quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Rubens Francisco Lucchetti


HOMENS ATRÁS DAS CÂMARAS
por Rubens Francisco Lucchetti

A nenhum espectador ocorre, durante o desenrolar de um bom ou mau filme, a consideração do esforço dispendido em sua produção. Sentados comodamente em nossa poltrona, apenas as imagens nos comovem e o filme passa a ser uma realidade independente de seus criadores. Permanecem conosco somente os seus interpretes, parcela e nem sempre a mais importante da grande equipe que se move anônima atrás da tela sem a qual seria impossível o espetáculo.

Um filme, que se desenvolve em menos de duas horas, e é uma ilha de refúgio em nossa luta cotidiana, representa meses, até anos de trabalho, de canseiras, de desilusões e de alegrias. Em sua realização é tão importante dentro de seus naturais limites, o papel do director como o do interprete, o do fotógrafo, o do mecânico, o do publicitário ou do alfaiate.

Todos concorrem, com seu esforço e seu contingente de técnica, para fazer do celulóide, da sombra e da luz, veículos preciosos da emoção. Empregam-se em sua feitura material mil segredos em que o homem moderno aplica a ciência, a imaginação, a habilidade, a inteligência e o gosto. O cinema criou as suas exigências próprias e requer enorme e adestrada equipe, que joga com as actividades mais diversas, desde a subtil e poderosa criação intelectual e artística às mais delicadas técnicas e aos trabalhos mais modestos da indústria e do comércio.

O DIRECTOR

As três fases fundamentais da criação cinematográfica: o roteiro ou projecto, a realização e a montagem acham-se indissoluvelmente ligadas e determinam o valor do filme definindo teoricamente os seus autores. Serão eles, assim o projectista, o realizador e o montador. Realmente o realizador ou director desempenha, quase sempre, o papel principal, colaborando com o projectista e dirigindo a montagem. Às vezes exerce as três funções, por exemplo, Charles Chaplin e René Clair. Ele é de facto o autor do filme. Não obstante as divergências, esta é a opnião dos mais seguros cineastas.

Sobre o assunto afirma Jean Cocteau:

- “O director é o responsável e o mestre do filme. Ele é que agrupa os detalhes mínimos e dá o golpe mágico pelo qual uma obra cinematográfica se desenrola de principio a fim, dentro de uma unidade sem hiatos”.

Marcel L’Herbier, outro famoso cineasta propõe:

- “Apresentem o mesmo cenário dêem-no a três directores diferentes e teremos três filmes diferentes. Isto prova que o director é o verdadeiro autor do filme”.

Ele é que tem a visão da unidade através do conhecimento pormenorizado de todos os segredos. Não se detém todavia, nas minúcias. O director vê os mil papéis e a situação em função do conjunto pois compete-lhe organizar as partes e criar a harmonia e, portanto, a obra. Reúne fragmentos e recebe colaboração e conduz a acção. Cria, com os fragmentos que nada diziam, espalhados e dispersos, um mundo com as suas leis e finalidades próprias. Não acontece, naturalmente, com o director o que ocorre com o poeta ou o romancista ou o escultor. Aqui está presente a idéia da criação pessoal.

No trabalho cinematográfico entretanto, como na arquitetura, há um exercício colectivo de funções. Todos colaboram como elementos obedientes ao director. Dele parte a orientação de toda a técnica do filme. Daí a marca indelével que sua presença deixa.

O director deve imaginar o filme antes de o rodar. O seu mundo é o da imaginação e o da sensibilidade. Se não sente a história que tem de narra cinematograficamente, isto é, com os elementos próprios do cinema, não terá captado e conseguido a atenção do público e a emoção que se deveria transmitir aos espectadores perde-se inutilmente. Reconhece-se tanto na América quanto na Europa o papel preponderante que desempenha o director. Se muitos filmes dão a impressão de enganos e falhas, é que o diretor, incompetente, deixou-se dominar, durante a realização, por uma personalidade mais forte que a sua, executando às vezes as intenções do cenarista ou mesmo do autor da história. E nem sempre essas intenções servem à construção de filmes, mesmo que sejam as melhores e mais sérias dentro de seus limites e objectivos.

