quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Os Trapalhões: Renato Aragão


UMA CONVERSA FRANCA COM O HOMEM POR TRÁS DE DIDI MOCÓ SOBRE PRECONCEITO CONTRA NORDESTINOS, BOLSA FAMÍLIA, RECORDES DE BILHETERIA, CRÍTICOS DE SEU HUMOR, OS TRAPALHÕES, ZACARIAS, MUÇUM, DEDÉ E, É CLARO, DIDI MOCÓ.

Quando Renato Aragão foi pela primeira vez entrevistado por PLAYBOY, em agosto de 1984, ele era um dos homens mais influentes do país: acabara de lançar dois filmes que, juntos, levaram quase 7 milhões de brasileiros aos cinemas e, apesar da então recente briga com seus colegas Dedé, Mussum e Zacarias, estava prestes a lançar mais um, Os Trapalhões e o Mágico de Oróz. Além dos sucessos nas salas, Renato encabeçava o programa Os Trapalhões, líder de audiência que imortalizou bordões como “ô psit!” e “cacildes!”.

Nascido em Sobral, no interior do Ceará, no dia 13 de janeiro de 1935, pai de Paulo, de 54 anos, Ricardo, 52, Renato Júnior, 46; Juliana, 37 anos, todos de seu primeiro casamento com Marta Rangel; e Livian, de 15 anos, sua filha com Lilian, sua segunda esposa, Renato se tornou, ao longo de mais de 50 anos de carreira, um dos maiores humoristas do Brasil – apenas comparável na história do gênero na televisão ao também cearense Chico Anysio.

Trinta anos depois daquela entrevista, no entanto, muita coisa mudou. Mauro Faccio Gonçalves, o Zacarias, morreu em 1990, aos 56 anos, por uma infecção nos pulmões. Sua morte tirou o fôlego da trupe, que depois do lançamento de Os Trapalhões e a Árvore da Juventude, em 1991, entrou em um hiato nas telonas. A esperança de que os três remanescentes, que continuavam firmes na Globo, se reunissem para lançar um novo filme acabou definitivamente em 1994, quando morreu Antônio Carlos Bernardes Gomes, o Mussum, aos 53 anos, que não resistiu a um transplante de coração.

A partir de então, Renato virou “o” trapalhão e, apesar de a dupla com Dedé Santana nunca ter sido oficialmente desfeita, os dois seguiram caminhos próprios. Renato se manteve na Globo, onde teve dois programas nos últimos 20 anos: Turma do Didi, no ar entre 1998 e 2010, e As Aventuras do Didi, que durou quatro temporadas entre 2010 e 2013. Também lançou nove filmes. Mas nem na televisão e nem no cinema conseguiu alcançar os sucessos estrondosos que o acompanharam ao longo dos anos 1980. Para toda uma geração, Renato Aragão se tornou, na melhor das hipóteses, o senhor que apresenta o Criança Esperança – e, na pior, o sujeito taciturno e mal-humorado que, dizem, briga com o personagem que o consagrou.

Até que surgiu a oportunidade de relançar no teatro Os Saltimbancos Trapalhões, um dos maiores sucessos de bilheteria do grupo no cinema. A peça, sucesso de público e, algo raro na carreira de Renato, também de crítica, renovou Didi e seu interprete, que está de novo sob a atenção dos holofotes. Foi esse Renato Aragão prestes a chegar aos 80 anos que o repórter João Pedro Jorge encontrou por duas sessões de duas horas cada durante o mês de novembro. A primeira ocorreu em sua espaçosa casa, em um condomínio fechado na Barra da Tijuca, recanto de artistas e famosos (“Ali, naquela esquina, mora a Xuxa”, ele apontou). Vestindo uma camisa polo verde, calça bege e sapatos, Renato foi atencioso e simpático. Além de mostrar a casa da vizinha, apresentou os dois cachorros da raça rough collie (a mesma da Lessie) chamados Kelly e Kimba, convidou para tomar um café “tipicamente nordestino”, com tapioca e queijo coalho e, com o gravador desligado, falou longamente sobre uma de suas paixões: o Vasco da Gama.

Na segunda sessão, no camarim da Cidade das Artes, no Rio, onde Os Saltimbancos Trapalhões está em cartaz, Renato Aragão apareceu vestido a caráter e, prestes a entrar em cena, bem mais irritadiço: reclamou do entra e sai de contrarregras que tentavam consertar o ar-condicionado e da insistência do repórter com alguns temas (“Mas eu já falei tanto disso!”, protestou). Mesmo assim não demonstrou em nenhum momento o seu famoso lado carrancudo (aquele que boa parte da imprensa adora pintar para ele). O resultado dessa conversa você “aí da poltrona” confere agora.

