BÁRBARA
MENDONÇA
Figurinista
Como
surgiu o convite para trabalhar com Os
Trapalhões?
Comecei
a trabalhar com figurino e direção de arte em 1982. Morava no Jardim Botânico;
e a produtora do Renato Aragão era próxima à minha casa, antes de ele ter seus
estúdios, a R. A. Produções, que anos depois seria construída na Barra. Na
época, a profissão de figurinista nem tinha tanto destaque, era o começo de uma
época de mais cuidado com a estética no filme brasileiro. Então, encontrei, na
esquina de casa, um amigo, técnico de som, que estava saindo da produtora e
falou que havia me indicado ao Del Rangel, que era o diretor e sobrinho de
Renato. Fui chamada e entrevistada, juntamente com outros indicados, e fui
contratada. Era o filme O Trapalhão na Arca
de Noé.
Antes
de iniciar essa parceria profissional com eles, você já acompanhava os seus
filmes?
Olha,
eu sabia do “fenômeno”
de bilheteria que vinha acontecendo com os filmes dos Trapalhões, que eram
dois por ano, um para as férias de verão e outro para as férias de julho. Eram
filmes certos e cobiçados pelos profissionais freelances,
pois a produção dava boas condições de trabalho e era bem paga. Mas, talvez porque
meus filhos tinham menos de três anos, eu nunca tinha ido vê-los no cinema, ao
escolher um filme. Acompanhava de longe, as histórias, o programa de televisão
com os Quatro Trapas,
como eram carinhosamente chamados. Mas O
Trapalhão na Arca de Noé, segundo filme que assinei
como figurinista, foi o primeiro que fui ver na telona, na pré-estreia para
crianças, num domingo pela manhã no saudoso Cine Rian, na Avenida Atlântica,
levando meus filhos, assim como os outros membros da equipe fizeram. Foi uma
farra.
Quais
as suas principais recordações dos bastidores de filmagens com Os Trapalhões?
Era
literalmente muito divertido! As filmagens envolviam viagens. Eram produções com
ótima estrutura, excelentes técnicos e boa remuneração. Lembro que, nesse
primeiro filme que fiz, fomos para o pantanal mato-grossense e foi muito lindo
o processo nesse lugar ainda bem inóspito. Lembro-me do Renato muito bem-humorado
e ágil, subindo em árvores com uma facilidade que me espantou... Ele e os
outros três Trapalhões tinham
dublês; mas muitas vezes o Renato dispensava o dublê e tomava a frente da ação,
encarava às vezes um jacaré, uma briga, uma corrida. E depois, nesse mesmo
filme, que por sinal teve a primeira participação da Xuxa, seguimos para Pousada
do Rio Quente, em Goiás. Tinha sempre bastante merchandising envolvido;
e, nesse caso, ficamos muito bem instalados nessa espécie de resort no meio da floresta,
além das paisagens incríveis para as tomadas. Posso dizer que foi uma
experiência de trabalho que deixou saudades e ótimas lembranças. A equipe se
divertia muito nos bastidores. Os técnicos das diferentes áreas acabavam ficando
amigos, pois outros filmes aconteciam em seguida, muitas vezes repetindo
equipe.
Você
trabalhou como figurinista nos filmes dos Trapalhões. Como era o
seu processo de trabalho nesses filmes?
