quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Neide Jallageas

Neide Jallageas é pesquisadora e artista visual brasileira. Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2007) com tese sobre o cinema de Andriêi Tarkóvski, relacionado com as pesquisas sobre o tempo e a espacialidade no campo das artes, a partir dos estudos dos filósofos russos Pável Floriênski e Mikhail Bakhtin.

Você realizou trabalhos experimentais na área de vídeo com obras em acervos dos principais museus brasileiros (Mam e Masp, dentre outros). Como foi trabalhar com a imagem em movimento? Esses vídeos podem ser considerados curtas?
Pois é, como você mesmo disse, são “trabalhos experimentais na área do vídeo”. A maior parte de suas apresentações se dá em formato instalacional, em museus e galerias. O tempo que se inscreve neles é bastante largo e as imagens são propositalmente de baixa definição. Nestes vídeos trabalho com a precariedade, tanto humana quanto tecnológica. E são trabalhos realizados para ficarem disponíveis ao espectador em algum local tranqüilo, rodando em loopping. Exigem outro tempo do público e por isso, ainda, a especifidade na forma de apresentá-los. A questão do tempo e do descentramento de pontos de vista é também característica dos meus trabalhos com câmeras pin-hole, fotográficas, ou seja, sempre necessitei de longo tempo de exposição na fotografia para alcançar as imagens planejo. Essa experimentação teve início há dez anos e já começou como uma ação conjunta entre câmeras fotográficas de orifício (pin-holes) e uma câmera de vídeo. Também fiz experimentações com câmeras de vídeo onde interferi na captura, transformando a câmera de vídeo em uma pin-hole de vídeo, que resultou em Lagoadentro, uma instalação mostrada em 2006 no Centro Cultural São Paulo, à convite do Projeto Linha Imaginária. Neste sentido, os trabalhos aos quais você se refere são curtos, mas não curtas.

Você realizou pesquisas sobre dois importantes cineastas russos (Tarkovsky e Sokurov), a que deu essa escolha?
São planetas com órbitas próprias e exercem em mim um fascínio muito grande. Não são importantes apenas para a Rússia, mas para o mundo. Minha pesquisa sobre o cinema de Andriêi Tarkóvski não se restringe aos estudos de doutorado, ela continua e penso que continuará vida afora. E meus estudos sobre o cinema de Sokúrov também não se limitam apenas ao pós-doc. São cineastas densos, sofisticados, complexos, que oferecem um campo de investigação que se desdobra ao infinito. Trabalhar com eles requer não apenas compreender sua conexão imediata e profunda com a arte e a cinematografia russa e oriental em seu todo, mas também com a cultura planetária, a arte, a história, onde ambos vão beber. Em um sentido mais estrito, interessa-me a maneira pela qual lidam com o tempo e o espaço enquanto estratégias de construção de suas obras. Quando digo tempo penso em uma constelação onde brilham a duração, a memória, a história, principalmente. E espaço no que diz respeito ao deslocamento de pontos de vista, à fragmentação, ao policentrismo, à multiplicidade de percepções no jogo entre imagem e som. Venho pesquisando essas questões há anos e, naturalmente, meus trabalhos autorais também fazem parte dessa investigação. Da mesma forma estudo linguagens que se explicitam na flexão desses dois eixos, espaço e tempo, como as fotocolagens das vanguardas russas e alemãs, os ícones medievais, os trabalhos de Bill Viola e ainda as Cosmococas de Hélio Oiticica e Neville D´Almeida. Nesses trabalhos podemos perceber, enquanto espectadores, tanto a ação do tempo em deslocamento quanto a multiplicação de pontos de vista. Mas minha ancoragem é mesmo no audiovisual, pela sua extrema sensorialidade. E, dentre os mestres que trabalham com essas questões, privilegio os do cinema russo onde as produções de Tarkóvski e Sokúrov surgem como grandes paradoxos na contemporaneidade, pois ao mesmo tempo que são realizadas entre o século XX e XXI, tensionam esse período, por vezes desviam-se dele, não enquanto mero conteúdo, mas enquanto linguagem, construção de obra e, neste sentido, nos remetem a um outro tempo e espaço no qual sabemos não ter vivido, mas que nos soa extremamente familiar. Exemplos pungentes são Stalker e Soliaris de Tarkóvski e Elegia Oriental e Mãe e Filho de Sokúrov.

Andrei Tarkovsky foi um dos mais criativos, inovadores e importantes cineastas advindos do cinema soviético, mas na sua filmografia não consta curtas. Há uma razão?
Ser diretor na URSS nesse período trazia algumas peculiaridades como só ter direito a exercer a profissão quem fosse formado para tal e tivesse a licença do Partido para tanto; ganhava-se por metragem de filme realizado e ainda ficava à mercê da censura que, quando aprovava, já determinava o número de cópias e a qualidade das salas de exibição, pois havia uma hierarquia (Tarkóvski normalmente era exibido nas salas menos privilegiadas e tinha poucas cópias de seus filmes) e muitos outros requisitos, o que torna os parâmetros para produção e exibição de curta e de longa, distintos das nossas referências atuais! A rigor, Tarkóvski dirigiu três filmes de menor duração antes do seu primeiro longa. Se pensarmos pelos padrões brasileiros determinados pela Ancine, na Instrução normativa nº 22, no Anexo I, apenas o primeiro desses filmes seria considerado um curta. Trata-se de Os assassinos (1958), de 19 minutos. Os outros dois, Hoje não haverá dispensa (1959) e O violinista e o rolo compressor (1961) seriam considerados média-metragens, pois possuem cerca de 45 minutos. O de 1961 é o filme de sua formatura na escola de cinema VGIK, em Moscou. Os outros dois foram realizados enquanto exercícios de aula. E há ainda um filme que é pouco visto e comentado que é um documentário rodado na Itália, chamado Tempo de Viagem, de 1983, de 63 minutos, rodado em 16 mm e que teve a parceria na direção e no roteiro de Tonino Guerra. Quando exilado da URSS, nas últimas páginas de seu diário, poucos dias antes de sua morte, Tarkóvski planejava experimentar outros formatos. Era um criador voltado a outros campos da arte que não apenas o cinema. Por exemplo: ainda na Rússia dirigiu Hamlet, no teatro e, em 1983 fez a direção artística da ópera russa Boris Godunóv, de Modest Mussórgski, a convite de Claudio Abbado, em Londres, no Covent Garden.