Você vai ficar bravo se eu chama-lo de Didi?
Eu não sei quem inventou essa calúnia. A única mágoa que eu guardo é com quem inventou isso aí. Isso foi publicado até em jornais! Eu tive que processar o jornal e o colunista {em 24 de agosto de 2012, Fabíola Reipert publicou em seu blog que Renato teria demitido um motorista que o chamou de “Seu Didi”}. Como é que pode uma pessoa inventar uma coisa dessas? Nem me conhece! Seria o mesmo que eu chegar aqui e falar: “Você é um repórter mau caráter”. Quem vai dizer o contrário?

Então não se incomoda quando chamam você pelo personagem?
Não. Meu trabalho é esse. Quando eu vou a algum lugar, estou disposto a tudo. Ao carinho, a parar para tirar selfie. Para mim, aquilo é uma vitória. O povo me conhece, sabe como eu sou. Sabe que eu sempre tenho um sorriso, que eu sempre paro. Minha maior preocupação é não decepcionar essa gente que me colocou aqui.

Por que surgiu esta história, então?
Quando você está lá em cima, quando começa a fazer sucesso no cinema, na televisão e no teatro, sempre vem a inveja. A inveja é uma merda. E tem gente que é pior que a inveja.

Você se incomoda com o que escrevem a seu respeito?
Eu nem dou bola mais para isso. As pessoas sabem da minha vida, sabem como eu sou. Sabem que eu sempre procuro agir com moral, honestidade e lisura. Durante toda a minha vida, eu pensei: “Por que vou falar com a imprensa, se eles sabem mais da minha vida do que eu?” {Apontando para a cópia da entrevista de 1984}. Você mesmo trouxe uma reportagem aí que eu nem me lembrava. Mas não importa. Eu continuo falando e sendo coerente com aquilo que eu digo.

Mas costuma ler o que é publicado sobre você?
Olha, eu sei que toda semana estou no hospital. É muita falta do que fazer! Eu não acho nem idiotice mais. É falta do que fazer. E fico triste com isso, porque é de um baixo nível tão grande. Antigamente as reportagens eram sadias, agora você não sabe o que é a verdade. Estão falando de você toda hora, e as pessoas captam essas mentiras. Parece que as mentiras são boas, mas o desmentido ninguém dá.

Você esteve de fato mal em junho deste ano (2014). O que aconteceu?
Eu sempre achei que meu coração seria o único órgão do meu corpo que não teria problema. Eu tenho alimentação saudável, não como gordura, fritura nem doce. Também faço ginástica e exercícios. Mas acho que foi a emoção dos 15 anos da minha filha. Nisso a minha pressão subiu muito e, de repente, comecei a passar mal. Me deram um Isordil {vasodilatador que ajuda a controlar a pressão}, não resolveu. Botaram o segundo e eu apaguei. Quando acordei a festa tinha acabado. {Risos}. No dia seguinte, eu vim para casa, tomei um café, e então me deu uma dor no peito muito forte, uma coisa terrível. Era um sábado e, graças a Deus o {Hospital} Barra d’Or é aqui perto. Chegando lá me colocaram um stent {prótese que é colocada na artéria para evitar o entupimento}, e não ficou nem cicatriz. Mas à noite veio uma febre tão grande que eu comecei a tremer. Peguei uma bactéria, uma infecção hospitalar. Até descobrirem, foram mais sete dias no hospital.

Você é notoriamente religioso. Durante esse momento, chegou a ver algo sobrenatural?
Não cheguei a ver nada, não. As pessoas que veem é porque entraram em coma, coisas assim. Eu não. Eu fiquei deste lado de cá.

Depois de 50 anos de carreira, você estreou ano passado no teatro. Foi bom pra você?
Esse foi um acidente muito bom na minha vida. Quando {os diretores} Charles Möeller e Cláudio Botelho me fizeram o convite, eu fiquei: “O que é, menino? Teatro eu nem seu o que é isso!”. Eu nunca tinha feito teatro. Fiz uns 4 mil shows com Os Trapalhões, mas era uma coisa distante, ficava aquele público enorme lá longe, a gente num palanque. Teatro é uma coisa intimista. E ainda quando eles me disseram que fariam Os Saltimbancos Trapalhões, tive certeza de que não daria certo. Um filme que eu levei um ano para fazer, foi gravado até nos Estados Unidos, como é que você vai montar aquilo num palco? Esses caras são loucos. Depois descobri que eles não eram loucos, eram gênios.

Foi difícil sua adaptação ao teatro?
É diferente do cinema, né? No cinema tem corte, tem close. No teatro você está ali, olho no olho do público, e o povo fica ali sentado vendo todas as suas expressões. Tudo o que a gente faz, as reações, ele sente.

