quarta-feira, 1 de dezembro de 2010
Conheça as várias faces de R.F. Lucchetti - parte 2
CONCEITOS
Lucchetti e a diferença entre terror e horror
Ivani Rosa
Muito já foi dito da diferença entre terror e horror, mas pode-se dizer de um modo mais simples, que o terror é o susto, o pavor, o medo causado por algo que se vê. O terror leva ao medo por aquilo que ele mostra, diretamente. O horror, por outro lado, choca e assusta indiretamente, mas de uma maneira muito mais profunda.
A maioria das histórias escritas por Rubens Francisco Lucchetti é de horror. Ele explica sua preferência por este gênero. “Eu gosto mais do horror, que é uma vertente mais poética, trabalha-se com o poder da sugestão e do mistério, enquanto no terror, as características são muito explicitas; é como uma realidade que não queremos enxergar. Prefiro o horror, mesmo porque minha criação literária sempre foi a do poder da sugestão”.
Na época em que Lucchetti escreveu histórias para a revista de José Mojica Marins, “Zé do Caixão”, elas traziam o terror do cotidiano, de conteúdo social. Mostravam problemas e verdades, que naquele período, possivelmente um dos mais repressivos já existentes no Brasil – não podiam ser expostos. Segundo, Lucchetti, o que ele fazia era apresentar o painel do dia-a-dia, nas histórias, como por exemplo, crianças morrendo de fome e sofrendo de enfermidades fáceis de serem curadas, enquanto corruptos e ladrões de cofres públicos tinham seus filhos estudando no exterior. As histórias apresentadas na revista revelavam o estranho mundo de Zé do Caixão no Brasil.
As primeiras leituras de Lucchetti foram histórias policiais. Mas quando leu “O coração revelador” e “O gato preto” de Edgar Allan Poe, ficou impressionado e não conseguia imaginar nenhuma história sem envolver, de alguma forma, o sobrenatural e o fantástico. E só se sentia bem quando estava escrevendo histórias nas quais explorava o folclore do terror.
Lucchetti já trabalhou com as duas vertentes, terror e horror. Mas tem preferência pelo horror. Ele incorpora ao pensamento do personagem para a história fluir. Por isso diz: “Quando escrevo, entro em outro mundo, acho o Zé do Caixão uma entidade e não um personagem criado por José Mojica Marins, consigo pensar como o Zé”.
Delírios do personagem mais marcante da nossa filmografia
O primeiro encontro de duas personalidade únicas do nosso cinema relembrado por Lucchetti
Valter Martins de Paula
Foi rápido como uma bala. Começou com a exibição de “À meia noite levarei a sua alma” em um cinema de Ribeirão Preto, onde Rubens lembra claramente que teve uma primeira impressão errada do produto. “Lembro que os jornais traziam estampado o cartaz com o nome do filme e um ‘Aguardem!’ no alto da página. Isso me intrigou”, diz.
”Lembro que, em 1964, nenhum cinema do interior era acostumado a exibir filmes de terror. Assisti ao ‘Meio noite’ em apenas uma sessão e não gostei do filme. Eu não conseguia achar sentido em nenhuma das imagens apresentadas, mas gostei do desafio. Aquele homem com capa e chapéu pretos (José Mojica Marins, o Zé do Caixão) era um visionário! Saí da sessão com a certeza de iria conhecê-lo um dia”.
Essa certeza ficou guardada por alguns anos. Rubens, nesta época, já trabalhava como escritor e tinha vários contatos em grandes metrópoles, como São Paulo. Um amigo seu, Sérgio Lima, por intermédio da esposa, enviou-lhe uma carta (na verdade, um convite formal) contando que um homem admirável, com idéias que se encaixariam com as do escritor, gostaria de conhecê-lo.
Este homem era José Mojica Marins, que já havia realizado dois filmes de relativo sucesso, visionários e por quê não, profundos: “Á meia noite levarei sua alma” (1964) e “Esta noite encarnarei no teu cadáver” (1967). A certeza de conhecer a figura enigmática do cinema escuro de anos atrás havia chegado. E Rubens tinha a certeza de que este seria um bom encontro.
Nesta época, Rubens já era acostumado com temas fantásticos e de horror; era colaborador de revistas estrangeiras de ficção cientifica e de cinema; trabalhava como jornalista e editor de em um veículo impresso de Ribeirão Preto e organizava festivais de cinema famosos, que ficavam mais de meses em cartaz. “Lembro do festival que dediquei a Charles Chaplin, por volta de 1962. Mandei uma carta a ele dizendo da homenagem e ele me respondeu agradecendo a ação”, recorda Rubens.
