BRAZ
CHEDIAK
Roteirista
Você
trabalhou na estreia de Renato Aragão no cinema. Como recebeu o convite para
escrever o roteiro de Na
Onda do Iê-Iê-Iê?
Eu
havia datilografado o roteiro de uma comédia para o diretor Aurélio Teixeira, que
se passava na Polícia Militar. Como estávamos vivendo sob a ditadura, o filme
foi proibido antes mesmo de ser filmado. Disseram que denegria a imagem da
polícia a filha do Coronel se apaixonar por um soldado e – pior ainda – ter um
ou dois soldados trapalhões
era inadmissível.
Como
havia sido convidado para trabalhar como assistente de direção, fui à noite à
casa do Aurélio, sem saber do fato. Cheguei lá e encontrei todo mundo triste, o
Aurélio, o produtor Jarbas Barbosa, a atriz Gracinda Freire, mulher do Aurélio.
Enfim, todo mundo estava tenso, chateado. Contaram, então, da proibição. E
levei um susto. Eu estava sem dinheiro e precisava de um trabalho urgente. E,
na minha ingenuidade de um quase menino do interior, perguntei por que não
escreviam outro roteiro. O Aurélio me olhou com cara feia, perguntando: “Você acha que é fácil, garoto?”
Respondi: “Acho que não é difícil.”
O
Aurélio já ia me xingar, quando a Gracinda falou: “Deixa o menino tentar, Zé!” Na
intimidade, ela chamava o Aurélio de Zé e o Jarbas Barbosa o chamava de Lelo.
Ele
então disse que eu escrevesse qualquer coisa, qualquer ideia. E ali mesmo, sentado
no chão, com um bloco e uma caneta, fiz uma sinopse.
Não
era novidade. Na realidade, era o mesmo roteiro que tinha sido proibido, só que
mudei os ambientes e os personagens. Ao invés do coronel, coloquei um dono de
gravadora; ao invés do soldado galã, coloquei um cantor; no lugar da competição
esportiva, coloquei um concurso de calouros.
Ninguém
percebeu. O Aurélio leu a pequena sinopse e disse: “Acho que dá um filme. Olha isso, Jarbas.”
O
Jarbas leu e sua feição foi modificando. Começou a falar, alegre: “Nessa cena, eu coloco o Renato e Seus Blue Caps; nesta, eu
coloco The Fevers...” E assim
sucessivamente.
Para
ele, Jarbas, que era irmão do Chacrinha, colocar os músicos era fácil; ninguém cobraria
e daria publicidade. O Chacrinha era um rei dentro da televisão e faria uma boa
divulgação do filme. Na
mesma hora, o Aurélio me perguntou em quanto tempo eu faria um roteiro.
Respondi que em uma semana. Contrataram-me no ato; e, no dia seguinte, comecei
a escrever na casa do diretor, pois lá eu podia almoçar de graça. Fiz
primeiro a estrutura aristotélica, com começo, meio e fim, como era em todos os
filmes da época. Depois, era só preencher com a ação cênica e os diálogos.
E
diálogo era minha especialidade, já que eu estudava Nelson Rodrigues todos os
dias.
Eu
escrevia rapidamente; e o Renato Aragão, então começando, colocava as piadas ou
gags.
E,
assim, conseguimos fazer o roteiro em uma semana ou quinze dias, não me
recordo.
O
filme foi um sucesso tão grande que, no dia seguinte ao lançamento, encontrei o
Jarbas na rua. E ele me disse “Chediak,
as filas pra ver o filme dobram o quarteirão. Os gerentes estão rasgando as entradas no meio para vender
dois ingressos...” Antes, eu havia trabalhado como ator
no filme O Homem Que Roubou a Copa
do Mundo,
do Victor Lima, e feito a assistência de direção de Giorgio Moser (diretor italiano)
numa série para a RAI (televisão italiana) baseada em contos de Robert Louis
Stevenson. Mas Na Onda Do Iê-Iê-Iê foi
meu primeiro trabalho atrás das câmeras para o cinema brasileiro.
O
filme tem muitos números musicais. Como foi o desafio de “amarrar” a história entremeada
com as músicas?
Como
a história se passava num ambiente musical, não houve problemas. No concurso de
calouros era fácil: o ator que fez o papel principal foi o cantor Sílvio César
e o cantor que disputava o “trono”
era o Paulo Sérgio que, na época, imitava o Altemar Dutra e em seguida fez uma
brilhante carreira imitando Roberto Carlos.
