quinta-feira, 3 de junho de 2010

R.F. Lucchetti


HETERÔNIMOS E CULTURA DAS BORDAS: RUBENS LUCCHETTI

O encontro

Chego a Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, onde fui, de propósito, para encontrar Rubens Francisco Lucchetti que, como Urbain Laplace, escreveu para uma editora de São Paulo um dos livros de São Cipriano que estava estudando. Dentre a grande massa móvel de textos que cobre o título nas editoras populares que o lançam na América Latina, é este um caso muito especial. Abreviado, conciso mas cheio de previsões apocalípticas, fazendo seguir nas entrelinhas uma expressão irônica.

“Aí está a lúgubre profecia do celebrado São Cipriano! Segundo esse mártir a humanidade desaparecerá da face da terra, no ano da desgraça de 2268, faltando portanto 298 anos, e o motivo disso será a decadência inorgânica que mina os seres, desde a mais velha antiguidade”. Mas o autor ao longo do texto está sempre desconfiando e sugerindo incertezas, além de até afirmar claramente: “É preciso não acreditar em fábulas mas só no que for provado”...

Daí a curiosidade que tive de conhecê-lo. Eu já sabia, a partir de informações difusas e através de um dos seus editores, que se tratava de em escritor conhecido, de um pesquisador metódico, dado aos livros com fervor, homem de cinema, autor de muitos roteiros premiados, tendo feito cinema abstrato e experimental, e que tinha trabalhado como roteirista para José Mojica nos filmes de “Zé do Caixão”. Vim depois a saber que para Mojica escreveu dez roteiros cinematográficos e inúmeros televisivos. Também, para Ivan Cardoso, o roteiro de As Sete Vampiras, filme que levou, segundo informação no Jornal do Brasil (11/12/88), um milhão de pessoas ao cinema. O Escorpião Escarlate, do mesmo diretor, baseia-se num conto seu. Fez também roteiros para histórias em quadrinhos, criou revistas, como a Cripta, em colaboração com Nico Rosso, que inovou em matéria de terror. Atuou em muitas frentes, tendo Omo personagens “Frankstein” e a “Múmia”, entre outros, colaborando nos magazines Eureka Terror, da Editora Vecchi, e Vampirella, da Noblat.

Daí que, visitando-o em sua casa, em sua bem-organizada biblioteca, eu me sentia pequena e encantada, Alice, enfrentando o calor de Ribeirão e ele, bastante formal, me falando de vampira brasileira, da filha do “Drácula”, que descrevia com as mãos, presentificando seus gestos e fazendo-a beber sangue a copos.

Encontraria depois, num jornal de Ribeirão Preto (Ribeirão Agora, março de 1985), um comentário interessante que vai ajudando a compor esta apresentação: “Ele poderia ser um personagem de si mesmo. Anda sempre de paletó... tem uma vida monástica dentro da sua biblioteca de dez mil livros, setenta mil revistas e publicações raras”.

Nos contactos que tivemos por telefone, ele já me dissera: “Eu sou um ficcionista”. De fato, ninguém mais do que ele. Diante das necessidades de sobrevivência, conforme revelaria, e que o engajaram num ritmo alucinante, escreveu 300 livros, além de toda a produção e atividade paralela. O dado é muito importante para o entendimento do processo criador deste e de outros escritores que seguiram, aqui ou em outra parte, igual caminho. Confessa agora estar rejeitando trabalho como free-lancer, diz-se arrependido de muitas concessões feitas e do tempo que roubou à literatura, sua verdadeira paixão. Contratado para escrever livros e mais livros para editoras populares, teve que conviver com muitas dificuldades, a partir das quais passou a armar suas estratégias, para conciliar suas inclinações com as demandas. Transitou sempre pelas próprias armadilhas, transformando os clichês pela interferência da paródia, ou de algum efeito estranho, como pude observar depois, e há quem considere As Sete Vampiras um interessante texto antropofágico.

