quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Os Trapalhões: Alípio Rangel


ALÍPIO RANGEL
Produtor

Nos filmes dos Trapalhões você integrou a equipe de produção em diversos longas-metragens. Como surgiu a oportunidade de trabalhar com eles?
Minha primeira chance no cinema foi dada pelo Renato Aragão, quando ele foi produzir o filme O Trapalhão na Arca de Nóe. Eu tinha vindo ao Rio para passar um fim de semana e depois ir a Campinas fazer pós-graduação. Tudo deu errado; e, ele vendo minha decepção, perguntou se eu queria fazer produção de cinema. Na época, meu irmão Del Rangel foi o diretor do filme e também me bancou. Comecei minha vida cinematográfica no único filme que não teve a participação do quarteto.

Realmente você chega no momento mais conturbado da história dos Trapalhões. Causou-lhe estranhamento trabalhar numa produção sem os outros três icônicos Trapalhões?
Sim, foi complicado fazer o filme sem eles. Até o próprio Aragão sentiu-se órfão, pois foram anos e anos trabalhando juntos. Eles todos sentiram isso, tanto é que só chegaram a fazer um filme. Não havia como ficarem separados.

Dedé Santana, Mussum e Zacarias fizeram, concomitantemente a O Trapalhão na Arca de Noé, o filme Atrapalhando a Suate. Além da competição nas salas de cinema, houve também nos bastidores?
Sinceramente, não sei quanto aos quatro; mas havia entre as equipes uma disputa para ver quem produzia o melhor filme. Ficávamos um acompanhado as filmagens do outro, uma curiosidade normal, absolutamente normal. Mas nos falávamos sempre, e teve até momentos em que uma equipe ajudou a outra. No decorrer das filmagens, emprestamos negativos para eles, já que a encomenda da DeMuZa ainda não havia chegado e não podiam parar as filmagens.

É verídica a história de que Renato Aragão queria fazer de O Trapalhão na Arca de Noé o grande filme da sua carreira para provar aos três integrantes recém-separados que ele teria condições de seguir sem eles?
Desconheço esse assunto. Os quatro não estavam felizes, e não havia como fazer um grande filme sem todos juntos. A separação deles foi apenas no cinema, eles continuavam a ser Os Trapalhões na TV Globo. Não houve problemas na amizade deles. Apenas não filmaram juntos uma única vez.

Você é sobrinho do Renato Aragão. Isso, de certa forma, facilitou seu ingresso no mercado cinematográfico?
Na verdade, na época o mercado de cinema era muito pequeno; e eu passei a fazer parte da equipe fixa da Renato Aragão Produções, que era a empresa que produzia os filmes dos Trapalhões. Depois que saí da Renato Aragão Produções, fiz mais uns quatro ou cinco filmes; e, então, segui minha carreira de administrador de empresas.

Além de você, outros integrantes da família do Renato Aragão chegaram a trabalhar com ele no cinema. Para citar alguns: Evelise Aragão, Caxa Aragão, Paulo Aragão, Del Rangel, entre outros. O fato de empregar muitos parentes não causava ciumeira no restante da equipe?
Não, isso nunca aconteceu. O cinema sempre foi uma “indústria familiar”, e o fato de ele ter pessoas da família nunca causou problemas para ninguém. O Renato Aragão sempre foi uma pessoa extremamente profissional, sempre deu chances a muitas pessoas, independente de ser do mesmo sangue ou não. A Renato Aragão Produções foi uma escola de cinema para muitos profissionais; e todos os que tiveram a sorte de trabalhar para Os Trapalhões, trazem, com certeza, dentro de si lembranças maravilhosas e orgulho de terem feito parte desse grupo inesquecível.

A R. A. Produções era uma produtora gigantesca, com estúdios e infraestrutura de primeiríssimo nível. Fale mais a respeito da R. A. Produções.
Sim, era uma grande produtora. Mas a verdade é que, já naquela época, a maior parte dos equipamentos eram terceirizados; e acho que ainda hoje é assim. Tínhamos câmeras, moviolas etc.; entretanto, a grande maioria dos equipamentos era alugado na época dos filmes.

O tratamento era igual? Tinha espaço para desconfiança?
Posso te afirmar que o fato de ser da família trazia exigências ainda maiores, só fazia o filme seguinte quem realmente demonstrasse um grande profissionalismo. O Renato Aragão dava a chance, e quem a tivesse que tratasse de trabalhar sério para seguir com o grupo. Eu sou prova disso. Ele me deu a chance; e, mesmo sendo da família e um cara com formação superior completa, tive que começar como estagiário do assistente de produção. Lembro que, dentre outras funções, servia cafezinho e refrigerante no set.

Interessante essa informação. Todos vocês começavam em cargos mais baixos e iam progredindo à medida que iam evoluindo no trabalho?
Isso aconteceu mais especificamente comigo, pois não tinha experiência nenhuma de cinema. As pessoas da família que trabalhavam nos filmes já eram profissionais da área.

