiná-lo. Foi
apenas um trabalho mercenário, que lhe rendeu cinqüenta dólares e ainda a
acusação de haver plagiado o livro de um naturalista e malacologista inglês, o
Capitão Thomas Brown (1785-1862). O segundo, Tales of the Grotesque and
Arabesque, publicado em dois volumes em 1840, foi um fracasso total
e não lhe rendeu um centavo sequer (tudo o que recebeu foram alguns exemplares
para distribuir entre os amigos).
Por volta dos meados de 1839, Edgar arrumou um emprego fixo: escrever artigos
sobre esportes e resenhas literárias no Burton’s Gentleman’s Magazine.
Nessa publicação, cujo proprietário era o jornalista e empresário teatral
William Evans Burton (1804-1860), apareceram algumas poesias de Poe (“A Alguém
no Paraíso”/“To One in Paradise”, escrita em 1833, foi uma delas) e alguns
contos importantes e famosos (“A Queda da Casa de Usher”, “William Wilson”,
“Morella”, entre outros).
Nesse ínterim, Edgar também se correspondeu com algumas figuras notáveis das letras norte-americanas, entre as quais Washington Irving (1783-1859).
Nesse ínterim, Edgar também se correspondeu com algumas figuras notáveis das letras norte-americanas, entre as quais Washington Irving (1783-1859).
No entanto, a mente inquieta de Edgar levou-o a ansiar novamente poder possuir
uma publicação própria. Então, em janeiro de 1841, ele lançou o prospecto do
projeto do Penn Magazine, “um jornal literário mensal a ser redigido e
publicado (por Edgar A. Poe) na Filadélfia. Nesse prospecto, expôs “toda a sua teoria a respeito de um magazine”.
Era sua intenção, com o prospecto, sensibilizar futuros sócios para seu
empreendimento. Contudo, não obteve sucesso algum e foi obrigado, uma vez mais,
a aceitar um trabalho assalariado. Dessa vez, no Graham’s
Magazine, recebendo um ordenado de oitocentos dólares por ano.
Em pouco tempo, graças à capacidade editorial de Edgar e à colaboração de
notáveis redatores (todos contratados por Poe), a tiragem do Graham’s Magazine foi aumentada de
cinco mil para quarenta mil exemplares. Durante o período em que ocupou o cargo
de editor da revista (fevereiro de 1841 a abril de 1842), Edgar publicou alguns
de seus melhores trabalhos e chamou a atenção do público e da crítica em geral.
Tornou-se, então, vastamente conhecido como competente redator, crítico
brilhante e severo, escritor de histórias arrepiantes e poeta. Mas logo voltou
a almejar ser dono de seu próprio magazine e entregou-se à bebida, o que
motivou “o notável e competentíssimo redator e
antologista Rufus Wilmot Griswold” (1815-1857) ser contratado para
seu cargo. Ao encontrar, certo dia, Griswold sentado em sua cadeira, Edgar
abandonou a redação do Graham’s Magazine
e nunca mais voltou, passando apenas a colaborar na publicação.
Em seguida, Edgar tentou encontrar emprego na alfândega da Filadélfia, contando
com a ajuda de amigos influentes em Washington. Porém, uma malfadada visita à
Casa Branca, em que compareceu completamente embriagado, pôs tudo a perder e
nem mesmo seus amigos influentes puderam ajudá-lo.
Edgar estava na mais completa miséria. E ficou desesperado, vendo sua amada
esposa definhar-se, devido à tuberculose. Recorreu, então, à bebida (há provas
de que também começou a fazer uso do ópio).
Em 6 de abril de 1844, no auge do desespero e com pouco mais de quatro dólares
no bolso, Edgar embarcou, com a família, para Nova York. Foram residir no
número 130 da Rua Greenwich, numa pensão miserável.
Mesmo desesperado, Edgar conseguiu, ainda, forças para escrever para o jornal New York Sun uma balela – na época,
as balelas estavam em voga e eram até incentivadas pelos editores –, “A Balela
do Balão”, que se tornou um grande sucesso, permitindo à família se mudar para
uma pensão de melhor aspecto.