Aleksandr Sokurov tem uma extensa filmografia. Qual é a importância dos curtas nesta filmografia?
Falar de formato, suporte, duração em Sokúrov é uma das coisas mais complicadas porque ele arrisca sempre, porque ele está sempre na fronteira, no limite. Da mesma forma é problemática a categorização documentário e ficção em seus trabalhos. E ele não começou fazendo curta para depois fazer um longa. O seu primeiro trabalho foi o longa A voz solitária do homem, de 1978. E da sua quase meia centena de filmes, há uma variação de duração que varia de 10 minutos a 13 horas! Penso que esta variação é que é importante, pois fundamentais são os caminhos que Sokúrov vai abrindo à nossa percepção com essas variações, e não uma hierarquização das variações, pois todas elas constroem um cinema único, inigualável.

Sokúrov dirigiu um curta ‘Sonata para Hitler’ que foi realizado em 1979, mas permaneceu banido por dez anos. Quais foram os motivos?
Posso arriscar algumas hipóteses. Vejamos: Sokúrov viveu sob cerrada censura no período da União Soviética. Sonata para Hitler, a exemplo dos filmes que faria sobre os grandes ditadores, mostra passagens de insegurança e fragilidade de Adolph Hitler, tanto pela maneira como o cineasta montou os fragmentos de arquivos (de documentários russos e alemães), quanto pela colagem de fragmentos sonoros. Certamente fazer um filme sobre Hitler, tentando mostrar também nele a face humana, não haveria de agradar aos dirigentes do Partido Comunista, em um país onde ainda imperava a ditadura do realismo socialista e cujo território fora invadido pelas forças nazistas no período da Segunda Guerra. Por outro lado, pensemos que é bem recente o lançamento (internacional) de uma pequena parte dos filmes de Sokúrov em DVDs, o que recoloca a questão que você formulou: por que grande parte de um dos maiores e melhores cinemas não vêm sendo comercializada em mídias digitais, ainda que não exista mais a censura soviética e ainda que boa parte de seus filmes hoje, sejam produzidos em parceria com outros países? O mesmo pode-se dizer de outro grande cineasta do período soviético, Sierguêi Paradjanov. No Brasil, o que temos em DVD de Paradjanov, de Grígori Kozintsev, Otar Iosseliani, Kira Murátova, etc, etc, etc?

Acha que falta pesquisa sobre o cinema brasileiro?
Há pesquisas e pesquisadores muito competentes no Brasil e esforços sérios para trazer à luz o cinema brasileiro, também tenho visto bons lançamentos por parte de editoras pequenas, médias e grandes. Uma iniciativa que penso ser exemplar é a do Arquivo Mário Peixoto no Rio de Janeiro e as pesquisas e publicações que vêm sendo feitas sobre a obra de Mário Peixoto e sobre Limite, produção única, brasileira, de 1931. Iniciativa privada, de poucos, mas de fôlego, abrindo caminho a outras. Temos a Cinemateca Brasileira com um acervo rico, bem cuidado, organizado e disponível a estudantes e pesquisadores. Temos ainda a Associação Cultural Videobrasil, que trabalha na fronteira do cinema, cujo histórico de 17 anos demonstra a seriedade da pesquisa e a qualidade das publicações, também aberta ao público, aos estudantes e pesquisadores com acervo multimídia amplo e organizado. Todos os três citados são centros de referência nacional e internacional, bem como outros que não elenco aqui por falta de espaço. E se você consultar os bancos de teses, dissertações e pesquisas das universidades públicas, principalmente, verá que há preciosidades que estão lá, à espera de serem publicadas. A pesquisa é movida pela curiosidade, pelo comichão de se saber mais e mais sobre determinado assunto, pessoa, fenômeno, etc. de aprofundar e gerar conhecimento. Enquanto houver esse comichão, haverá pesquisa, mas é necessário investir mais em recursos que possibilitem manter alta a qualidade da pesquisa e viabilizar a sua publicação para que ela possa ser lida, discutida e estudada nas escolas e universidades.

Qual é o seu próximo projeto?
Trabalho sempre no presente do futuro. No momento intensifico minhas pesquisas sobre o cinema contemporâneo russo, bem como as artes visuais contemporâneas russas, com ênfase no audiovisual, ou seja, artes na fronteira do cinema. E, enquanto experimentação autoral, estou trabalhando na realização de uma instalação audiovisual relacionada à paisagem, ou melhor, à contra-paisagem das grandes metrópoles (seguindo a série Traensfluxos, que iniciei em 2004 e que já trazia essa proposta). Mas isso é apenas uma das facetas do presente à espera de um futuro.