“As Sete Vampiras não só assume sem culpa esse processo de construção (o saudável potencial do espírito deglutinador da chamada chanchada) como o explicita, a partir de seu próprio título. Nada mais antropofágico.”

A heteronímia

Rubens Lucchetti passou-me muitos dos seus escritos, e, aos poucos, fui penetrando neste mundo singular, acercando-me do seu processo aturdidor de criar, buscando entender sua divisão e sua unidade. Procurei reunir dados colhidos no contacto pessoal aos recolhidos, a partir de fontes de informação e da reflexão teórica, e foi então que pude perceber como foi importante a heteronímia em seu mundo, em sua obra e em sua vida. Foi uma saída, o jogo criativo, o modo de enfrentar os impasses, ou a máscara de representação múltipla. Procedeu como modelo clássico de Pessoa, procurando agrupar seu “eu” disperso, usando-s a si mesmo como criador e personagem. Lembro sempre de Ho Chi Min, que se heteronizou em muitos guerrilheiros, recebendo, em função de diferentes situações, muitas posturas e outros nomes, para poder perfurar e transformar-se no verdadeiro formigueiro, que faria explodir a dominação francesa no Vietnã.

No caso do escritor de Ribeirão Preto (aliás nascido em Santa Rita do Passa-Quatro), poderia ter usado apenas os pseudônimos a que o obrigava o tipo de produção vertiginosa com que se comprometeu; aliás, costuma-se dizer que ele tem mais de 100 pseudônimos.

O processo da heteronímia não é simples para ser explicado por injunções externas, imposições de editoras que assim o obrigavam, nem por impulsos internos que o levariam a isto por um projeto de criação. Conjugam-se aí vários fatores, dos pessoais aos sociais, e a heteronímia passa a ser um recurso, um álibi, uma adaptação do compromisso do escritor às necessidades do escrever. Tenta adaptar seu ritmo a tudo aquilo que poderia ser, transitando entre as várias faixas de leitores aos quais está votada a sua criação.

Faz-se passar por outras almas, para produzir textos com os quais se comprometeu para sobreviver, mas a que não se queira dar friamente, apenas por dever do oficio, uma atividade que, pelo menos, não lhe furtaria o direito à ficção, à fantasia, ao jogo. Assim que este escritor tão elástico, leitor assíduo de Ray Bradbury, Isaac Asimov, H.P.Lovecraft, vai reunindo tudo por vocação poligrafia. Em muitas passagens nos transmite sua inquietação e a insistência em achar o porquê de tudo isto, da arte e do oficio. Operando nos limites de universos culturais contíguos, porém distintos, na corda-bamba para atender aos apelos desta produção popular, que se faz em resposta direta a um tipo de público, traz para aí suas experiências e inclinações, seus anseios de autor. Forma uma verdadeira teia, em que uma personagem-heterônimo-autor remete à outra, e esta a uma outra, perfazendo um círculo e daí por diante, num jogo muito criativo.

Por exemplo, o heterônimo Urbain Laplace, que escreve O Livro de São Cipriano, é um sábio francês, dedicado a coisas de astrologia e de ocultismo, que tem a face e a postura de um enciclopedista do século XVIII, segundo desenho que ilustra uma das publicações por ele assinada. Rubens Lucchetti admira-o muito, e chega a ponto de votar-lhe um espaço próprio, destinando ao sábio místico um local de trabalho e um conjunto de livros em sua biblioteca. UrbainLaplace não assina apenas esse título, mas transita como autor por outras editoras populares e responde por 15 títulos, sendo bastante conhecido e consagrado pelos públicos populares.

Já num outro momento, tranforma-se Rubens Lucchetti em Madame Vera Waleska, em verdadeira performance teatral, para poder escrever ou adaptar O Segredo das Cartas, por solicitação de uma editora cujo elenco variado de autores, que consta do catálogo, nada mais é do que a seqüência de heterônimos de Rubens Lucchetti.

O segredo das cartas aparece como sendo compilação de Vera Waleska em tradução de T.G.Novais, dando-se aos suposto (?) original o título de Le tarot diabolique.