Antes do final da primavera de 1844, um piedoso casal de irlandeses, os
Brennans, proprietário de uma fazenda localizada na Estrada de Bloomingdale
(hoje, no local, situa-se a Rua 84 e a Broadway), deu asilo para a família Poe.
E foi nesse aprazível vale do Rio Hudson que Edgar concluiu seu famoso poema “O
Corvo” (“The Raven”), no qual vinha trabalhando desde 1841-1842.
No verão de 1844, Edgar correspondeu-se com o escritor James Russell Lowell
(1819-1891). E, no outono, estava novamente sem dinheiro. Então, a sra. Clemm
resolveu procurar trabalho para Edgar e não foi difícil para ela convencer o
bondoso sr. Nathaniel Parker Willis (1806-1867), editor do jornal Evening Mirror, de Nova York, a
empregá-lo como redator.
Ainda que não fosse esse o tipo de trabalho que almejava, Edgar procurou
valer-se dele em seu próprio benefício e, a fim de chamar atenção para si, fez
rasgados elogios à poesia de certa srta. Elizabeth Barrett (depois, sra. Robert
Browning) e iniciou uma polêmica com o poeta Henry Longfellow (1807-1882), a
quem chamou de plagiador.
Embora o sr. Willis demonstrasse um especial carinho por ele, Edgar,
desgostoso, já começava a pensar em abandonar suas medíocres funções. Foi
quando Lowell apresentou-o a um grupo de jornalistas que estava prestes a
lançar o Broadway Journal, financiado por um
tal Briggs. Edgar foi logo contratado como redator geral. Assim, deixou a
publicação do sr. Willis, “que se conservaria seu fiel
amigo até o fim”.
Em 29 de janeiro de 1845, o Evening
Mirror publicou o poema “O Corvo”, sem o nome do poeta. Foi um
sucesso. E, na edição de 8 de fevereiro, o poema voltou a ser publicado, agora
tendo o nome de seu autor. Foi o triunfo! O frisson! O
público ficou literalmente galvanizado por tão insólita poesia. Finalmente o
nome de Edgar Allan Poe estava ao lado dos maiores luminares das letras contemporâneas.
Esse sucesso literário veio acompanhado de um sucesso mundano. Edgar principiou
a percorrer todos os Estados Unidos para declamar o seu grande sucesso. Foi um
período de deslumbramento.
Foi também um período em que se apaixonou por diversas
mulheres ligadas à Literatura. Uma dessas mulheres foi a bela poetisa Frances
Sargent Osgood (1811-1850), esposa de um pintor de certo renome. Os dois eram
vistos constantemente juntos. Devido ao escândalo provocado por sua ligação
amorosa com Poe e também devido ao seu estado de tuberculosa, Frances teve de
viajar para Albany, no estado de Nova York. Edgar a acompanhou; depois,
viajaram a Boston e Providence. Nesta cidade, ele conheceu a sra. Sarah Helen
Whitman (1803-1878), de certa reputação literária e de “considerável encanto”. O segundo
poema “A Helena” (“To Helen”, 1848) celebra esse encontro.
Em outubro de 1845, Edgar obteve os direitos exclusivos do Broadway Journal, algo que nunca deveria ter feito. Investiu na publicação todo o seu dinheiro e, em pouco tempo, encontrou-se inadimplente. Procurou desesperadamente um sócio. Foi uma busca em vão e, não conseguindo resgatar uma letra de cinquenta dólares, desistiu da publicação.
Em outubro de 1845, Edgar obteve os direitos exclusivos do Broadway Journal, algo que nunca deveria ter feito. Investiu na publicação todo o seu dinheiro e, em pouco tempo, encontrou-se inadimplente. Procurou desesperadamente um sócio. Foi uma busca em vão e, não conseguindo resgatar uma letra de cinquenta dólares, desistiu da publicação.
Mais uma vez, “mamãe” Clemm acorreu em seu
auxílio e levou-o para o campo, para Fordham. Foram habitar uma casinha de
madeira, onde, na mais completa miséria, viveram da caridade dos vizinhos e dos
donativos de pessoas piedosas.
