EU SEMPRE O CHAMEI DE "SENHOR MOJICA"
Rubens
Francisco Lucchetti
“Depois
de ler as declarações dos diretores da cinematografia mundial, perguntamo-nos
como pode existir um Chaplin. Há mil razões para que não exista. O Cinema não
pode viver sem dinheiro; e todas as implicações industriais, comerciais etc.
impedem irrevogavelmente a chegada do gênio. Não obstante, Chaplin consegue
trabalhar livremente: tem popularidade, independência (...). Para quem conhece
todos os costumes do cinema, esta situação merece ser qualificada de
maravilhosa.”
Ditas pelo famoso diretor francês René Clair (1898-1981), as palavras acima
foram extraídas do livro Carlitos a Vida, a Obra e a Arte do Gênio do Cine
(Charles Chaplin – El Génio del Cine, tradução de Melo Lima, Rio de
Janeiro, Leitura, 1944, p. 241), do historiador e pesquisador espanhol Manuel
Villegas López, e podem também ser aplicadas a José Mojica Marins.
Tudo conspira para que ele não exista. Mas ele existe e, da mesma forma que
Charles Chaplin (1889-1977) deu vida ao eterno Carlitos, criou Zé do Caixão, um
personagem ímpar.
José Mojica Marins esteve muitas vezes do “lado de lá”. Esteve muitas
vezes “além, muito além do Além”. Viu “coisas que a nossa vã
filosofia nem sequer imagina”. Dante, Poe, H. P. Lovecraft, Robert Louis
Stevenson, Mary Shelley... também viram essas coisas. E Zé do Caixão nasceu de
um delírio/visão/pesadelo de José Mojica Marins. A criatura nasceu numa noite
em que seu criador possivelmente oscilava entre a vida e a morte.
José Mojica Marins (ator), herdeiro direto de Boris Karloff, Bela Lugosi, Lon
Chaney...
José Mojica Marins (diretor), o sucessor de F. W. Murnau, Tod Browning, James
Whale, Karl Freund...
José Mojica Marins (criador), uma figura tão importante quanto Mary Shelley,
Joseph Sheridan Le Fanu, Robert Louis Stevenson, Bram Stoker...
Frankenstein, Mister Hyde, Drácula... Zé do Caixão, personagens que se
sobrepõem aos seus próprios criadores. Frankenstein é um monstro? Todos responderão que sim, e não “o homem que
criou um monstro”. E Mary Shelley?Será alguém capaz de associar esse nome
tão romântico à autora de Frankenstein, um dos livros capitais da
literatura de Horror? E Bram Stoker? Muitos desconhecem que foi ele quem
escreveu Drácula. E quanto a Conan Doyle? Um grande número de pessoas
desconhece ser ele o criador de Sherlock Holmes – e os menos esclarecidos
pensam que Sherlock Holmes existiu realmente e viveu em Londres, no número 221B
da Baker Street.
E, quando tiverem passados tantos e tantos anos quanto os que nos separam de
Mary Shelley, Bram Stoker e Conan Doyle, será que alguém associará o nome de
José Mojica Marins ao de Zé do Caixão? Muitos certamente responderão que José
Mojica Marins foi um frei mexicano ou espanhol.
Mas, na verdade, quem é José Mojica Marins?
TERIA
SIDO UM SONHO?
Recordo-me
perfeitamente... Era um anúncio, publicado num jornal de São Paulo. Mostrava
umas caveiras, uma coruja, uma árvore desfolhada, uma urna funerária, tudo em negativo, e o seguinte texto: “Aguardem! À Meia-Noite Levarei Sua Alma”. Esse anúncio
intrigou-me. Fiquei aguardando. Na época, eu residia em Ribeirão Preto; e um
dia, apareceu num dos cinemas da cidade, o São Jorge – um verdadeiro templo do
Cinema (ele tinha quase dois mil lugares) e que, embora ficasse no centro, era
frequentado por pessoas dos bairros e da periferia –, um painel com algumas
fotos e um cartaz com o tal título, À Meia-Noite Levarei Sua Alma.
Não posso deixar de mencionar que as fotos não eram nada recomendáveis. O
cartaz muito menos (era um caleidoscópio de desenhos toscos e não trazia os
nomes dos atores nem indicação alguma de quem havia produzido ou dirigido o
filme). Apesar disso, comprei um ingresso, entrei na sala (ela estava quase
vazia, havia somente umas trinta pessoas em seu interior), sentei e esperei.
Quando aquilo começou, tive vontade de sair do cinema, acompanhando o cortejo
dos que se desalojavam em direção à liberdade. Eu não estava entendendo nada do
que via. Eram imagens estranhas; e também havia um personagem esquisito, desconcertante.