É nas apresentações e prefácios que o autor ortônimo aproveita para se expandir, e ao mesmo tempo mergulhar na tradição oral, nos contos de princesas, tão persistentes nas expectativas populares, para compor as figuras que apresenta e trazer um território em que nos faz penetrar. Dá-se ao gosto de narrar aquilo que o público espera, a estória que todos já sabem, depositada numa espécie de “metaconhecimento”.

“A vida de Vera Waleska daria uma sensacional novela de aventura em que não faltariam o drama, a comédia, o heroísmo e o amor, acima de tudo muito amor. Vera nasceu em Toulon, França, em 3 de agosto de 1822, era a décima filha de um casal humilde, Joana e Pierre Touraine. Vera viveu apenas um ano em convívio da sua família, quando foi raptada por um bando de ciganos(...). Vera ia crescendo, tornando-se cada dia que passava mais linda. Quando contava apenas dezessete anos de idade era uma encantadora e cobiçada moça, seus longos cabelos negros caíam-lhe pelos ombros nus, tostados de sol e a blusa de seda deixava entrever pelo decote um par de seios (...). Certa noite quando ela dançava junto à fogueira, sob os acordes lamentosos do violino de François, passou pelo local um nobre russo, o príncipe Wladimir Walewiski (sic) que, vendo-a, apaixonou-se imediatamente. Vera iria se casar com o príncipe e ser feliz(...) revertendo os seus direitos autorais para a Salle d’Asile de Paris. A princesa Vera Walewiski faleceu em Paris em 1906.”

A Rede dos heterônimos

Quem assina o texto acima é T.G. Novais, um outro heterônimo de Rubens Francisco Lucchetti. Aqui um profecia o outro: Novais e Waleska. Aliás, é preciso dizer que muitas mulheres são apresentadas sob a pele de Rubens Lucchetti: Margareth Rice, Helena Barton, Isadora Highsmith, Mary Shelby, Dorothy Burges, etc., trazendo uma sucessão de detalhes curiosos.

Por sua vez, é Novais o tradutor e apresentador de outro sábio, Theodore Field, que responde por uma série de livros da coleção “Patuá” da Editora Nautilus. ‘As meditações de um guru’, ‘Os sonhos’, ‘Os mistérios dos sonhos’, ‘O livro de bolso das mágicas de Salomão’ são alguns exemplos. Termina esse autor alguns dos seus textos com o recurso de criar uma grande cumplicidade com o leitor, numa fórmula: “Chegou a hora de nos separarmos, querido leitor, relembrando as palavras de Helena Blavatsky...”.

Segundo T.G.Novais, “Theodore Field é filho de nobres ingleses e nasceu na suntuosa mansão em que (sic) a família possuía nos arredores de Londres, numa tempestuosa noite de fevereiro de 1859. A estrada, totalmente alagada e obstruída por gigantescas árvores, impediu que Lady Field tivesse assistência médica no parto prematuro (...) enquanto Theodore nascia, várias vidas eram ceifadas pela fúria da tempestade, uma das mais terríveis que se tem memória naquelas paragens. Todas estas circunstâncias de que se revestiu seu nascimento marcariam profundamente a existência de Theodore Field. Sempre foi uma criança meditativa. Não que fosse triste ou anti-social mas sim profundamente preocupado em analisar problemas de extrema profundidade”.

É o recurso ao topos de “O dia em que nasci moura e pereça”, proveniente do universo bíblico, que em português, passando pelo discurso camoniano, teria tão forte acolhida no universo da estória popular. Mas é aí, na composição do personagem-autor Theodore Field, que se sente um projeto de conhecimento que passa por outros heterônimos de Rubens Lucchetti, e que vai reunindo ao ortônimo as fabulações de suas criaturas.