Lucchetti já havia morado em São Paulo, durante a maior parte de sua infância. Atualmente, diz não ser a mesma São Paulo, tão poluída visualmente. Ele recorda que antigamente a cidade respirava uma sensação noir, coberta de névoa e mistério.
“Fui a São Paulo encontrar o Sérgio Lima e paramos em um café no centro paulista para conversarmos. Lá estava José Mojica Marins, que me pareceu, à primeira vista, uma pessoa um pouco prepotente, com poucas palavras. Eu, sendo muito tímido também, mal abri minha boca. Foi um encontro formal e até incômodo. No fim, tive a impressão de que foi por educação que ele me convidou para ir ao seu estúdio (uma sinagoga!) no dia seguinte”, relembra Rubens.
E Rubens foi ao estúdio no dia seguinte, sem nenhuma pretensão em mente, esperou Mojica nas escadarias, e quando chegou, o convidou a entrar. Foi logo dizendo que precisava de uma história para preencher um filme que seria como três contos filmados. No dia seguinte, logo de manhã, Rubens entregou-lhe as três histórias: “O fabricante de bonecas”, “Tara” e “Ideologia”, que seriam a base de todo o filme “O estranho mundo de Zé do Caixão”. Mojica custou a acreditar: sentou-se em um sofá e devorou as três histórias, questionando como um homem tinha conseguido captar, como nenhum outro, sua essência. Mojica teve a certeza, naquele dia, de que aquela seria uma parceria rica em tramas, acima de tudo, a partir daquele momento, seria construída uma amizade duradoura, que, sim, tece seus altos e baixos, mas que continua viva na mente dos dois.
Parceiro na vida e na arte, Mojica já provou sua admiração pelo amigo em um artigo emocionante no livro “O cinema de Rubens Francisco Lucchetti”, ainda inédito.
Segundo suas palavras: “Eu o considero o gênio dos gênios. (...) É, enfim, um ser humano iluminado pelo Criador”.
ENTREVISTA
Mojica. Ou será Zé do Caixão?
Amanda Ferreira
Enviada especial a São Paulo
Foi no mínimo, estranho. De repente eu ali no centro de São Paulo procurando o nome de uma rua que ninguém conhecia. Faltando dois minutos para o horário marcado, achei o tal endereço da agência de modelos. Mas, espera aí, eu iria entrevistas o Mojica – Zé do Caixão, como assim, agência de modelos?
Se alguém se assustou e acha que tem alguma coisa errada, não tem não, é isso mesmo. O mestre do terror brasileiro tem agora uma agência de modelos cuja chamada é mais ou menos assim. “Se você não foi aceito na Elite, na Ford ou na Mega, venha fazer parte da nossa agência, pois aqui, você será aceito”.
Cheguei ao prédio velho do bairro de Santa Cecília. Entrei e fiquei à espera, pois Mojica não havia chegado ainda. A equipe de filmagem já estava lá. Até então, eu não estava nervosa, talvez um pouco ansiosa, afinal de contas, eu ia entrevistar o Zé do Caixão, e ainda estava no meio do processo de separar o criador da criatura.
Logo ele chegou e passou por mim sem ao menos olhar. Sua secretária disse: “Ele não deve ter te visto”. Afinal havia outras pessoas por lá e ele nem me conhecia.
Alguém disse alguma coisa e ele virou-se para mim. Levantei-me e fui cumprimentá-lo. Estiquei a mão, ele me puxou e me deu um abraço. Então, olhei e vi aquelas unhas tanto me aterrorizavam na infância. Elas ainda estavam ali (claro que não as mesmas) bem grandes e pude vê-las bem de perto.
Todos se arrumaram dentro da sala onde aconteceria a entrevista. Ele quis ver o roteiro de perguntas e também pediu para eu ficar atenta às respostas, pois em uma única resposta ele poderia responder todas as minhas perguntas. Nesse momento comecei a ficar um pouco nervosa. Nesse meio tempo ele já havia fumado uns quatro cigarros.
Fiquei bem atenta para não perguntar algo que ele já havia respondido. Não pensem que foi uma tarefa fácil, pois a cada pergunta que fazia, ele respondia sobre várias coisas e muito pouco do que eu perguntava.
Quando as perguntas eram sobre o Lucchetti, ele responde de uma maneira um tanto quando confusa e pouco esclarecedora. Não que ele tenha falado mal do Lucchetti, pelo contrário, falou muito bem, porém pouco, mas sempre muito simpático.