Os Saltimbancos Trapalhões talvez seja o filme mais politico da trupe, com uma crítica à opressão usando o circo como analogia. Essa faceta permanece?
Permanece a mesma coisa. As músicas continuam as mesmas do Chico Buarque, que é genial, não errou nenhuma. O texto dele é um poema, um poema musicado. E ele é um cara que entende muito de politica. Neste espetáculo estou coberto de tudo quanto é lado. Por essa dupla de diretores e pelo Chico, que é um gênio.

Por vários motivos, o lançamento de Os Saltimbancos, em 1981, marcou uma virada na história do grupo, de um maior esmero nas produções e de uma aproximação com a classe média. Foi por isso que ele se tornou peça?
Não. Eles escolheram porque era um filme musical. Eu fiz Ali Babá, Aladdin, Robin Hood, mas nenhum deles é musical. Esse filme já tinha todas as músicas para o teatro, com cantores e tudo.

Mas Os Saltimbancos foi mais bem produzido que os filmes anteriores, não?
Olha, sempre que faço um roteiro quero fazer melhor do que o anterior. Se esse filme é bom, depois quero fazer outro melhor e, depois, outro ainda melhor. Eu quero me superar.

Seus filmes tinham limitações técnicas que eram comuns para a época. Eles eram realmente bons?
Tive 5 milhões de espectadores. E, naquela época, não tinha controle de bilheteria. Esses 5 milhões hoje seriam 10, 20 milhões de pessoas. É até ruim eu falar isso, mas se fosse hoje, ninguém ia superar a minha bilheteria. Mesmo sem controle, nós fizemos, no total dos filmes, mais de 130 milhões de espectadores, por aí.

Mas existe essa correlação entre público e qualidade?
Se o filme é bom, o povo vai ver. Os críticos são preconceituosos. Por que é que o meu filme é popular? Por que as pessoas são burras? Por que são nordestinos? Por que é um humor circense? Não, porque elas gostam! Eu faço os meus filmes para o meu público. Não faço para vocês, intelectuais, pseudointelectuais. Não faço os meus filmes para críticos. Nunca fiz filmes para críticos. Eu faço filme para o povo. E aí o povo vai ver.

Essas críticas o incomodavam?
Eu nunca liguei para isso, nem vou ligar. Tinha gente que criticava meus filmes sem assistir! Foi comprovado isso. Mas, quanto mais eles me malhavam, mais crescia o bolo, mais dava bilheteria. Os pseudocineastas ficavam umas araras porque os filmes deles não encostavam. Chegava um nordestino com um rolo compressor e passava por cima.

Por que você acha que era tão maltratado pelos críticos?
No mundo todo é assim. A crítica quer falar mal, ela tem que falar mal. Se ela falar bem, ela é pobre. O crítico que fala bem é um crítico que não merece ser crítico. Então eles têm que arranjar algum defeito. Às vezes ele sabe que está falando aquilo de má-fé, ele sabe que aquela atriz não está mal e que o vestido dela não é ruim. Aliás, até isso já falaram: “O figurino está horrível”. Mas eles têm que achar alguma coisa para falar mal, senão eles perdem o emprego.

Eu reparei que você tem um quadro do Romero Britto na sala. Ele também é nordestino, também faz sucesso e também é alvejado pelos críticos. Acha que há um paralelo entre vocês dois?
Eu e o Romero ficamos amigos na festa que a Globo deu para os 50 anos do Didi lá no Copacabana Palace. Ele fez esta homenagem muito boa pra mim {aponta o quadro em que ele, sua mulher Lilian e a filha Livian aparecem em todas as cores de Britto}, e eu fiquei muito feliz por conhecer um artista brasileiro internacional que os invejosos não perdoam. Eles não perdoam o sucesso. O sucesso se tornou o oitavo pecado capital. Se fosse um carioca ou um gaúcho que fizesse sucesso, também seria alvo. Ninguém perdoa o sucesso.

Apesar disso, os críticos aclamaram Os Saltimbancos Trapalhões...
{Interrompe}. Aliás, eu gostaria aqui de agradecer. Eu nunca recebi uma unanimidade como recebi em Os Saltimbancos. Pela primeira vez eu recortei tudo, recortei os jornais. Estava lá, na primeira página: “Bravo” Bravo!”. Para mim, é mais uma realização. Tenho de agradecer aos críticos de teatro por terem me dado quatro estrelinhas.

Você acha que nessa crítica talvez esteja imbuído um fator nostalgia?
Tem uma memória afetiva de quem dia às 7 da noite, de quem ouvia aquela musiquinha {canta as primeiras notas do tema de Os Trapalhões} e de quem viveu aqueles lançamentos de seis em seis meses dos meus filmes. Você via muita gente naquela época que morava em prédios de seis andares e que dava para ouvir a música em todos os apartamentos.