Como afirmamos acima, o director colabora com o projectista e dirige a montagem. Um aspecto a considerar é a sua participação na elaboração do projecto do filme. Não raro o director é ao mesmo tempo projetista. Ele é que traça o filme e o prepara antes de fazê-lo rodar. Isto não o obriga de fazer pessoalmente a escolha ou a adaptação da história. Cineastas como Chaplin e René Clair, Orson Welles e Cocteau, concebem, projectam e montam os seus filmes. Com o desenvolvimento do cinema, esta prática, que hoje apenas raros realizam, será certamente predominante. Pois um homem dotado de imaginação poderá, amanhã, pensar em termos de cinema, como pensava ontem em termos de literatura. É apenas uma questão de formação técnica.

O filme, exige naturalmente, o conhecimento profundo dos meios de que dispõe o cineasta, os recursos da câmara e do micro. Um contista que não conhece nem a gramática nem a ortografia não poderá ser escritor. Como o pintor, o cineasta deve possuir, a um tempo o gênio inventivo e a técnica da sua arte. Só que o seu métier é de chefe. Concebe, dirige e coordena os elementos dispersos. Deve portanto, fazer-se compreender claramente por toda a sua equipe de colaboradores e sua autoridade pessoal deve ser aceita voluntariamente.

Não age o director como chefe de orquestra, porque se não se contenta em dirigir os elementos. Trabalha com cada especialista que empresta ao filme a sua técnica e o seu trabalho. Estimula-os, dirige-os, aprova-os ou os critica. Tem a visão geral. Ao cenarista dá a colaboração no desenvolvimento da trama, redige junto com o adaptador o projecto da ação, prevê o movimento dos actores e a ordem das cenas, indica ao diálogo a sua justa missão.

Enquanto explica ao decorador a atmosfera da história, aprova maquetes, desenhos e procura , com o chefe-operador, a melhor maneira de distribuir a luz sobre a cena dramática, convoca costureiros, compra modelos... Amanhã, no cinema colorido, vai enfrentar novo problema, a adaptação das cores de fundo com as vestes dos personagens, passando de um plano a outro sem ferir a retina que pelas diversas intensidades do preto e do branco. Escolhe a musica adequada à paisagem das cenas. Tudo isto e mais uma infinidade de anotações não passam de trabalho de preparação. Só assim se poderá rodar o filme.

Para a montagem há sempre um especialista que realiza as indicações do diretor feitas no projecto. Teoricamente a montagem não é senão a reconstituição em imagens do filme projectado sobre o papel. Cada segundo tem uma duração prevista por minuto e mesmo por segundo de projecção. O especialista em montagem faz o seu primeiro trabalho segundo as indicações teóricas. Mas somente por experiências, por tentativas, é que se chegará à montagem definitiva.

Este trabalho ainda deve pertencer ao director, se de facto, quer manter a paternidade do filme. Feita a montagem, projecta-se o filme bobina por bobina. Notam-se durante a projecção e comparam-se as anotações. Depois dessa verificação particular, por bobina, projecta-se todo o filme a fim de constatar se no conjunto aparecem as falhas ou modificações julgadas preliminarmente necessárias. Optaram-se as rectificações e novamente se projecta o filme, anotam-se passagens, novas modificações. E assim duas, três, dez vezes sendo necessário, projecta-se e rectifica-se o filme.

Dizia certa vez, Jean Epstein:

- “No écran não existe natureza morta”.

Qualquer pormenor tem importância, desempenha um papel. No cinema todo acessório funciona como não se o fosse. Com o cinema falado houve uma compensação. O objecto deixou de exercer o grande destino que se lhe reservava, crescendo o actor em importância, por meio do diálogo. Entretanto, voltamos à concepção do objecto-personagem, que é a própria essência da expressão cinematográfica. Não quer dizer que é secundário o papel dos dos actores do ponto de vista do director. Aliás, este deve dar-lhe a maior atenção, pois o seu jogo ocupa lugar preponderante.