Nessa época, uma das grandes alegrias do poeta era ouvir sua jovem esposa,
Virginia – ela estava com a saúde cada vez mais debilitada –, cantar, sentada
ao piano ou dedilhando a harpa. E, certa noite, a melodia se interrompeu
bruscamente: um vaso dos pulmões de Virginia se rompera, e Edgar não ouviria “nunca mais” a voz que o enlevava.
A partir daí, Virginia não podia mais suportar a menor mudança de temperatura e
tinha necessidade de tratamentos que o marido não podia lhe dar, devido à falta
de recursos. Em sua memória, Edgar compôs o angustiante “Ulalume” (“Ulalume: A
Ballad”, 1847), que se inicia assim:
“O céu estava cinzento e sombrio;
e os pinheiros crispados, torcidos,
os pinheiros curvados, pendidos;
era a noite do inverno mais frio
que eu sofria nestes anos sofridos (...).”
Um pouco antes de Virginia morrer, a sra. Marie Louise Shew (1821-1877), uma
amiga de Edgar dos tempos de Nova York, visitou-o. Então, encontrou a jovem
esposa do poeta deitada numa cama de palha e enrolada num capote. Na casa, não
havia alimento algum. Angustiada, Marie Louise fez “um
apelo público pelos jornais, e imediatamente as necessidades da família foram
aliviadas”.
Após a morte de Virginia, ocorrida em 30 de janeiro de 1847, a sra. Shew
continuou visitando Edgar. “Mas se viu obrigada a
retirar-se, devido às exigências amorosas de seu amigo.” Em
homenagem a ela, Poe escreveu um poema.
Também em Fordham, Edgar redigiu Eureka,
uma longa dissertação “semicientífica e metafísica”.
Esse livro, publicado em 1848 por Geo P. Putnam, de Nova York, foi, como os
demais, um fracasso editorial, apesar de Edgar já ser um nome famoso.
Durante todo o verão de 1847, Edgar Allan Poe fez uma série de conferências em
diversas cidades. Numa dessas cidades, Lowell, no estado de Massachusetts,
conheceu a sra. Annie Richmond (1820-1898), para quem escreveu o poema “Para
Annie” (“For Annie”, 1849), que, em determinado trecho, diz o seguinte (a
tradução é de Hélio do Soveral):
“Quietamente meu espírito aqui jaz,
no mais prático dos leitos,
aspirando, ou imaginando,
um odor de amores-perfeitos,
de alecrins e de puritanos
e virginais amores-perfeitos.
E, feliz, ele aqui descansa,
mergulhado num perene,
lindo sonho da constância
do amor da bela Annie,
aconchegado junto às tranças
e ao calor da bela Annie.
Ternamente, ela beijou-me,
disfarçando o seu receio;
foi, então, que eu quis dormir
docemente no seu seio,
quis dormir profundamente
no Nirvana do seu seio.”
Depois, em Fordham, Edgar reviu a sra. Sarah Helen Whitman. Imediatamente,
começou a cortejá-la e enviou-lhe várias cartas apaixonadas. Chegou a pedi-la
em casamento. Porém, a mulher relutou em aceitar o pedido, pressentindo que
havia algo de artificial nessa paixão do poeta por ela. E seu pressentimento
estava certo, pois, nem bem a pedira em casamento, Edgar voltou-se para a sra.
Richmond, confessando-se “escravo de seus encantos”.
Essa facilidade em apaixonar-se “perdidamente”pelas
mulheres, levou o infeliz Edgar a um lastimável estado de espírito. E, em
novembro de 1848, ele tentou suicidar-se, ingerindo láudano. Felizmente, a dose
foi pequena e provocou apenas vômitos.
Então, Edgar retornou a Fordham, para receber os cuidados confortadores de “mamãe” Clemm. Depois, voltou a
procurar a sra. Whitman. Seu estado, na ocasião, era deplorável; e, devido a
isso e pressionada pelos parentes, a mulher descartou-o.