Eu já começava a ficar arrependido de não ter ido assistir a Um Amor de Vizinho (com Jack Lemmon
e Romy Schneider), que estava sendo exibido no São Paulo, o cinema da elite
ribeirão-pretana. Realmente, senti vontade de deixar a sala; porém, pelo que me
lembro, nunca saí do cinema sem ver escrito na tela The
End ou Fim. De repente, senti um calafrio na espinha. Percebi que estava
diante de um clima de tragédia pura. Ésquilo, Eurípedes, Sófocles, enfim, todo
o teatro grego estava ali, misturado a Shakespeare. Percebi que assistia a uma
fita sem par na História do Cinema. Ao mesmo tempo em que se assemelhava a uma
peça apresentada num circo mambembe de vilarejo interiorano, tinha algo de
tragédia grega ou do teatro elisabetano. Notavam-se também traços da obra do
Marquês de Sade. Às vezes, a desumanização do personagem principal era total,
inconcebível. O ator que o interpretava gesticulava, gritava, pulava. Suas
feições se multiplicavam em máscaras de ódio e sadismo. Eu nunca vira nada
igual. E todas essas cenas iriam me marcar profundamente. E destaco uma delas:
a do agente funerário Josefel Zanatas (mais conhecido como Zé do Caixão)
comendo uma perna de carneiro e olhando através da janela a procissão da Semana
Santa. É uma cena de grande impacto (sobretudo por causa da expressão de
deboche no rosto do personagem). Uma cena verdadeiramente memorável. Tão
memorável quanto aquela que considero a mais bela cena realizada por Chaplin: a
cena de Em Busca do Ouro em que Carlitos, do lado de fora do bar, olha pela janela e vê,
com uma tristeza infinita nos olhos, a mulher amada – mulher amada essa que
havia prometido cear com ele na noite de Ano Novo – se divertindo com outros
homens...
Na tela, o ator continuava sua pantomima. Eu nunca havia
presenciado nada que pudesse se assemelhar àquelas sequências desconcertantes,
uma mistura de Expressionismo Alemão com a inquietação e a angústia que nos
provocam os contos de Edgar Allan Poe... Tudo feito no melhor estilo
primitivista. Sabia estar diante de um ser único na cinematografia mundial...
um louco genial (não poderia haver outra definição para designar o responsável
por aquela tragédia na sua mais pura concepção clássica). Só alguém dotado de
um espírito genial – um espírito muito acima de nossa vulgaridade – poderia
realizar um espetáculo tão inquietante e paradoxal.
Terminado o filme, lembro-me de que ainda fiquei um tempo
sentado na poltrona, como um paciente que, após uma longa enfermidade, começa a
adaptar-se ao mundo que o rodeia.
Deixei o cinema sob o efeito “daquele anestésico”. Minha casa ficava a uns quinze quarteirões; e, durante o
percurso, que fiz a pé, Josefel Zanatas não saía de minha mente. Esteve o tempo
todo ao meu lado; e, quando entrei em casa, não me recordava sequer do trajeto
que havia percorrido. O estranho personagem havia saído comigo do cinema e
tinha me acompanhado. Sua personalidade e magnetismo eram por demais marcantes,
fazendo com que não se restringisse somente ao celuloide e criasse vida
própria. Cheguei até a imaginar que cochilara no cinema e havia imaginado tudo
aquilo. José Mojica Marins e Josefel Zanatas se confundiam em minha mente. Criador
e criatura eram uno.
EU SEMPRE O CHAMEI DE “SENHOR MOJICA” - PARTE 2
Rubens
Francisco Lucchetti
Mas
quem é José Mojica Marins?
Fiz essa pergunta a mim mesmo durante vários dias, após ter assistido ao filme À
Meia-Noite Levarei Sua Alma. E não encontrei para ela uma resposta. Todas
as pessoas de meu relacionamento nunca tinham ouvido falar dele; e nenhum
jornal ou revista fazia qualquer menção à fita, que permanecera apenas um dia
em cartaz em Ribeirão Preto.
Foi somente alguns meses mais tarde, em abril de 1966, que alguém citou o nome
José Mojica Marins. Foi numa carta endereçada a mim e escrita a quatro mãos
pelo meu amigo Sérgio Lima, que na época era secretário da Cinemateca
Brasileira, e por sua esposa Leila (os dois já haviam estado em minha casa,
para conhecerem o trabalho que o artista plástico Bassano Vaccarini e eu
desenvolvíamos à frente do Centro Experimental de Cinema de Ribeirão Preto). Em
determinado trecho dessa carta a Leila dizia:
“Sérgio, eu e alguns amigos (...) temos ido frequentemente visitar
José Mojica Marins. Sr. Lucchetti, este homem é mesmo uma figura de contos
maravilhosos e fantásticos. Capa preta, pálido, barba desalinhada, unhas enormes e verdadeiras; e o mais
importante: é a única pessoa que vive uma realidade imaginada! (...) Já
falei do senhor a ele, e seria delirante o vosso encontro.”