Ambientei
a maioria das cenas em locais que permitiam músicas, como boates, estações de
tevê etc. E olha que tinha muita gente: Wilson Simonal, The Fevers, Leno e
Lilian, Wanderlei Cardoso, Rosemary, Clara Nunes, Os Vips, Renato e Seus Blue
Caps, Ed Lincoln, além do Sílvio Cesar, que era o ator principal. No conjunto
do Ed Lincoln, o rapaz que toca baixo sou eu e o baterista era o Miltinho, que
hoje está no programa do Jô Soares. Quando
você tem uma boa estrutura dramática, as dificuldades são mais fáceis de serem
superadas.
Quais
foram as suas referências para montar a estrutura do roteiro?
Olha,
Rafael, eu gostava mesmo era de John Ford, Elia Kazan, Hitchcock, Fellini etc. Mas,
em minha cidade, Três Corações, havia assistido a todos os filmes com Elvis
Presley, Pat Boone e outros cantores da época e percebi que as histórias, as estruturas
dramáticas, eram iguais. Mais ou menos o que acontece com as novelas de hoje.
Então, talvez tenha sido essa a referência para o roteiro.
Renato
Aragão e Dedé Santana ajudaram no tratamento do roteiro?
O
Renato, sim. Foi ele quem criou as piadas, as gags.
Não interferiu na estrutura, pois ela estava bem costurada. E, quando se tem
uma estrutura assim, não se deve mexer, porque pode desmoronar tudo. O Renato é
muito profissional. Por isso, fez essa brilhante carreira que conhecemos.
Renato
Aragão tem fama de ser perfeccionista. Isso procede? Ele acompanha tudo?
O
cinema é a arte do diretor, e o Aurélio era muito seguro em sua direção. Ele sabia
tudo, da maquiagem à luz, da interpretação à montagem. E não achava bom o ator
participar da parte técnica. Por gostar de meu trabalho como roteirista e assistente,
ele permitiu que eu participasse de tudo, até o lançamento. Compreendia que eu
estava aprendendo direção e, como ele, precisava entender de tudo. Mas o
Renato, que estava começando na televisão, partiu para outro trabalho logo que
as filmagens terminaram.
O
argumento é seu também?
Sim.
O
filme foi dirigido por Aurélio Teixeira. Como foi trabalhar com ele?
Foi
ótimo. Ele entendia de tudo o que se refere ao cinema, e aprendi muito. Fizemos
até uma parceria e trabalhamos juntos em: Mineirinho
Vivo ou Morto, com o Jece Valadão e Leila
Diniz nos papéis principais; Juventude
e Ternura (com a Wanderléia, o Ênio Gonçalves como
galã e Anselmo Duarte como o bandido), Os Mansos,
com Jardel Filho, Sandra Bréa, Felipe Carone, Ary Fontoura, o próprio Aurélio
como ator (excelente). Também eu fiz um papel e dirigi um episódio.
Como
galã da história que dirigi, convidei o Paulo Coelho, que, mais tarde, se tornaria
escritor de sucesso em todo o mundo. Mesmo depois de eu já ter dirigido Navalha na Carne, voltei a
trabalhar com o Aurélio Teixeira. Foi em Meu Pé de
Laranja Lima,
no qual dirigi os atores infantis, pois o Aurélio não tinha muita paciência com
criança.
Quais
as suas principais recordações desse filme?
São
muitas. Fiz amizades com pessoas que admirava, como Mário Lago, por exemplo, do
qual fui amigo até sua morte e chegamos a escrever um roteiro juntos (mas isso
é outra história). Leila Diniz era minha companheira de papos, já que ela era
amiga de Gracinda e ia todas as noites na casa do Aurélio; e, terminado o
trabalho, íamos juntos até a TV Rio, onde ela se encontrava com o Henrique Oscar,
seu namorado na época. Depois, ela trabalhou conosco em Mineirinho Vivo ou Morto.
Enfim, todo filme é uma história, uma vida.
Você
construiu uma grande trajetória no cinema, assim como Renato e Dedé. Qual a
importância desse filme na sua carreira?
Como
foi meu primeiro filme brasileiro atrás das câmeras, vi, de cara, como é fazer
um filme em nosso país. Aprendi muito a técnica, tomei intimidade com a câmera,
com produção, direção, montagem, sonorização, mixagem etc., coisa que me foi
útil para os filmes que dirigi.
Imaginava
que esse filme era só o começo de uma grande trajetória no cinema de Renato e
Dedé, que, futuramente, iriam criar Os
Trapalhões e “dominar” o cinema do
país?