Dedé Santana conseguiu emplacar o Dino Santana em algumas produções cinematográficas. Não me recordo se tinha mais algum familiar ligado ao trabalho dele em Os Trapalhões. Mussum e Zacarias tinham?
O Dino era outra pessoa bastante séria e profissional. Teve a chance dele, fez alguns filmes; mas, ao mesmo tempo, ele tinha outros trabalhos como ator e produtor. O Zacarias e o Mussum nunca indicaram nenhum familiar para trabalhar nos filmes.

Os Trapalhões no Rabo do Cometa, Os Trapalhões e o Mágico de Oróz e Os Três Mosquiteiros Trapalhões foram produções em que você trabalhou. Gostaria que falasse como era trabalhar na equipe de produção destes filmes.
Era um trabalho árduo. Tínhamos muitos contratos com empresas como Embrafilme, exibidores e distribuidores que estipulavam datas para que o filme estivesse pronto. Não havia chance para erros. Os filmes dos Trapalhões não podiam se dar ao luxo de ficar dois ou três meses para serem produzidos. Eram filmes produzidos em quatro semanas, não mais que isso. A palavra atraso não fazia parte do nosso vocabulário.

Conte mais a respeito do seu dia a dia na produção dos filmes. Que faz exatamente a equipe de produção de um filme?
Falando resumidamente, esse cara viabiliza a produção do filme num todo. Transforma em realidade o que o roteiro pede, é quem obtém os meios materiais necessários para a realização das filmagens. É o elo entre toda a equipe do filme.

Você disse que os filmes eram rodados, normalmente, em quatro semanas. Em que meses do ano eram filmados?
Geralmente, as pré-produções começavam em março ou abril; e o filme se estendia até no máximo o início de junho para então estrear nas férias do meio de ano. O segundo filme do ano começava em agosto ou setembro para ficar pronto em dezembro e ser exibido já no início das férias de fim de ano. Eram dois filmes por ano.

Como era o ambiente de filmagem?
Melhor impossível. Conheço Os Trapalhões há pelo menos quarenta e cinco anos e nunca vi nenhum deles alterar o tom de voz. Nunca ouve qualquer estresse em função de qualquer um dos quatro. Eu costumo dizer que o set de filmagem era mais engraçado e prazeroso do que os próprios filmes. Você está me fazendo ficar emocionado e saudoso. Esses quatro caras deviam ser proibidos de morrer. Não existe hoje ninguém como o Didi, Dedé, Mussum e Zacarias.

Pena não haver making of dos filmes. Esse material de bastidores poderia nos revelar muito mais dos Trapalhões, não é?
Alguma coisa existe, sim. Principalmente dos filmes mais recentes. Antes não existia muito essa mentalidade de se produzir essa peça; mas, com certeza, é uma mídia fantástica e os bastidores dos filmes dos Trapalhões daria um outro filme. Era pura alegria.

Quais as maiores dificuldades em produzir um filme dos Trapalhões?
Não concordo quando você usa a palavra “dificuldades”, prefiro usar “desafios” porque, sinceramente, não havia dificuldades. Os desafios eram muitos; pois, como coloquei na resposta anterior, não havia chance de errarmos, já que era sempre esperado em todo o Brasil que nas férias de junho e de fim de ano tivesse um novo filme dos Trapalhões. Veja só que belo desafio. As pessoas esperavam ansiosas por essas datas e sempre com a expectativa de ser um filme melhor que o anterior. Era muito bom fazer parte desse ambiente.

Você trabalhou em outras produções cinematográficas sem os Trapalhões. Que tinha de diferente? Que tornava uma produção fílmica dos Trapalhões diferente das demais?
Não podemos ser hipócritas, e é certo que os filmes dos Trapalhões tinham sempre dinheiro. Não havia a incerteza se ficaria pronto ou não. Sabíamos que semanalmente seu cachê estaria depositado na sua conta bancária. Não quero dizer com isso que se esbanjava dinheiro. Não faltava, mas não havia espaço para gastos excessivos. O orçamento tinha que ser honrado fielmente. A maior diferença que senti quando trabalhei em outros filmes foi, sem sombra de dúvidas, o ambiente. Com Os Trapalhões era puro prazer.

Mas eles pagam melhor ou era tudo tabelado?
Existe uma tabela salarial mínima exigida pelo sindicato, e a Renato Aragão Produções pagava sempre acima desses valores. Era uma produtora reconhecida no mercado como a que melhor pagava.

Você é um dos profissionais que mais tempo trabalhou com Os Trapalhões. Como e por que conseguiu ficar tanto tempo com eles?
Sou administrador de empresas; e isso também foi um fator decisivo, pois passei também a trabalhar em outras áreas da Renato Aragão Produções. Com certeza, fui um dos que mais tempo trabalhou com eles.

Chegou a fazer trabalhos administrativos dentro da R. A. Produções? Se sim, qual?
Eu, como administrador de empresas, tive a chance de passar nas áreas administrativa, financeira e até na comercial. Foi uma experiência riquíssima.