Com
esse primeiro filme que fiz aconteceu uma coisa bem atípica. Renato teve uma
dissidência artística e profissional com Dedé, Mussum e Zacarias no processo de
pré-produção. E essa crise gerou dois filmes: O
Trapalhão na Arca de Noé,
do Renato; e Atrapalhando a Suate,
se não me engano era esse o nome, dos outros três, que criaram uma produtora à
parte, a DeMuZa. Foi uma separação que não deu certo, rachou equipe, público,
não foi bom para ninguém. Tanto que eles se entenderam e voltaram a filmar
juntos. Comecei o processo de criação com um roteiro para uma história com os
quatro. As coisas não se definiam, não tínhamos acesso aos outros Trapalhões, só ao
Renato, que todos os dias estava na produtora. Eles finalmente abriram a
situação, e entrou o Sérgio Mallandro. O roteiro foi alterado, pelo próprio
Renato. Então, foi tudo bem corrido; mas o figurino teve todas as condições
para cumprir cronogramas. Refizemos o projeto do figurino com as mudanças para
posterior aprovação do Del Rangel e do Renato. O Renato se envolvia em todos os
departamentos, sabia bem o que funcionava com os filmes em truques, piadas, e
em relação às suas roupas e tipos também. Mas era uma interferência normal. O
método de trabalho, nesse e nos outros filmes, era bastante artesanal. Fazíamos
tingimento e envelhecimento das roupas no quintal das produtoras, que foram
várias, pois nem sempre o Renato assumia o total controle de sede de produção e
produção executiva. As roupas eram confeccionadas numa garagem, geralmente com
duas costureiras. Era muito agradável e criativo.
Você
também trabalhou como diretora de arte. Conte sobre o seu trabalho nessa área.
Trabalhei
na direção de arte em vários outros projetos, com Os Trapalhões. Eu adoro
esses dois departamentos num filme, que caminham juntos e se complementam. Mas
acabei preferindo o vestuário; e, desde 1990, só trabalho com figurino. Seria
minha segunda escolha. E aprendi muito, exercendo as duas funções ao mesmo
tempo, pois tive a visão da estética num trabalho em conjunto. Foi excelente
para a meu trabalho com o figurino, deu-me uma abrangência que me vale muito em
palestras e aulas que dou. Até porque é fundamental o entrosamento do figurino
com a direção de arte e fotografia na narrativa visual do projeto. Foi
fundamental para minha formação.
Renato
Aragão, Dedé, Mussum e Zacarias tinham como característica a irreverência. Até
nos bastidores das filmagens, eles brincavam muito. Isso procede? As filmagens
eram descontraídas?
É
fato! Eles eram totalmente gaiatos. Havia o pulso do diretor, claro, que
variava em cada filme e dava o tom. Mas eles eram bem divertidos e tranquilos
de trabalhar.
Como
era o seu contato com o quarteto (Didi, Dedé, Mussum e Zacarias)?
Renato
se envolvia do roteiro ao cenário e figurinos, passando pela trilha. E havia
sempre uma última palavra dele. Mas sempre foi legal, bastante tranquilo mesmo,
lidar com todos eles. E, embora se envolvessem menos nos processos de criação e
produção, especialmente Zacarias e Mussum, tenho ótimas lembranças. Era muito
lúdico o trabalho com eles. Envolvia figurinos não realistas e sempre variando
em relação ao tema do roteiro: circo, guardas florestais, cangaceiros, bandidos;
enfim, bem diversificado e criativo.
Que
representava, naquele período, trabalhar num filme dos Trapalhões, que eram
certeza de sucesso de bilheteria?
Nossa,
era a “menina dos olhos”
dos técnicos de todas as áreas. Como se sabia serem dois bons trabalhos a
acontecer com certeza, todo mundo queria entrar na produção. Era uma honra, uma
sorte, um trabalho com muito prazer. Era isso: um prazer remunerado que, além
do mais, dava visibilidade ao trabalho do profissional.
Quem
era o maior comediante do grupo?
Meu
predileto era o Mussum. Muito espirituoso, de uma forma nata. Mas o maior,
mesmo, com certeza, é o Renato Aragão. Acho que ele nasceu com um dom muito
dele e levou adiante até hoje.
Renato
Aragão tem fama de ser perfeccionista. Isso procede? Ele acompanha tudo?
Sim,
sim, acompanhava tudo! O figurino ele tinha bem esboçado na cabeça. Eu ouvia
muito ele, para entender o que ele queria; depois, sugeria detalhes que achava que
iam enriquecer o personagem. Ele aceitava, mas dificilmente abria mão da camisa
listrada e do sapato Kildare, que dava conforto e agilidade para ele.