Convém não esquecer que o director age directamente sobre o objecto-personagem, domina-o sob todos os aspectos. Não ocorre o mesmo com o actor, que tem uma personalidade, um conceito próprio do seu trabalho. Muitas vezes ele se opõe ao cineasta, ainda que involuntariamente, por sua natureza, seu gesto, suas idéias. É mister que haja a mais estreita colaboração entre esses dois elementos do filme a fim de que o mutuo esforço leve a unidade imprescindível e fundamental.

É extremamente curioso e revelador observar o modo pelo qual o cineasta dirige os seus actores, como fazem para comunicar ao seu pensamento uma expressão estranha. Uns geralmente nervosos, guardam a mais absoluta paciência. Outros mordem os lábios, desmancham os cabelos, apertam a fronte, crispam os dedos, sentam-se, levantam-se, falam, fazem confidências, às vezes até choram ou assobiam. Um director consciente executa o gesto diante do actor, fá-lo repetir, explica-lhe o sentido decompõe e demonstra-o como se fosse um teorema. E esta admirável precisão matemática se transforma na tela em momento inesquecível de via e de arte.

Tais métodos de trabalho são inerentes às personalidades que os aplicam. Naturalmente correspondem à concepção pessoal do métier do director. São ao menos em parte, condicionadas pelos meios de que dispõe o cineasta para materializar a idéia de seu filme. Nova técnica, ou simplesmente novos instrumentos – câmaras, estúdios – colocados à disposição do director darão como resultado um método diferente.

Por muito tempo foi o trabalho do director uma tarefa de autêntico improvisador. Todos os que se destacam atualmente como grandes cineastas vieram ao cinema através das mais diversas formações e misteres. Hoje, graças aos sacrifícios, às experiências, aos erros e enganos, sobretudo a estes, o mister de director deixou de ser uma constante improvisação.

Actualmente, a arte do filme tem a sua gramática, a sua sintaxe. Cumpre, portanto, preliminarmente, conhecer e incorporar esse conhecimento, adquirir os fundamentos afim de que deles se eleve o gênio criador e se forme o estilo.

Para realizar um filme conta o director com vários elementos. Antes de todos, a câmara. Através dela é que se registram as imagens sobre a película. Para o cineasta não é a câmara um aparelho complicado, que ele deve conhecer pormenorizadamente, em sua sutis e sensíveis peças de registro e de movimento. É, pra ele, uma máquina de pensar e de exprimir o pensamento e a emoção que cria o seu universo próprio e o projecta, queiramos ou não, à sua maneira.

Não é simples instrumento, mas uma mecânica parecida com a máquina de calcular, que procura e tende a substituir o lugar do homem a pensar por ele com todas as sutilezas da inteligência humana. Seu poder ultrapassa de muito alcance do olho humano. Dispondo de meios como o ralenti e a aceleração, funde a duração e o espaço e os conjuga, abrindo desconhecidas perspectivas ao progresso humano.

Faz com que as pedras vivas se confundem e se interpenetrem todos os reinos. Registra o real, não pode registrar outra coisa que não seja o real, porém projecta diante de nós o irreal. Suplanta o nosso sentido de visão: multiplica-o ao infinito. O director domina essa máquina inteligente e com ela pode realizar o espetáculo de beleza.

O ADAPTADOR
(conclusão dos nº 112 e 115)

Há muito se tenta definir a tarefa exclusiva e própria do adaptador. É ela completamente diversa segundo se trata da adaptação de uma obra literária já existente ou do projeto de um cenário original. Neste último caso é facilitada enormemente a tarefa do adaptador, pois joga com mais liberdade para compor os fragmentos da acção de acordo com as grandes linhas dadas pelo cenarista. Pode, assim, fazer uma obra mais autenticamente cinematográfica, não tendo pela frente obstáculo de um desenvolvimento preexistente.

Quando se trata de transpor um romance ou peça à realidade cinematográfica, enfrenta o adaptador duas condições essencialmente contraditórias: respeitar o tema e dar-lhe uma forma cinematográfica. Em geral se despreza a primeira das condições acima citadas, e o filme, não raro, conserva da peça ou do romance apenas o título, uma ou outra cena e os personagens. Sem que se deva proibir à imaginação qualquer vôo, uma exigência deve, entretanto, cumprir o adaptador: respeitar o espírito do tema inicial. Fora disto se permite toda a liberdade.