Como surgiam os bordões de Os Trapalhões?
Aquilo vem, eu recebo. Hoje eu nem me lembro mais quantos bordões já lancei. O mais famoso foi “ô psit!”, que veio do “psiu”, e “ô da poltrona!”. O Didi não ia ficar falando “s” e “r” corretos. Ele tinha um modo de chamar o povo para mim.

Nessa época você sofria muito assédio?
Tinha assédio, mas não chegava até a gente. Nos shows a gente ficava em meio a uma multidão muito grande, e tinha uns seguranças, e a gente saía, ia embora, e não tinha tempo de falar com os fãs.

E assédio de mulher?
Não, não, não. A gente era comediante, ninguém era ator, ninguém era galã. Era tudo comediante. O pessoal olhava e ficava rindo: “Me dá um autógrafo?”. Naquela época era autógrafo, não era selfie.

Você anda com seguranças ainda hoje?
Ando. Eu ando com segurança por dois motivos: eu tenho uma família e a Globo não pode arriscar um talento. Então, quando eu vou para a Globo, eles me dão segurança, e eu tenho um particular que é motorista também. Mas a gente não é muito visado. Eu pelo menos nunca passei aperto, graças a Deus. O pessoal tem medo da repercussão que seria fazer algo contra alguém tão conhecido.

O fato de você morar na Barra da Tijuca tem a ver com a segurança também?
Não. Eu sou pioneiro da Barra, cheguei aqui no fim dos anos 1980, não tinha nem estrada. Não saio mais.

Mas tem a ver com privacidade?
É muito mais tranquilo. Mas eu quase não saio de casa, não gosto de praia. Eu vou a um restaurante de vez em quando, gosto de ir ao shopping, mas é difícil, não dá para andar.

Por causa das pessoas...
{Interrompe com veemência} Carinhosamente eu digo isso. Mas eu falo com todo mundo, não deixo de tirar foto. Agora, com celular, você não tem sossego! Mas eu atendo todo mundo.

Você já pensou em morar fora do país para ter uma vida mais tranquila?
Não, o que é isso? Eu viajo muito. Vou sempre para os Estados Unidos, passo lá o fim de ano e tudo, mas quando dá uns 15, 20 dias, eu já estou arrumando as malas para voltar. Sinto falta do meu país. Eu poderia passar lá um período grande. Gosto de Orlando. Mas morar? De jeito nenhum.

Em 1984, você estava engatilhando alguns projetos internacionais. Existe alguma frustração sua por não ter feito tanto sucesso fora do Brasil?
Para mim não. Graças a Deus fiz sucesso no meu país com filmes para o povo brasileiro. Para fazer sucesso lá fora, eu teria de sair do país, aprender inglês. É muito difícil. Só agora alguns atores estão começando a romper essa barreira: o Rodrigo Santoro, a Alice Braga, o Wagner Moura. O Santoro é um cara que conseguiu sair do estereótipo.

Dos 11 filmes brasileiros que ultrapassaram a barreira dos 5 milhões de espectadores, cinco são seus e apenas três foram lançados na última década. Por que hoje é tão difícil atingir bilheterias expressivas?
Hoje eu poderia atingir muito mais, pois há um controle muito bom. Olha, nós temos uma concorrência americana forte. Os filmes americanos não precisam nem de ator, você viu as coisas que eles estão fazendo? Cada filme! Como é que eu vou pegar uma trucagem daquelas? Uns efeitos daqueles? É um melhor do que o outro. Mas a gente “tupiniquimente” pode fazer bons filmes. Estou esperando um hiatozinho para poder fazer um filme.

É uma questão de concorrência com os americanos, então?
Não, eu estou falando em relação à comparação com os efeitos especiais que ele têm lá e nós não temos aqui.

Então qual o problema?
Está todo mundo fazendo cinema e fazendo muito bem-feito, mas há uma saturação muito grande, principalmente em comédias. Tinha que segurar um pouquinho. E sabe uma questão que mudou muito? O estacionamento. Naquela época, com cinemas de mil lugares, o cara estacionava lá longe, não tinha estacionamento. E muita gente me falava: “Será que quando eu voltar lá meu carro vai estar?”. Hoje não, você tem shopping centers em que o seu carro está guardadinho, você vai tranquilo, mas as salas são menores. Não são salas de mil lugares.

Você mudaria algo em seus filmes se pudesse?
Eu mudaria sim. Antigamente, nas fotos de cartaz botávamos os heróis, os quatro trapalhões, de revólver na mão. Hoje eu nunca colocaria uma arma na mão dos heróis. Isso não pode jamais.

Você fez muito sucesso em uma época em que o país vivia a ditadura militar. Chegou a sofrer censura?
Ela não me incomodou muito. A única coisa que me incomodava é que você tinha que fazer um filme e mandar para Brasília, e lá eles davam o certificado de censura. Era como se fosse um selo: “Este filme está liberado”, e essa coisa toda. Então eu mandava um emissário para Brasília, os caras assistiam ao filme... Era um incômodo. Mas nos meus filmes, nunca disseram “corta isso, corta aquilo”. Dos meus filmes, nunca cortaram nada.