Nesse meio tempo, as editoras para as quais Edgar trabalhava faliram; e ele
ficou sem receber pelos manuscritos remetidos. Passou a delirar, imaginando-se
proprietário de The Stylus, “o jornal literário mais importante do mundo”.
Nesses delírios, via também “o rosto diáfano de uma
mulher minada pela tísica”.
Foi mais ou menos nessa época que ele escreveu: “Há
seis anos, uma mulher que eu amava como jamais amou outro homem teve uma corda
vocal partida, quando cantava. Temeu-se pela sua vida. Comecei então a
separar-me dela pouco a pouco e para sempre. Um ano mais tarde, a corda tornou
a romper-se; e eu voltei a sofrer o mesmo suplício. Depois, uma vez ainda, e
outra... e mais outra. Cada crise da doença me fazia amá-la com mais ternura e
me acorrentava à sua vida com obstinação cada vez maior e mais desesperada. E
sofri toda a agonia de sua morte.”
Refeito, “mas um fantasma de si mesmo”, e
sempre pensando em seu jornal literário, o fantástico The Stylus, Edgar deixou a sra.
Clemm em Nova York, sob os cuidados de uma poetisa amiga e partiu para uma
série de conferências em Richmond e Norfolk. Numa dessas viagens, encontrou-se
com a sra. Shelton, em solteira Sarah Elmira Royster, um de seus primeiros
amores.
Edgar e Elmira haviam se conhecido por volta de 1824. Ele
era, então, um rapaz bonito – de semblante quase sempre tristonho – e pouco
comunicativo. Tinha uma conversa verdadeiramente empolgante, quando discorria
sobre temas que lhe interessavam, porque se inflamava, tomado de um entusiasmo
impetuoso. Assim, era o Edgar Poe que Elmira conhecera. Mas o namoro dos dois
durou pouco. O pai da jovem os separou. Mantiveram, contudo, contatos
esporádicos. Trocavam entre si cartas em que juravam amor eterno um pelo outro.
No entanto, o sr. Royster não era tolo. Interceptou várias dessas cartas e
terminou casando a filha com um comerciante idoso chamado A. Barrett Shelton,
que era justamente o oposto de Edgar: pouco inteligente, mas rico. Agora, mais
de vinte anos depois, o amor entre Edgar e Elmira reflorescia. Porém, em que
circunstâncias? “Por causa de The Stylus”, escreveu uma das supostas amigas
do poeta. “Poe tinha, antes de tudo, absoluta necessidade
de dinheiro. Todo o resto dependia disso. O dinheiro era indispensável para
ele, não lhe importando o sacrifício que tivesse de fazer. Foi assim que nasceu
‘o negócio Shelton’.” A sra. Shelton era uma mulher muito
respeitável, embora de maneiras fúteis e espírito vulgar. E não possuía os
encantos capazes de atrair um homem do gosto e do temperamento de Edgar.
Portanto, o poeta reaproximou-se dela mais como um caçador de dotes que como um
cavalheiro. E apressou-se em lhe falar de certo retrato que lhe tirara quando
jovem e que conservava como a coisa que lhe era mais preciosa no mundo. Disse
também que iria escrever para “mamãe” Clemm e
pediria a ela para enviar, o mais depressa possível, o tal retrato. E assim o
fez. No entanto, não esqueceu de indicar na carta a resposta que sua “mamãezinha” deveria lhe dar: “Eis o que deve me escrever textualmente:
‘Procurei com pertinácia o retrato da sra. Shelton, mas não consegui
encontrá-lo em parte alguma. Rebusquei em todas as gavetas, folheei todos os
livros, um por um; e, se não foi Elisa White que o levou, então não sei que
rumo teve. A última vez que o vi foi nas mãos dela. No entanto, a cópia que tu
manchaste de tinta deveria estar ainda aqui. Tentarei encontrá-la.’” Na
verdade, Edgar tinha necessidade de recorrer a semelhante estratagema, pois a
viúva estava muito bem impressionada com ele. “Era
um dos homens mais sedutores que conheci. Admirava-o mais que a qualquer outro”,
confessaria ela mais tarde. Com amor verdadeiro ou fingido, o casamento foi
finalmente marcado para 17 de outubro de 1849.