Percebi
que o Renato era um grande trabalhador e amava seu trabalho. O Dedé gostava
muito da direção, também. Vivia me perguntando sobre lentes, movimentos de
câmeras etc. Eu vi logo que fariam uma grande carreira na tevê, mas eles foram
além: fizeram uma grande carreira na televisão e no cinema, o que é muito
difícil, em todo o mundo.
Já
dava para perceber o talento deles dois?
Claro.
O talento e a disciplina. E que tinham garra. Por isso, fizeram uma carreira brilhante.
Fazem parte do imaginário do País.
Nos
números musicais, além de várias canções compostas e interpretadas por Sílvio César,
há ainda a apresentação de diversos artistas de sucesso da época: Paulo Sérgio,
Wilson Simonal, Wanderley Cardoso, Rosemary, Clara Nunes, The Fevers, Os Vips.
A escolha desses artistas foi sua?
Não.
A escolha foi do Jarbas, talvez orientado por seu irmão, o Chacrinha. Aliás, o
filme se passa, em grande parte, no programa do Chacrinha. Tem uma cena no
filme, no programa do Chacrinha que, se você prestar a atenção achará no
auditório o Jece Valadão, a Gracinda e alguns atores da época. Eles estavam na TV
Rio, onde foi feita a cena, e assistiram às filmagens do auditório, onde foram
filmados.
Por
que, após esse filme vocês não trabalharam mais juntos?
O
Renato viu meu trabalho escrevendo o roteiro e no set de filmagens e, depois do
filme, convidou-me para fazermos outros filmes. Mas eu não aceitei, achei que
ainda não estava preparado para dirigir. O J. B. Tanko aceitou e fez grandes sucessos
com a dupla. O Tanko era um diretor tarimbado, muito bom. Eu precisava fazer
mais assistências, aprender mais.
Qual
a sua avaliação a respeito do cinema dos Trapalhões?
Muito
boa. Lembro que os assistia junto com as crianças; e elas riam sem parar,
imitavam o Renato, o Dedé, o Zacarias, o Mussum. Meu filho, o músico Yassir
Chediak, me fala dos Trapalhões até
hoje. Eles fizeram parte da alegria de gerações.
Que
representou, em termos de linguagem cinematográfica, o cinema dos Trapalhões?
São
comédias muito benfeitas, bem dirigidas, com uma turma de grandes artistas. Sua
linguagem influenciou muito a nova geração de comediantes.
Por
que, na sua visão, os críticos e a Academia rejeitam os filmes produzidos e estrelados
pelos Trapalhões?
A
velha crítica. A nova crítica é feita por pessoas que cresceram vendo Os Trapalhões e têm uma
visão diferente. Não só deles, mas do cinema brasileiro como um todo. Hoje, todo mundo que gosta de
filmes compreende a importância dos Trapalhões
na história de nosso cinema.
Gostaria
que contasse alguma curiosidade ou fato desconhecido do público que tenha
presenciado como testemunha ocular.
Bom,
quem ia fazer a mocinha era uma atriz de nome, já consagrada, conhecida do
grande público. Para fazer o teste de fotografia com roupas, ela levou uma
garota como ajudante.
Era
no estúdio do Herbert Richers. O Aurélio fez o teste, me chamou à sua sala e
disse: “Chediak, dirija o teste com a garota
que está com a fulana.” Chamei o fotógrafo disponível na hora
e fiz alguns ensaios fotográficos. A garota era fotogênica, reagia etc. Foi ela
a escolhida. Era Valentina Godói. Outra coisa interessante é que, anos depois,
diziam que quem iria fazer o papel era a Leila Diniz, mas que o Aurélio a
substituiu. Não é verdade. Como disse acima, Leila Diniz ia todas as noites à
casa do diretor e era nossa amiga. Já estava escalada para um próximo filme: Mineirinho Vivo ou Morto. Ah,
um caso que presenciei e ri muito: fomos filmar na casa de um milionário, na
Gávea. A senhora, dona da casa, já idosa ficou maravilhada, quando viu o Mário
Lago. Lá pelas tantas, começaram a falar do regime militar e a senhora disse: “Sr. Mário, dizem que na Rússia comem criancinhas. É verdade?”
Como sabemos, o Mário era um comunista de carteirinha. Então ele olhou para a
tal mulher e respondeu, sério: “É
verdade, minha senhora. Bem assadinhas são uma
delícia!”
Ela fez o Sinal da Cruz e caiu na gargalhada, enquanto o próprio Mário fazia
força para não rir.