“Crescia insatisfeito, numa ânsia incontida de saber dos segredos do universo” é uma passagem autobiográfica, espécie de ligação do autor aos fragmentos em que dispersou com outros nomes, e que aparece um relato mais amplo de suas aflições de adolescente, no prefácio a um livro de Conan Doyle que recriou, e que assina como Rubens Lucchetti:

“É por esse motivo e outro de ordem muito particular que selecionei para a abertura desta série, uma vez que ela está ligada à minha infância e a toda uma fantasia que envolvia um garoto de quatorze anos, pobre, sem brinquedos mas que tinha a feicidade de ter amigos como ‘Brucutu’, ‘Li’Abner’, ‘Tim e Tom’, ‘Brick Bradford’, ‘Zé Mulambo’, ‘Dan Dun’, ‘O Sombra’. Por sinal foi ‘O Sombra’ minha primeira leitura, quando mal sabia ainda juntar as letras”.

Na procura contínua de transparecer como ele mesmo, buscando desembaraçar-se do novelo de heterônimos, confessa que sua ligação maior é com a espiritualidade a perpassar seu mundo inquieto, com a crença numa outra vida que se funde com o projeto maior, paixão e razão de ser nesta de agora: produzir estórias. Aliás, um detalhe que merece ser aqui destacado. Há como um toque britânico em seus personagens, que podemos ter como uma influência do romance policial inglês, mas que o autor explica como a marca de sua relação transcendente com a Inglaterra, e a passagem por outras vidas. Daí ser muito difícil localizar nos textos apenas os traço de sua crença, pois há um elo entre a ficção, enquanto tal, e seus credos pessoais enquanto individuo.



“Em cartaz: Lucchettii”, ilustração de Ely Borges para o jornal Ribeirão Agora, de março de 1985.

Uma cultura das bordas

A experiência de estudar um autor como Rubens Lucchetti conduz a que se procure entender o cânone desta literatura que se produz para os públicos populares, num sentido mais amplo, e depois estabelecer as gradações entre os vários subpúblicos, em sentido mais restrito.

Se por um lado reunimos dados para uma sociologia da leitura, para perspectivas da comunicação popular, por outro, não nos podemos esquecer do próprio texto e da dinâmica desta criação enquanto literatura, nos vários “gêneros” que são aí exercitados. Este universo é de fato, embora com áreas de interferência e procedimentos comuns, diferente daquele em que se confina a “cultura letrada”, e onde se faz aquela que é considerada “a literatura”. Não podemos esquecer porém que estamos lidando com vários tipos de produção, num escritor como este que oscila entre o que é e o que não é considerado popular.

Mas ao situarmo-nos diante dele, que transitou por tantos domínios, e de tão diferentes modos, vale distinguir aquele que realizou com mestria o gênero policial e de terror, em que aparece claramente como autor. Diga-se de passagem que desenvolveria sua criatividade num contacto múltiplo com muitos “gêneros”, adaptando-se à linguagem e à forma de expressar de muitos meios (revista, cinema, TV). Começou escrevendo contos policiais para revistas, tipo ‘X9’, ‘Meia Noite’ e ‘Suspense’, na década de 50 (pulp literature). Publicou inúmeros romances, novelas e contos de terror, dedicando-se a um tipo de literatura consagrada, e que atinge a públicos de maior instrução. A leitura de um livro como ‘A Gaiola dourada’ (Ed. Difel, 1979), um clássico brasileiro do gênero, um escritor que acha espaço nas editoras correntes.

Ele serviu também a esta poligrafia, em geral anônima, de editoras que popularizam e difundem textos em larga escala, algumas operando mistificações e verdadeira colchas de retalhos para leitores populares de menor grau de instrução. Falo de cultura das bordas e não margens, para não trazer a noção pejorativa ou mesmo reversora de marginal ou alternativa. Com “bordas” quero enfatizar a exclusão do centro, aquilo que fica numa faixa de transição entre uns e outros, entre as culturas tradicionais reconhecidas como folclore e a daqueles que detêm maior atualização e prestigio, uma produção que se dirige, por exemplo, a públicos populares de vários tipos, inclusive àqueles das periferias urbanas.