Edgar apressou-se em partir para Nova York. Devia ir procurar “mamãe” Clemm e também ver um
editor.
Em 27 de setembro de 1849, Edgar partiu para Nova York. Fez uma parada em
Baltimore, para visitar um amigo, o dr. Nathan C. Brooks. Já estava meio
embriagado. Depois, encontraram-no desmaiado e sem bagagem no expresso para
Filadélfia e mandaram-no de volta para Baltimore. Quando ele chegou a
Baltimore, realizava-se eleição para membros do Congresso e representantes do
Legislativo estadual. As práticas políticas eram, então, as mais primitivas e
grosseiras que se possam imaginar. Para votar não eram necessários título de
eleitor e listas de votantes. Bastava a pessoa apresentar-se num escritório
eleitoral e, ali, na presença de testemunhas, jurar que ainda não havia votado
(assim, uma pessoa podia votar várias vezes, em lugares diferentes). Quadrilhas
de malfeitores infestavam a cidade, a fim de conseguir o maior número de
eleitores para esse ou aquele candidato ou partido. E o infeliz Edgar caiu nas
garras de um desses bandos, que o levou às mais sórdidas tabernas e o embebedou
com todo tipo de bebida alcoólica. Não demorou muito, e Edgar sofreu um ataque
de delirium tremens. Então, seus
carrascos involuntários abandonaram-no, já meio morto, numa viela. Foi
encontrado, em 3 de outubro, por um tipógrafo do Baltimore
Sun, Joseph W. Walker, que chamou o dr. James E. Snodgrass, único nome
que conseguiu arrancar daquele farrapo humano. Assim que viu Edgar (“Seu rosto estava macilento, para não dizer
entumecido, e sujo; seu cabelo, despenteado; e toda a sua aparência física,
repulsiva. Estava sem colete e sem colarinho, enquanto o peito da camisa
mostrava-se tão amarrotado quanto horrivelmente sujo...”), o dr.
Snodgrass mandou-o para o Hospital Washington.
Edgar manteve-se em coma durante vários dias. De quando em quando, delirava,
chamando repetidas vezes um tal Reynolds (possivelmente, J. N. Reynolds, ligado
a um projeto de exploração dos mares polares do Sul. Edgar mostrara-se
interessado por isso, por volta de 1837-1838. Talvez tenha até entrevistado
Reynolds, em Nova York, quando “Narrativa de Arthur Gordon Pym” foi publicado);
e, depois, acalmava-se. “O meu melhor amigo será
aquele que me fizer saltar os miolos”, murmurou ele, desesperado,
ao médico de plantão, o dr. J. J. Moran, num dos raros momentos em que esteve
consciente. Então, voltou a delirar e falou: “As abóbadas do céu esmagam-me!
Deixem-me ir embora! Deus escreveu legivelmente os seus decretos nas frontes
das criaturas humanas... Os demônios apoderam-se de um corpo... eles têm por
cárcere as vagas turbilhonantes do mais negro desespero. Já entrevejo o porto
para além do abismo... Onde ficou a lama, a miséria? A calma eterna...
sumiram-se as margens!” Em seguida, aquietou-se e pareceu repousar.
Depois, moveu lentamente a cabeça na direção do médico e disse: “Senhor, amparai minha pobre alma.” E
soltou seu último suspiro. Era a madrugada de 7 de outubro de 1849, um domingo.
Apenas dez pessoas acompanharam o funeral de Edgar Allan Poe, sepultado quase
furtivamente no cemitério presbiteriano de Baltimore. Colocaram sobre a sua
tumba um bloco de granito sem qualquer inscrição – apenas o número 80 e nada
mais. Um dos grandes gênios da humanidade teve de esperar 26 anos até que lhe
erigissem um túmulo decente. E foi ao poeta simbolista francês Stéphane
Mallarmé (1842-1898) que se ficou devendo o soneto comemorativo mais belo e a
um escritor inglês, Swinburne (1837-1909), a carta mais ardente.
Uma versão resumida deste artigo foi publicada
no número 23 da revista Conhecimento Prático Literatura.