Um filme retrato do romance não tem por objectivo ilustrá-lo. Isto seria insuportável. O livro, ou o conto ou novela, tem suas características próprias, as suas regras, a sua técnica. O cinema também tem as suas. Trata-se de atingir fins idênticos por meios diversos. Muitas vezes o filme não corresponde às expectativas do leitor do romance.

Ora, jogando com uma técnica diferente, o cinema realiza a transposição visual e dentro destes limites deve ser aceito. Se não fecha dentro dos quadros que o romance desenvolve, é porque, além da qualidade e dos meios de sua expressão, precisa o filme atender ao tempo da sua realização e projecção. Quase sempre, o desenrolar de um romance ultrapassa de muito as possibilidades normais da metragem do filme. Podem citar-se centenas de romances escamoteados pelo cinema, com a sua acção redubida de metade ou os seus personagens de três quartos. Quando mais curto um romance mais chance apresenta ao aproveitamento cinematográfico.

Pouco a pouco, porém, se abandonará a adaptação de peças ou dos gêneros literários. Durante longo tempo viveu o cinema da literatura mas já vai chegando o tempo em que a nova forma excitá-la a imaginação dos criadores.

A construção cinematográfica tem as suas leis, que não são nem as do romance nem as do teatro. Um filme é essencialmente uma acção, ou caracteres, ou sentimentos expressos por uma série de imagens em movimento.

São estas imagens – com as suas incidências e atmosfera, seu diálogo e sobretudo o seu movimento dramático – em que o projeto ou roteiro tem de compor. É o trabalho do adaptador. Cuida-se de escrever o filme e, por essa razão, se pode admitir que o adaptado é, justamente com o diretor, o verdadeiro autor do filme.

O roteiro técnico é, com efeito, uma realização escrita do filme que se vai rodar. Não só as cenas devem figurar na ordem necessária, mas ainda nessas cenas cada plano dando a posição na qual se verão os representantes ou as coisas. Como tarefa definitiva o roteiro técnico supõe, paralelamente, a série de imagens a rodar e a dos sons a registrar. O adaptador ordena o argumento de modo a fazê-lo inteligível e expressivo; prevê as seqüências sucessivas, o seu lugar e a sua importância determinando os planos em que elas se devem compor. Uma seqüência e a série de imagens que se desenvolve num tempo continuo e, geralmente, num mesmo lugar.

Os diferentes planos correspondem às necessidades da expressão e se compõe, segundo a distância que separa o sujeito do objectivo. Um roteiro perfeito deve ter a prefiguração do filme. Nada deve esquecer, nem a posição de um acessório, nem o jogo dos interpretes, nem a decoração, nem a duração da cena. De facto, este roteiro ideal permanece muitas vezes em teoria. Na prática, tem o adaptador a missão de desenvolver a acção em cenas sucessivas, cuja conjunção responda à mais perfeita expressão cinematográfica. Redige uma espécie de esquema, que o director animará com o concurso dos seus colaboradores e dos seus actores.

Não pode porem prescindir o adaptador de imprimir a importância e o destaque devidos aos sucessivos planos de determinar o movimento do filme uma construção, tem a sua linha de composição, as suas ligações rítmicas e de imagens implacáveis. Uma fusão tende a fazer-se entre o adaptador e o director, ou pelo menos a mais estreita colaboração. É certamente este o caminho mais seguro para que se torno o filme uma verdadeira obra de arte.

O roteiro técnico é quase sempre obra do realizador, pois apresenta sobre o papel o que deve ser o filme mais tarde, na película. Daí a importância primordial do adaptador na composição. Director, cenarista e o adaptador jogam assim os papéis principais do film; são, realmente, os seus principais criadores.

Revista Celulóide, nº 112 e 117 – Rio Maior (Portugal) abril e setembro de 1967.(escrito em português de Portugal)