A entrevista durou mais ou menos 50 minutos, quando disse que havia acabado todas as minhas perguntas ele perguntou se podia deixar uma mensagem e, é claro, eu disse que sim. Então ele pediu que fechassem a câmera nele e começou a dar o seu conselho “Você, você ou todos vocês. Muitas vezes você precisa de um conselho. Mas pense bem antes de ouvir este conselho. Não peça conselho para outro. Porque na maioria das vezes o outro quer ser você! Quando precisar de um conselho, peque um espelho e contemple sua imagem. Ninguém mais do que você gosta de você. Peça um conselho para a sua própria imagem. O seu subconsciente lhe dirá o caminho a seguir. Vá em frente, caia levante, porque cair faz parte. Vá em frente que você chega lá como eu cheguei.”
Mojica ou Zé do Caixão? Nessa altura, já estava mais confusa para separá-los, dirigiu toda a entrevista, posicionamento de câmera e tudo mais. Realmente ele é um diretor nato, todos com quem falamos durante as nossas pesquisas estavam certos, ele realmente é um gênio com uma câmera.
A entrevista acabou e o homem das unhas grandes me pediu para tirar algumas fotos de toda a equipe para que ele guardasse.
Também fez uma crítica à cidade de Ribeirão Preto. Ele disse que era a única cidade do mundo onde havia feito trabalhos e que ninguém mandava nada para ele depois. Aliás, essa também é uma crítica do próprio Lucchetti.
Quando eu estava saindo para ir embora, Mojica (ou será o Zé do Caixão) disse: “Agora, para pagar a entrevista, me pague uma menta no bar aqui ao lado”.
Claquete: Como o senhor conheceu o Lucchetti?
Jose Mojica Marins: Por volta do ano de 1965. Não me lembro o nome. Acho que era Sérgio, um fã meu que me falou dele. Disse que tinha uma pessoa muito legal que ra de Ribeirão Preto e estava mudando para São Paulo, que viu meu trabalho e queria ter um papo comigo. Marcamos em uma casa de chá na avenida São João. Começamos a conversar e ele me disse que foi assistir ao filme “À meia-noite levarei sua alma” como uma gozação, não acreditava que alguém no Brasil poderia partir para um gênero místico de terror. Contou que ao assistir ao filme, ele ficou meio intrigado, mas que, ao dormir, o filme começou a pegar força. Ele me falou algumas coisas que tinha feito. Mexeu com aquilo que eu mais gostava, HQs. Eu era colecionador de HQs, porém, tive que vender para acabar de fazer cinema. Ele, até hoje, tem uma coleção fantástica. Eu estou tentando me recuperar.
Claquete: Como e qual foi a primeira parceria com Lucchetti?
José Mojica Marins: Era uma época que se começava a fazer a fazer muito cinema em três histórias. Eu resolvi fazer “O estranho mundo de Zé do Caixão” em três histórias, e pedi para ele escrever, um dia para cada história”. E não deu outra, o Lucchetti trouxe tudo pronto em dois dias. Então eu vi que ele realmente captava as minhas idéias.
Claquete: Qual foi a influência do Lucchetti na sua vida?
José Mojica Marins: Eu não diria que o Lucchetti mudou nada na minha maneira de ser. Não houve uma grande mudança. Diria que ele me trouxe muito animo, porque ele realmente acreditava no meu trabalho.
Claquete: Quantos trabalhos vocês fizeram juntos?
José Mojica Marins: Eu não queria outro além do Lucchetti. Acho que chegamos a fazer umas treze fitas. Depois, entramos em histórias de fotonovela, HQ, televisão. Acho que o Lucchetti fez uns 150 roteiros ou mais para a televisão, porém nem todos foram aproveitados. Ele foi o homem que mais trabalhou comigo, ficou vários anos como se fosse funcionário. Mas eu não o tinha como funcionário, eu o tinha como amigo. Chegou uma época que a perseguição foi demais, fizemos ainda “Ritual dos Sádicos”, que ficou presa. Se na época essa fita saísse, eu me tornaria o Silvio Santos do cinema nacional. Depois disso, só deu para ele fazer mais um roteiro para mim que foi “Finnis Homminis”, que não tinha nada com o terror.
Claquete: Como o senhor define o Lucchetti?
José Mojica Marins: O Lucchetti não fuma, não bebe, não tem vícios. É muito legal nessas coisas. Só tem o vício de escrever. Escreve, escreve, escreve... Ele é um homem versátil para escrever. Não é um homem de briga. Lucchetti é um homem tímido, aliás tímido demais.