As pessoas hoje se autocensuram mais por causa do politicamente correto?
Não sei. Mas acho que nada deveria ser censurado. Tinha que ser tudo livre, e aí cada um que se responsabilizasse pelo que fala. Se você faz uma coisa que atinge a sociedade, essa coisa vai voltar contra você. Você vai chegar num programa de televisão, numa novela, e dar mau exemplo?  Não merece censura, mas merece a resposta das pessoas. A sociedade é que deveria “censurar”, mudar de canal. A melhor censura é o controle remoto.

Várias piadas de Os Trapalhões hoje são consideradas politicamente incorretas...
Mas, na época, a gente fazia como uma brincadeira. Era uma brincadeira de circo entre mim e o Mussum. Como se fôssemos duas crianças em casa brincando. A intenção não era ofender ninguém. Hoje todas as classes sociais ganharam a sua área, a sua praia, e a gente tem que respeitar muito isso. Eu sou até a favor. Mas, naquela época, essas classes dos feios, dos negros, dos homossexuais, elas não se ofendiam. Elas sabiam que não era para atingir, para sacanear. O Mussum, o Zacarias e o Dedé até forçavam a piada. “Olha, agora é a hora de falar aquela merda, mas vai devagar!” {Risos}.
Eu chamava o Dedé de “rapaz alegre”, entende? Mas era uma coisa de ator para ator, de personagem para personagem. Eles me chamavam de paraíba, mas era uma coisa dos personagens.

Você chegou a sofrer preconceito por ser nordestino?
Em tudo. Eu vou te dar um exemplo, e essa era a coisa mais clássica que eu ouvia, até que fiquei saturado de responder: “Renato, ontem eu vi teu programa passando no quartinho da empregada”. Poxa, por que você não vem para a sala? {Risos}. É mais confortável! O pessoal pensava: “Esses caras estão aí, vieram do Nordeste e estão fazendo sucesso?”. E  Os Trapalhões fez um sucesso que chegou a dar 80% de audiência. Hoje eu não sei se daria tudo isso com TV a cabo, a internet...

Você acompanha essa nova onda de humoristas brasileiros que está fazendo sucesso na internet?
Faz isso não, rapaz. {Risos}. Eu acompanho muito pouco, vejo internet muito pouco. Não sou desta geração de tecnologia. Tenho computador, entro nos meus e-mails, mas não acompanho muito. Gosto do Gregorio Duvivier, aquele menino é muito bom. Eles só estão errando porque pegam pesado demais. Não precisa. Eles falam muita merda. {Risos}. Se eles pegassem mais leve, conquistaria um público muito maior.

O Nordeste novamente foi pivotal nas eleições presidenciais. Com 15 estados tão diferentes entre si, é possível falar em uma cultura nordestina?
Essa pergunta eu devolvo para você. Acho muito preconceito isso.

Mas há semelhanças, não? O articulista Diogo Mainardi chegou a dizer depois das eleições no programa Manhatham Connection que “o Nordeste sempre foi retrógado, sem foi governista, sempre foi bovino...”
{Interrompe} Peraí, por que ele não vai lá educar as pessoas que ele acha que a agente não tem educação, não tem conhecimento? Por que ele não vai exigir que o governo dê educação? Isso aí é preconceito. Os nordestinos são esclarecidos demais, mas eles precisam comer. Eles são pobres. Eu sou a favor do Bolsa Família. Sou a favor com uma condição: dá um Bolsa Família, mas dá emprego. Se der só o Bolsa Família, a pessoa cruza os braços.

Você acha que o Brasil está dividido?
Acho que o país quer mudança. Eu até parei de votar, por que eu não sei mais em quem. Me apresente alguém? São todos corruptos... Desculpe, tem muita gente que quer fazer um país melhor, mas eles não conseguem porque os corruptos são muito mais fortes. Hoje em dia não tem mais cadeia para botar, e agora quando entrar essa delação premiada, cara! Você vê esse escândalo da Petrobras? Essas coisas vergonhosas. Eu me sinto tão indefeso. O povo fica indefeso.

Na entrevista de 1984, em meio ao processo de reabertura política, você disse: “Eu sou palhaço, mas quero escolher meu presidente”. A democracia foi um processo frustrante para você?
Ao contrário! minha frustração foi acabarem aqueles protestos. Temos que ir para a rua, temos que exigir mais democracia. Você sabe que a primeira vez em que vi os protestos, aquelas milhares de pessoas na rua, eu queria sair para lá, nem que fosse para ser mais um, para fazer figuração. Acho que era a hora de a agente mudar o Brasil. O povo tem que começar a puxar o país para ele, não pode deixar na mão de gente corrupta. Mas, de repente, veio a esculhambação, vieram os aproveitadores. Eles acabaram tirando aquela turma que foi exigir um Brasil melhor. Quando entraram os baderneiros, poxa, eu fiquei muito triste.

