sexta-feira, 14 de março de 2014

R.F.Lucchetti: Memória Cinematográfica


COMO NASCEU O SEGREDO DA MÚMIA

Depoimento de Ivan Cardoso

‘O Lago Maldito’ numa espécie de “fragmento de um seriado”. Como era um filme de múmia e em preto e branco, tinha todas as características de um autêntico seriado B. A forma de “seriado incompleto”, também resolveria o problema de não termos um roteiro autêntico... além de ser uma maneira bastante diferente de entrar no circuito. Pretendíamos lançar os três primeiros capítulos, simultaneamente, em cinemas diferentes, criando no espectador uma expectativa do que aconteceria no próximo capítulo... Delírios de um cineasta underground.

Em 1981 eu estava com um problema: tinha em mãos todo o material filmado em Super 8 de ‘O Lago Maldito’, sem uma história definida, apenas algumas ideias minhas e do meu grande amigo Eduardo Viveiros. Como eu vinha do cinema mudo -- Super 8 era mudo --, tinha enormes dificuldades para escrever diálogos e roteiros, pois gostava mesmo era de improvisar como uma ideia na cabeça...

Foi quando me lembrei do Lucchetti...

Fui leitor assíduo da revista ‘O Estranho Mundo de Zé do Caixão’, cuja coleção ainda guardo até hoje. Naquela época não conhecia nem o Rubens, nem o Mojica, mas já era o máximo, e para os aficionados no terror nem se fala, a dupla Lucchetti-Rosso, famosa por várias outras revistas do gênero, era a certeza de uma boa aventura.

O Mojica me levou até o Lucchetti quando este morava defronte ao campo do Olaria... (O Mojica me falava de um amigo que iria resolver os meus problemas...) e acabou me revelando seu principal segredo: me apresentou a R.F.Lucchetti -- o Lovecraft de Ribeirão Preto – autor de todos os seus roteiros cinematográficos, histórias em quadrinhos, contos policiais e de terror. Ou melhor, fundiu tudo isso na melhor tradição de uma produção classe B. Noir. O homem das mil histórias. Dos mil heterônimos. Porque a maioria da sua fantástica produção não está assinada com seu próprio nome. Em resumo: R.F.Lucchetti é o único autor essencialmente pulp brasileiro.

Fui encontrar o Lucchetti na mesma casa da Rua Bariri defronte ao Clube do Olaria. Recordo-me que foi numa tarde de sábado de 1979, que eu visitei-o junto com o artista plástico Hélio Oiticica, para lhe falar sobre ‘O Lago Maldito’ que eu não sabia como finalizar os episódios e escrever os diálogos.

(Acredito que o Lucchetti nunca imaginou que alguém iria procurá-lo a fim de fazer um filme de Múmia...).

Senti que ele não prestava muita atenção no que eu falava, mas interessado em ver, ao lado do filho, o que se passava na telinha de seu retrovisor. Eu falava e falava e ele lá; ligado nas imagens de um filme mudo mostrando um homem dependurado num relógio. Desde o inicio, tive a sensação de ser um intruso, aliás de sermos dois intrusos, eu e o Hélio, naquela casa. Primeiro, demoraram para nos abrir a porta, sabia que havia gente em seu interior, pois ouvi, em determinado momento, um plim-plim inconfundível, vindo da televisão. Depois, o Lucchetti abriu-nos a porta, meio constrangido e com um ar indagador no rosto; então, expliquei-lhe que era aquela pessoa que o Mojica apresentara certa vez e que gostaria de lhe falar sobre a possibilidade de vir a ser o roteirista de um filme meu que se encontrava inacabado. Nesse momento, ele quase nos puxou para dentro da casa, falando a respeito de um homem mosca, sentou-se novamente diante do aparelho de televisão e pouca atenção deu para aquilo que eu dizia. Entretanto, desde encontro nasceu ‘O Segredo da Múmia’ (1981), que lhe valeu o prêmio de Melhor Roteirista, no Festival de Gramado, em 1982. Depois realizamos juntos ‘As Sete Vampiras’ (1985) e ‘O Escorpião de Escarlate’.

Ele criou os capítulos, mas, como todo criador de imaginação prodigiosa, nos enganou, escrevendo um outro filme.

‘O Segredo da Múmia’ foi um grande sucesso no exterior. Aqui, conseguiu a proeza de ser um dos poucos filmes produzidos pela Embrafilme que se pagou, além de ter criado um novo gênero -- o Terrir -- que inaugurou o “besteirol” antes do Teatro. Uma Múmia no Brasil!

Rio de Janeiro, 20-02-2004