Um autor como este se distingue aí, nitidamente, inclusive pela natureza de alguns de seus projetos de criação e de conhecimento, que ele vai deixando sempre vazar para a sua “encomenda”, como a escritura de introduções que são verdadeiras pesquisas eruditas, cujo texto além de informativa é agradável.

Somos levados a colocar parte da sua produção em um determinado padrão, acusar o êxito conseguido nos textos a que se dedica. Há algo que faz dele um escritor, não importa se popular ou “culto” por destino ou endereço.

Relacionando, no entanto, sua obra num todo, vendo-a em seu conjunto e em circuito de atuação, é inevitável circunscrevê-la, em várias gradações, a esta cultura de bordas.

Tendo em vista o conjunto de edições populares a que me referi, há alguns componentes a serem situados. Não se trata apenas da definição do repertório mas o comprometimento vertiginoso do ghost writter que, ao fluir, não leva em conta deslizes e incongruências, prosódia e sintaxe, muitas das vezes. Há ainda desvios em relação à norma culta, transparece o registro conservador de seu cosmos, fazendo passar um toque que situa a visão de mundo das classes populares, afinal e desde sempre, seu público.

No entanto, é preciso notar que há muitas gradações neste conjunto de obra que ligam o autor ortônimo aos seus heterônimos, que algumas das marcas não permanecem sempre e que a questão de categorias, neste caso, é um artifício de entendimento.

O escritor Rubens Francisco Lucchetti se realiza em “gêneros” mais ou menos “nobres”, em produtos mais ou menos conseguidos, com maior ou menor grau de comprometimento e se dá, profusamente, à criação vertiginosa nas editores populares.

Fez Rubens Lucchetti uma adaptação do livro ‘Drácula’ de Bram Stocker, a partir de tradução do inglês por seu filho Marco Aurélio, e aproveitou para nos oferecer uma bem-sucedida introdução sobre literatura de vampiros, terreno em que se move com grande segurança. Só para reavivar a discussão sobre o limite de universos culturais e sociais, lembremos: um autor que a partir do conjunto lendário e da tradição oral recria e imortaliza uma personagem universal como ‘Drácula’, como é o caso deste irlandês, não merece a credibilidade mínima para figurar como autor na maioria dos dicionários e enciclopédias de literatura. Por causa do texto de Lucchetti, e tentando chegar à sua matriz, fui a uma bem-sortida biblioteca alemã, buscando as necessárias informações sobre Bram Stocker, nascido em Dublin, escritor de muitas novelas, entre as quais aquela que teria um destino excepcional, trazendo para grandes públicos o vampiro da Transilvânia. Pois bem, para saber desse autor, tive de me socorrer de um dicionário irlandês, em que ele aparece como personagem, e de uma valiosa ‘Enciclopédia de narrativas populares’, em que entra Stocker, por conta do verbete, com o nome de sua criatura famosa: ‘Drácula’.

Passando para Rubens Lucchetti, levantar questões referentes a este tipo de autor, tentar entendê-lo num conjunto, é perceber a delimitação de circuitos, seguir fenômenos de produção e recepção entre públicos populares urbanos no Brasil. É também pensar em problemas teóricos mais amplos e recolher elementos para uma teoria do texto popular, que tem várias gradações possíveis entre a predominância do popular ou do “massivo”, quando a recepção se embute diretamente no que se produz e as mediações são muito tênues. E ainda penetrar neste mundo extenso, rico, mistificador e sincero, ao mesmo tempo um engodo e uma promessa: o campo da edição popular. Aí a autoria e a propriedade do texto têm outros estatutos. O autor fica muitas vezes como compilador, fantasma e personagem, numa espécie de limbo permanente, ou termina encontrando soluções e estratégias, por criar jogos de ocultamento, como no caso de Lucchetti e de sua rede de heterônimos.

Que trivial é esse?