Você ficou satisfeito com o resultado das eleições do ano passado?
O Brasil precisa mudar, não só mudar os políticos, mas mudar o modo de fazer politica. Se é o PT que está aí, ele tem que mudar. Não é só fazer uma mudança de um partido para o outro, do PT para o PSDB. Tem que mudar o modo de gerenciar o país. Temos que ter reformas politicas, reformas econômicas, reformas de tudo. Estamos estagnados. O Brasil não vai crescer se continuar assim.

Um dos gritos dos protestos de julho foi: “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”. Isso o incomoda?
Mas o que a Globo tem a ver? O que a Globo fez de errado? Isso aí foram meia dúzia de baderneiros, meia dúzia de desocupados que não tinham mais o que fazer. Ninguém, nem a Globo, levou isso em consideração. Não é por aí. Tinham que fazer protestos contra a má gestão dos governantes e fizeram. Mas tudo deu errado porque entraram esses baderneiros, esses black blocs da vida.

Como era a sua relação com o Roberto Marinho? Vocês eram próximos?
Não. Eu me encontrei com ele poucas vezes. Uma vez num aniversário, logo que eu cheguei na Globo, e outra vez quando a Unicef me nomeou embaixador. Nós nos falamos umas duas ou três vezes.

E como foram esses encontros?
Eu fiquei nervoso, claro. {Risos}. Da primeira vez, eu estava chegando, fiquei nervoso para chegar e apertar a mão daquele cara. Ele é um símbolo. O doutor Roberto Marinho, para mim, é um símbolo. Um cara que começou a fazer televisão com 60 anos. Nenhum empresário teve esse talento e essa visão que ele tinha. As pessoas de 60 anos naquela época já estavam pensando em se acomodar, e ele, que já tinha tudo, chegou aos 60 anos e falou “vou fazer televisão”. E fez a maior televisão do Brasil.

Na entrevista de 1984, começava a ser criado o programa Criança Esperança, uma das marcas mais associadas à sua figura, e que também sofre críticas...
{Interrompe} Isso é inveja! Tudo que faz sucesso é perigoso, sucesso incomoda muito. E todo ano inventam coisas sobre mim e a Globo. Mas no que é que a gente ia se aproveitar? No que é que a Rede Globo, com a grandiosidade dela, ia se aproveitar? Correr o risco da lisura dela? Da minha também? Isso aí já está ficando ridículo. Isso é ridículo. Eu e a Globo encontramos todo ano isso, mas o povo já sabe que a doação vai direto para onde ele quer que vá.

Essas críticas ao Criança Esperança o incomodam muito?
Me incomoda tudo que é injusto contra quem quer que seja. A pessoa vai falar mal do Criança Esperança? Tudo que faz sucesso... É aquele negócio que eu já te falei. O programa explode e é: “Ah, por que a Globo, em vez de fazer aquele programa, não doa o dinheiro para o povo?”. É cruel isso. Me incomoda muito quando falam da Rede Globo. Eu não admito que falem mal da Globo.

Como todo casamento, o seu com a Globo já passou por crises. Você já se sentiu magoado?
De repente, tudo muda. Já fiquei seis anos sem fazer nada na Globo quando faleceram os dois companheiros, só fazendo um especial ou outro. Nem filme eu fazia. Fiquei muito triste.

Mas pensou em sair?
Não, eu nunca pensei em sair. A gente tem sempre que esperar o momento certo das coisas. De repente as coisas mudam, a gente vai se acomodando ali dentro, se acoplando. Antigamente faziam seriados e os programas era de uma hora. Depois passou a ser sitcom de meia hora, e a gente se adapta. Então eu não tenho mais intenção de sair da Globo. Não sei se isso é recíproco, mas por mim, não saio.

Tem vontade de voltar a fazer um programa semanal?
Tenho. Hoje a minha vontade é fazer seriados, porque fazer um programa semanal é muito desgastante. Fazer um seriado com 16 episódios. Tenho várias ideias, mas eu não posso falar para você, não vou entregar o ouro.

Como funciona o seu processo criativo?
Quando escrevo alguma coisa, sinto o que estou escrevendo. Eu sofro com meus personagens, rio com eles, me canso com eles. Às vezes estou escrevendo uma história, pego um personagem e penso: “Será que eu estou sendo muito perverso com ele? Não, esse vilão não merece ser  sacaneado, ou ser preso, ou ser morto”, que, aliás, é algo que nunca aconteceu nos meus filmes. Não. Eu vou dar um carinho nele, ele vai se recuperar. Eu faço sempre assim. E eu vivo o Didi. Quando eu estou lá escrevendo, sinto o Didi. Parece até que ele me leva no computador.