Renato Aragão, além de artista, também gostava da burocracia da empresa?
O Renato Aragão não deixava de ir à produtora. Não sei como ele arranjava tempo para ainda dar expediente na empresa. Ele acompanhava tudo. Sabia também do que se passava com cada funcionário, que, aliás, eram pessoas que frequentavam inclusive a casa dele. Iam às festas, desde o jardineiro, faxineiro, a moça do cafezinho até os diretores. Nunca houve qualquer discriminação, os mais humildes também mantinham uma relação de amizade e tinham o mais absoluto acesso à ele.

Podemos considerar Renato Aragão um dos maiores e melhores produtores de cinema do país?
Posso te dizer que ele foi, sim; mas acho que uma das maiores contribuições do Renato Aragão para o cinema também foi o fato de ele ter formado muitos e muitos profissionais, ainda mais numa época em que não havia faculdades de Cinema ou de Audiovisual. A Renato Aragão Produções foi, sem sombra de dúvidas, uma grande escola de cinema.

Renato Aragão tem fama de ser perfeccionista. Isso procede? Ele acompanha tudo?
Sim, ele é um cara que gosta de qualidade. É exigente, mas extremamente cordato. É uma pessoa que sabe dividir, sabe ouvir, sabe voltar atrás. Mesmo sendo o dono da bola, sempre respeitou cada profissional que fazia parte de sua equipe, nunca impôs nada a ninguém.

Quem era o maior comediante do grupo?
Cada um tinha/tem seu estilo. O Mussum era fantástico, com sua simplicidade, seu humor fácil e gostoso. O Zacarias, com aquela ternura dele, fazia um humor jamais visto. O Dedé é o maior “escada” que conheço, não existe ninguém como ele. O Renato Aragão é um cara engraçado por natureza, ele nasceu para fazer rir.

Quem, na sua opinião, é o maior vilão de todos os tempos nos filmes dos Trapalhões: Eduardo Conde, Carlos Kurt ou Roberto Guilherme?
Que saudades dessas feras. Como já falei, você está me emocionando e fazendo-me ficar nostálgico. Tive pouquíssimo contato com o Eduardo Conde; o Guilherme para mim não era um vilão, e sim mais um Trapalhão. Para mim, o Carlos Kurt é insubstituível.

Como classifica o cinema feito pelos Trapalhões?
Filmes inocentes, sem a pretensão de serem acadêmicos. Filmes produzidos com amor. Filmes pensados para as crianças e adultos que trazem dentro de si a criança que já foram um dia. Os Trapalhões queriam fazer as pessoas felizes, isso é o que interessava para aquele quarteto fantástico. Eles conseguiram, com seus fimes, alegrar mais de cem milhões de pessoas numa época em que o Brasil estava chegando aos cem milhões de habitantes. Isso não existe no mundo.

Por que os críticos e a Academia rejeitam os filmes produzidos e estrelados pelos Trapalhões?
Sou um cara muito franco e direto... é melhor que eu me exima de dar essa resposta!

Você, além de ter trabalhado com os Trapalhões, conviveu com eles por mais de 45 anos. Fora do cinema e da televisão eles eram humildes? Como eram sem as máscaras”?
Eles eram Os Trapalhões, sempre alegres, bem-humorados, sacanas, piadistas. Ajudavam muito a quem precisava deles. Os Trapalhões que eu conheci e com quem convivi não tinham máscaras e eram humildes, sim. Fico muito chateado, na verdade puto mesmo, quando vejo algumas matérias na mídia ou em redes sociais falando mal deles ou do Renato Aragão, que sempre foi o mais visado por ser o líder, o pai dos Trapalhões. Esse Renato Aragão de que a imprensa fala ou falava é desconhecido para mim.

Gostaria que contasse alguma curiosidade ou fato desconhecido do público que tenha presenciado como testemunha ocular dessa sua convivência com eles.
É impossível falar de um fato ou curiosidade apenas. Uma coisa que as pessoas não sabem ou talvez não acreditem e que era algo que chamava a atenção de quem convivia com aqueles quatro Trapalhões é que eram muito amigos realmente. Posso te garantir que se amavam. Eram como irmãos que estavam sempre se sacaneando. Eram extremamente unidos. Um morava no coração do outro, um sabia identificar o olhar do outro. Eles se olhavam e já estavam se comunicando. Eram uma verdadeira família. Só quem conviveu intimamente com eles pode entender o que representavam um para o outro. Eu sou um cara extremamente feliz por ter tido a dádiva de viver na família Os Trapalhões. Aproveito para te agradecer por esses momentos. Como já disse mais de uma vez: fiquei profundamente emocionado, voltei num tempo de pura felicidade e alegria, tempo que infelizmente não volta mais. Se você me perguntasse: “Você faria tudo de novo?” Eu te diria que faria com ainda mais vontade, iria me entregar ainda mais, daria ainda mais o meu sangue, meu amor, minhas horas de vida profissional dedicando-me a eles. Viva os eternos Trapalhões!