Em julho de 1966, mudei-me para São Paulo e fui trabalhar como chefe de
escritório da Sokofer, uma loja de ferragens pertencente a uns primos de minha
mãe. Eu nem me instalara direito na nova casa, recebi a visita do Sérgio e da
Leila. Então, entre outras coisas, eles disseram que iriam marcar o tal “encontro
delirante” e que, certamente, “o Mojica e eu iríamos nos dar muito
bem”.
Passados alguns dias, o Sérgio me telefonou, a fim de avisar que marcara o
encontro para aquele dia. Informou-me também de que eu deveria encontrá-los às
cinco horas da tarde, no Largo do Paissandu, no centro de São Paulo. Na hora marcada, eu já estava parado junto à fonte de mármore branco do Largo
do Paissandu. Menos de cinco minutos depois, vi o Sérgio e o sr. Mojica subindo
a Avenida São João, vindos dos lados do edifício dos Correios.
O
sr. Mojica que me estendeu a mão nada tinha em comum com Josefel Zanatas, a
estranha e sinistra criatura de barba hirsuta que eu vira em À Meia-Noite
Levarei Sua Alma. O sr. Mojica mostrava barba aparada, um sorriso agradável
no rosto; trajava um terno escuro de qualidade muito superior ao meu, que fora
comprado na Exposição Clipper; usava sapatos pretos bem polidos e totalmente
diferentes dos meus, que sempre foram cambaios...
O Sérgio Lima, um perfeito dândi (na ocasião, ele vestia um paletó marrom,
calça de flanela cinza; usava uma echarpe em torno do pescoço; e fumava
cachimbo), começou a caminhar em direção à Rua Barão de Itapetininga. Ele
falava muito e, em determinado momento, disse que “a parceria que o Mojica e
eu faríamos iria resultar em algo inédito no cinema nacional”. O
Mojica não dizia nada; e muito menos eu, que sou extremamente tímido.
O Sérgio nos levou a uma casa de chá na Barão de Itapetininga, a rua onde, na
época, estavam instaladas as principais boutiques e lojas de grife de
São Paulo. Por uma escada de mármore coberta por um tapete carmesim, chegamos a
um amplo salão com colunas espelhadas e iluminado por finos lustres de cristal.
Cortinas de renda de cor de caramelo escondiam as janelas, e uma brisa suave –
vinda do teto através de orifícios camuflados por enfeites de anjinhos –
tornava o ambiente extremamente agradável. A um canto, um quinteto de cordas,
acompanhado por um piano, executava uma música de Brahms. Ou seria Vivaldi?
Várias senhoras da mais fina sociedade paulistana tomavam o seu chá das cinco
e, assim que entramos, voltaram seus olhares em nossa direção. Éramos os únicos
varões naquele ambiente suntuoso.
Tão logo nos sentamos a uma mesa com tampão de vidro e ornamentada com um vaso
de flores, surgiu não sei de onde, uma donzela de tailleur cinza,
sapatos envernizados de salto alto e um barrete que lhe prendia os cabelos
dourados. Ela tinha um rosto encantador e, oferecendo-nos o cardápio,
saudou-nos com um “boa-tarde, cavalheiros” que na boca de qualquer outra
jovem soaria totalmente falso. Quem fez o pedido foi o Sérgio, que me deu a
impressão de ser um assíduo frequentador do local.
Assim que a moça se afastou, o Sérgio falou:
“Como eu lhe disse, Mojica, o Rubens já tem vários livros publicados,
colabora numa infinidade de revistas, escreveu novelas de rádio, scripts
para a televisão e fez aqueles filmes desenhados na própria película.”
Depois, voltando-se para mim, ele pediu:
“Vamos, Rubens, fale um pouco sobre o seu trabalho.”
Naquele instante, deu um branco em minha mente. Embora eu tivesse ensaiado
exaustivamente o que deveria dizer para impressionar o sr. Mojica, esqueci
tudo. Não sabia o que falar. Sentia-me travado. Fui salvo pela chegada
providencial de um carrinho de chá de metal polido e rodas de borracha que era
empurrado por uma graciosa garota envergando um uniforme azul que contrastava
com sua cabeleira platinada. Ela colocou as chávenas em cima da mesa e despejou
– de um bule com enfeites da cor de ouro velho – o chá em cada uma delas.
Esse espaço de tempo permitiu-me coordenar o pensamento, e fiz um relato
sucinto sobre minhas atividades. Ressaltei, então, minha predileção pelo Horror
e acrescentei que estava trabalhando para uma editora de São Paulo, escrevendo
roteiros de histórias em quadrinhos de Suspense e Horror.
O sr. Mojica ouviu tudo sem fazer nenhum aparte ou comentário. Em seguida,
consultou o relógio e disse que tinha outro compromisso. Mas antes de nos
despedirmos, foi extremamente cortês, convidando-me para ir ao seu estúdio. O que aconteceu depois relatarei num próximo artigo...
Rubens
Francisco Lucchetti é ficcionista e roteirista de Cinema e Quadrinhos.