Foi você quem escreveu todos os roteiros desde o começo?
Dos filmes, quase todos. Desses 50, 40 e tantos {ao todo Renato Aragão fez 47 filmes} escrevi quase todos. Depois é que eu comecei a pegar autores, mas quando eu comecei na televisão eu que escrevia. Foi difícil, aliás. Comecei lendo todas aquelas comédias que tinha da SBAT, Sociedade Brasileira de Autores Teatrais.  Eram uns livrinhos assim, tipo literatura de cordel, com comedinhas, e eu lia aquilo dia e noite para saber como é que entrava e saia de um palco, como é que escrevia. Teve uma época em que eu escrevia uma comédia por semana. Eu tinha que escrever 25 páginas. Hoje eu faço um “sinopão” e digo: “Turma, é com vocês”. E aí meus autores colocam diálogo. Mas o começo, meio e fim são meus.

Você ainda assiste a muita televisão?
Só jornalismo e futebol. O futebol é a minha paixão. Eu joguei muito futebol quando era adolescente, quase fui profissional lá no Ceará por um clube que não existe mais, chamado Gentilândia. Jogava de center-half, que hoje seria um meio-campo, um volante.

E era bom?
Médio. Não decepcionava. Não era um craque, mas não decepcionada.

Dava para jogar no Vasco?
Rapaz! Eu sofro tanto com o Vasco. Ele está subindo agora para a primeira, subiu aos trancos e barrancos. Mas o Botafogo, vou te falar, dos clubes cariocas, é o que está na situação pior. Em proporções diferentes, claro, porque ele ainda estava na primeira. O Vasco, o Botafogo, o Flamengo... Esses times têm uma enorme. Não podem ir para a segunda divisão. É um grande problema a administração do futebol em todo país.

O que você acha de movimentos como o Bom Senso?
Para você ver, é uma manifestação! Nós temos que mudar o país, temos que mudar o futebol. Somos um país de tradição futebolística exemplar, várias vezes campeões do mundo, e não podemos passar por essa humilhação que a gente passou contra a Alemanha. Isso aí vai ficar como marco que não vai se apagar mais. Não vai apagar mais esse vexame que a seleção deu nessa Copa do Mundo. Eu quase desmaiei assistindo ao jogo. Eu ia tomar café, era um gol. Eu ia fazer xixi, era um gol. Olhava o comentário, era gol! Meu Deus, isso aí não é o Brasil. Terminou o jogo eu fiquei sentado sem acreditar no que via. Fiquei anestesiado.

Na entrevista de 1984, você falou sobre os problemas que sua filha Juliana Aragão passava pela ausência do pai. Você se arrepende de ter sido um pai distante?
Naquela época, o sucesso me empurrou, e eu não podia parar. Mas, claro, eu voltava para casa. Não era uma pessoa ausente. Eu voltava, conversava com eles. Mas não podia estar sexta, sábado e domingo, que eram os dias em que eles estavam de folga da escola, porque eu estava fazendo shows com Os Trapalhões. Mas te digo que, hoje em dia, ela me acha o pai ideal. Todos os meus filhos, na verdade. Eles nem se lembram daquele período. Hoje eles compreenderam aquela minha situação.

Essa experiência mudou a forma de você se relacionar com a Livian, sua filha mais nova?
Desde que eu me casei com a Lilian, a Livinha participou de tudo. A Juliana não, ele ficava em casa. Não só a Juliana, mas os outros filhos também. Eu passava dois dias em casa, o resto era ou gravando, ou filmando, ou fazendo show. Agora com a Liavian, onde eu ia fazer show, gravar, ela ia. A mãe dela ia grávida e tudo. A Livinha chegou a participar de um filme com 8 meses. {Os Trapalhões e a Luz Azul}. Quando eu fiz uma caminhada de 150 quilómetros para agradecer à Nossa Senhora Aparecida pelo Criança Esperança, elas foram comigo. A Livinha estava num trailer, claro, mas  mãe foi caminhando comigo. Até nisso eu levava junto.

Você é um pai ciumento?
Não fala isso! {Risos}. Eu sou ciumento assumido. Muito, muito ciumento. Esse moleque {o ator Nicolas Prattes, namorado de Livian}, para poder entrar em casa, levou muito tempo. Eu não admitia. Pô, eu sou ciumento mesmo, e daí? Tem gente que não é, mas eu sou. Mas o moleque ganhou o espaço dele. É um menino muito bom, tem bom caráter. Graças a Deus ela soube escolher. Aí eu joguei a toalha.

E com outras coisas, você é ciumento?
Sim, eu sou. Sou ciumento com tudo. Mas não sou possessivo.