Os estudos mais recentes na Alemanha sobre este tipo de literatura a denominam de “Literatura trivial” (Trivialliteratur), em que se justifica o termo pela indicação de serem as narrativas em geral unicelulares, não alcançando portanto o estatuto e complexidade da outra literatura. No caso de um escrito como Rubens Lucchetti, deixa-nos um grande mal-estar o conceito de trivial. O termo, hoje, relacionado com a literatura, já está mais depurado pela repetição do uso mas carrega uma associação com o banal, com o cotidiano simplesmente, negando a grande aventura do “espírito”, uma literatura a ser consumida um tanto passivamente. É claro, no entanto, que algumas colocações, ligadas ao conceito, transparecem como parâmetros úteis. A verificação objetiva de alguns procedimentos textuais, técnicas e modos “formulares”, valorização de sentenças e de frases feitas, cumulação do sentido sensacionalista e emocional, perda do sentido de distância e do critério de originalidade, carga de clichês e constante descritividade podem ser características desta literatura. Tudo isto tem a ver com os textos que compõem, em suas diferenças mas em sua unidade, o conjunto que procurei focalizar, a obra múltipla de Rubens Lucchetti. É também possível, através desses itens, chegar ao estabelecimento de princípios comuns para grande parte dos produtos desta indústria editorial. Mas, como no caso de definir “gêneros” ou categorias, é preciso distinguir a receita de sua realização, a vitalidade de uma criação nova, que termina por se tecer nos entremeios.

No Brasil e na América Latina, as conexões e passagens do antigo popular tradicional, que cabe no conceito de folclore, ao de massas, onde se concentra a “trivialização”, abre espaços para uma criatividade fecunda, para uma adaptação imaginosa por sobre fórmulas e clichês. Sobretudo quando se trata de um escritor como este, de múltiplas facetas e de tão rica experiência, que sabe escolher para um livro que escreve, como Terence Gray (‘No domínio do mistério’, Rio de Janeiro, Ed. Cedibra, 1975), a epígrafe mais justa, colhida em Khaymam, no Rubayat: “Havia a porta para a qual não encontrei a chave; havia a cortina através da qual não podia ver”.

É eu começou ele a escrever, em criança, depois da leitura muito precoce de Edgar Allan Poe. Transitando por vários universos culturais, estabelece ligações entre o mundo das culturas populares e o das “elites”. Passa por experiências que atendem à exigência e ao apuro, e por imposições editorias que o levam ao descaso. Mas, além de tudo, ele inventa sem cessar, recria, mergulha fundo no mistério e na fantasia, para compensar o sentido da realidade chã, segundo ele próprio declara.

Um exemplo que faz pensar é o caso da estória de ‘Drácula’, em que o ficcional é todo montado, desde o original até a versão de Lucchetti, a partir de cruzamentos de diários (que em Rubens Lucchetti se dizem taquigrafados – interferência irônica e de non sense), e em que tempos e espaços se misturam, realidade e não-realidade, como num ‘Manuscrito encontrado em Saragoça’, arremesso em direção ao enigma da arte e aos limites do ficcional que assim se constrói: “O conde tem toda a razão, mas minha dúvida era a seguinte – poderia haver sonhos mais terríveis do que aquela fantástica e horripilante teia de ameaças e mistérios que me cercava?

Então nos perguntamos que conceito de trivial pode abrigar seqüências assim, pode comportar um processo complexo como o da heteronímia criada por Rubens Lucchetti que detém os limites entre as coisas e o que nos fará, de fato, dizer com tanta certeza que a outra literatura, a “não-trivial”, é que é a LITERATURA?

O livro São Cipriano, o legitimo capa preta, São Paulo, Ed. Luzeiro, s/d. O livro São Cipriano, uma legenda de massas, onde a autora acompanha o fenômeno textual e editorial deste livro.

RUBENS LUCCHETTI por Jerusa Pires Ferreira
Nº 04 – Dezembro/ Janeiro e Fevereiro - 1989/90. Revista USP

Jerusa Pires Ferreira é professora da ECA-USP e trabalha com temas medievais e populares. É autora de Cavalaria em Cordel (Editora Hucitec) e O Livro de São Cipriano – uma legenda em massas.