Por
que, na sua visão, os críticos e a Academia rejeitam os filmes produzidos e estrelados
pelos Trapalhões?
Olha,
eu acho que, até um certo tempo, ele trazia coisas bem originais, com equipe de
qualidade artísticas. Havia essa preocupação. Era uma época bem diferente de
agora, sabe; e ele navegou num filão do apelo das crianças. Mas, para mim, o
que pegou foi roteiro, que eram medianos, apesar da intenção de entretenimento infantil
e para a família. E também repetitivos. Vamos combinar que é muito difícil
fazer dois longas de qualidade em um ano. Acho que o roteiro foi o grande
vilão.
Como
classifica o cinema feito pelos Trapalhões?
Acho
que era um cinema feito em equipe, claro; mas como uma família. Até porque tinha
muitas pessoas da família do Renato Aragão e de Marta, sua primeira esposa, que
vieram do Ceará e se aventuravam em departamentos variados, com os quais tinham
afinidade. Pode se falar num nepotismo temporal, pois muitos desses familiares
não duraram por vezes dois filmes, encontraram outros rumos mais acertados; e
nepotismo relativo, pois tinham sempre técnicos de excelência nos projetos. E,
por mais que ele, Renato, variasse sempre nas parcerias com produtor executivo
e diretor, nunca deixou de ser o mentor de tudo, com o riso e o entretenimento
para as crianças em primeiro lugar, com pureza sempre como objetivo final.
Então, vejo como um tipo de cinema que, apesar das variações dos colaboradores
da equipe, se sustentou muito bem na proposta por bastante tempo, haja vista o
sucesso de bilheteria. Só que esse tempo passou, os desenhos animados tomaram
muito vulto nesse segmento. As crianças são sempre as crianças, mas o foco dos
tempos atuais é outro. Por isso, não vejo mais espaço no mercado para o Renato
e no caso, Dedé, os Trapas que
ainda vivem. Ficou uma relação defasada; mas de carinho, com esse público. Foi
bom, mas passou.
Os Trapalhões sempre
“brincaram”
em parodiar filmes e clássicos estrangeiros de sucesso para o cinema. Que pensa
a respeito dessa linha que eles seguiram?
Essa
foi a grande sacada do Renato, de trabalhar com os arquétipos e brincar com eles.
Esse é o segredo do sucesso dos seus filmes. Considero um gancho bem popular.
Gostaria
que contasse alguma curiosidade ou fato desconhecido do público que tenha
presenciado como testemunha ocular.
Várias
coisas me chamaram a atenção. Mas acho que, de tudo o que presenciei, destaco a
fidelidade do Renato aos atores que ele trazia para os filmes e manteve enquanto
duraram seu programa. Os dublês, inclusive, pessoas de circo que tinham seu
biotipo e dos outros Trapas,
e os acompanharam por décadas nas sequências de acrobacia, cenas de perseguição
etc; cenas que havia muito nos filmes. E também, especialmente num filme que
fiz em 1991, com somente ele, Mussum e Dedé, houve um fato que me chamou demais
a atenção. O simbolismo da coisa. Renato havia se separado da primeira esposa,
e estávamos filmando em Manaus. Então, chegou a jovem, hoje esposa dele, que me
contou na lancha camarim de Renato, enquanto eu preparava as coisas para uma
próxima cena, que ele era o ídolo da infância dela. Quando adulta (coisa de
quarenta mais jovem do que ele), encontraram-se profissionalmente num evento
que ela produzia. Ela se apaixou por ele; e ele, por ela. E vivem felizes para
sempre. Conto isso como exemplo dos Trapalhões,
mitos de toda uma geração, que assistia a seus programas e, posteriormente, os
filmes. E a penetração deles foi tão forte que se perpetuou, digamos assim,
através da filha de Renato Aragão, hoje atriz também. Conto esse fato porque
acho forte essa “mão do destino”
ou o que quer que seja que determinou isso.