Isso influenciou de alguma forma a separação de Os Trapalhões? O que aconteceu exatamente naquela época?
{Irritado} Eu não gosto mais de falar disso. Foi uma situação muito delicada para todas as partes, fui muito magoado pelas críticas que só vieram para o meu lado. Eu fiquei de vilão nessa história, e por isso eu não gosto de falar. Quem passou por aquele período que tome suas decisões e tire suas conclusões a meu respeito. Mas eu não gosto de falar nisso. Inclusive porque dois companheiros já se foram, e fica muito indelicado falar.

Foi por causa de grana?
Não foi nada disso! Cada um quis fazer o seu filme. Eu fiz o meu filme, e eles fizeram o deles. Foi só esse o motivo. Não foi outro.

Mas por que cada um quis fazer um filme?
Eu vou te responder sempre do mesmo jeito se você perguntar. Não tem outra resposta para te dar que não seja essa.

Você citou a morte do Zacarias e do Mussum. Sente muita falta deles?
Eu sinto muita falta deles. Não vejo os filmes, não assisto mais. Tenho muita saudade. Para mim é até difícil. Quando tocam nesse assunto, já me sensibilizo.

Depois de idas e vindas, você e o Dedé Santana voltaram a ter uma parceria sólida. Acha que o Zacarias e o Mussum, se estivessem vivos, estariam com vocês dois em Os Saltimbancos Trapalhões?
O quarteto estaria sempre junto. Se eles não fossem levados lá para cima, para outros planos, nós estaríamos fazendo o musical. E tinha ainda o Tião Macalé, esse também estaria aqui conosco com certeza. {Imita o bordão de Macalé} “Tchan!”.

E como é a sua relação com o Dedé hoje?
O Dedé mora em Santa Catarina, em Camboriú, mas ele vem sempre para cá, para o Rio de Janeiro. Ele está aqui agora muito por causa do teatro, e vem também quando é para fazer os meus telefilmes.  E quando o Dedé vem para cá a agente sempre se encontra, jantamos quando dá tempo de jantar, saímos quando dá tempo de sair. Aí a gente só fala besteira, só fica falando brincadeiras, eu, ele e o Sargento Pincel {personagem de Roberto Guilherme, eterno algoz da trupe em Os Trapalhões}.

Vocês ficaram distantes por muito tempo. Se sente bem com essa reaproximação?
Claro! Isso aí faz tanto tempo que ninguém lembra. Vou te dar um exemplo: eu brigo com a minha mulher às vezes por besteira. Era esse tipo de atrito que existia em Os Trapalhões. Mas as pessoas gostam de tocar nessa ferida que, para mim, já está cicatrizada.

Você chegou a provar a cerveja do Mussum, a Biritis?
Cheguei a ver, mas não provei. Um amigo meu me deu, eu guardei... Eu não bebo cerveja. Só bebo vinho. Gosto de beber uma taça de vinho quando saio com os amigos no fim de semana. E isso não me faz mal. Faz até bem. Mas outra bebida? Eu tenho em casa por educação, para servir às pessoas. Para receber as pessoas.

Nunca foi de beber?
Nunca bebi. Eu não bebia nada. Bebo às vezes numa convivência social, num jantar.

Tem alguma história de porre?
Não, não, não. {Risos} Eu até gostaria de ter tomado um porre, mas não tomei.

E fumar? Você fumava?
Eu já cheguei a fumar na época da moda. Não sei se você lembra que o Kojak {personagem vivido por Telly Savalas na série homônima dos anos 1970} fumava um cigarro comprido assim. Eu até cheguei a botar isso na boca para ver como era, mas nunca foi vício. E também nunca botei outro cigarro, a não ser esse da moda.

Mas não era raro ver personagens fumando em Os Trapalhões, principalmente nos filmes...
Você veja, o próprio Pica-Pau era um mau exemplo danado, um mau caráter! {Risos} Agora a nova versão mudou. Essas coisas mudam com a sociedade. Tomara que isso sempre aconteça. Tomara que a gente não seja um condutor do mau exemplo para as crianças. Fumar! Antigamente se fumava em cena. Não sei se nos meus programas, eu não me lembro, mas nos próprios filmes em preto e branco americanos o ator fumava. Era todo mundo fumando. Mas isso foi acabando.

Renato, para terminar, uma pergunta clássica de PLAYBOY que você não respondeu em 1984: como foi a sua primeira vez?
Olha, eu estou com 79 anos... Vou te falar que eu não me lembro. Não me lembro mesmo, com toda a sinceridade. Não sei que idade tinha, talvez uns 16 anos. Naquela época, era muito distante a primeira vez. Mas eu vou me lembrar para a próxima entrevista que eu der para PLAYBOY, daqui a 30 anos.


PLAYBOY – JANEIRO 2015