sábado, 4 de novembro de 2017

Os Trapalhões: Hercília Cardillo


Hercília Cardillo
Edição de som


Como surgiu o primeiro convite para trabalhar com Os Trapalhões?
Uma minha amiga e também profissional de cinema, Denise Kaner (ex-Fontoura), montadora de Atrapalhando a Suate, chamou-me para editar o som. Logo depois, Hélio Lemos estava editando o som de O Trapalhão na Arca de Noé e precisou de edição de som adicional e indicou-me para o trabalho, que fiz simultaneamente.

Antes de iniciar essa parceria profissional com eles, você já acompanhava os seus filmes?
Um pouco, já que tinha filhos pequenos que gostavam dos Trapalhões.

Em A Filha dos Trapalhões, você trabalhou na edição de som. Naquela fase do cinema nacional não tínhamos ainda a estrutura existente hoje. Como foi para você trabalhar naquelas condições, onde tinha bastante externa?
Na verdade, na condição de editora de som, ou usava o som direto ou dublava alguma fala gravada com fundo muito alto, devido ao trânsito e ruídos normais da cidade. Contávamos com o recém montado estúdio da Rob Filmes, no Leblon, do casal Roberto e Cláudia.

Quais as suas principais recordações dos bastidores desse filme?
Foi uma época bastante produtiva, cheia de expectativas; e o clima da moviola era muito animado e feliz. Como não participava das filmagens, minhas recordações se resumem ao trabalho em si, bastante intenso, pois sempre tínhamos prazos exíguos para cumprir, com os filmes sempre com data de estreia nacional definida.

O filme aborda o problema social dos compradores de bebês por quadrilhas especializadas. Vendem recém-nascidos para famílias ricas, principalmente as da Europa. Nesse filme dos Trapalhões, Júlia (Myriam Rios) vende sua filha para o bando interpretado pelos atores Jorge Cherques, Vera Gimenez, Dino Santana. Não era um tema muito árido para o público infantil?
A proposta cinematográfica do grupo sempre foi abordar temas atuais, polêmicos e que tocassem o público no afetivo, conscientizando através da diversão. Os filmes tinham como público-alvo não só as crianças, mas também seus pais, avós, irmãos mais velhos; e, talvez por isso, alcançavam o sucesso de bilheteria.

Os Trapalhões moram no meio de uma lagoa (Lagoa Rodrigo de Freitas), em uma moradia que lembra muito uma palafita. O número da casa é o 36 (apesar de não terem vizinhos), contendo ainda a frase “Venha morar como você gosta.” Apesar de produzirem filmes para o público infantil, havia sempre uma preocupação em passar uma mensagem ou uma crítica social?
Sim. Uma característica “chapliniana” do Renato, quase sempre um dos roteiristas dos filmes.

O filme tem direção de Dedé Santana e Vitor Lustosa. Como era a sintonia da dupla durante as filmagens?
A edição de som era um trabalho bem afastado das filmagens, mas na moviola não chegou nenhuma informação sobre crise no set. E também não sei como era a divisão de trabalho dos dois diretores.

Quais as suas principais recordações dos bastidores desse filme?
Meu contato com o grupo era pequeno, já que trabalhava em um local fechado, isolado e geralmente sozinha. As recordações se resumem ao trabalho em si, sem nenhum fato pitoresco a acrescentar. Além disso, tenho quatro filhos; na época, eram bem pequenos. E eu corria da moviola para casa, para a escola, para os médicos. Enfim, época bem atribulada!

A fase mais polêmica da trajetória dos Trapalhões foi quando eles se separaram. Nesse momento, você integra a equipe do filme Atrapalhando a Suate. Gostaria que falasse desse trabalho.
Trabalhar com os Trapas, os quatro ou os três, era sempre muito bom. Equipe boa, dinheiro justo e pago corretamente, condições de trabalho decentes e garantia de muita risada no trabalho. A gente não aguentava e ria o tempo todo das cenas, enquanto cuidávamos do ponto de corte, fusões etc. Na verdade, quando integrei a equipe, o grupo já estava separado e o filme totalmente filmado, faltando apenas montar e editar o som.

Havia uma disposição de Dedé, Mussum e Zacarias de mostrar ao Renato que eles também sabiam produzir um filme?
Não havia essa disposição expressa, mas certamente era essa a intenção. Aproveitar o filão de dois filmes infantis por ano, fenômeno também presente com os filmes da Xuxa.

Como surgiu o convite para trabalhar em Atrapalhando a Suate? Em algum momento, Renato Aragão tentou demovê-lo da ideia de ingressar nesse projeto?
Em momento algum, já que, como autônoma era contratada, por prazo determinado (geralmente, três meses), e não tinha contrato de exclusividade. A produção do Atrapalhando a Suate me chamou primeiro, por indicação da Denise; e, ainda durante a edição de som do filme da DeMuZa, o produtor de O Trapalhão na Arca de Noé, Caíque Ferreira, chamou-me para integrar a equipe de edição de som do Hélio Lemos. Isso foi em 1983.

A DeMuZa Produções foi criada com o intuito de apenas gerir os negócios dos três humoristas (Dedé, Zacarias e Mussum)?
Sim. Era essa a ideia. O problema é que a grande estrutura administrativa dos Trapas estava nas mãos do Renato Aragão e sua família.

Na sua análise, por que a separação durou apenas seis meses?
Fazer cinema no Brasil é empreendimento complexo e arriscado, cheio de política e economia. A R.A. Produções já contava com uma grande equipe de produção, com estúdio próprio e uma administração gerida com mãos de ferro pelo Paulo Aragão, irmão de Renato. Poucos produtores são tão corretos com os trabalhadores como o pessoal da R. A. A DeMuZa nasceu de uma crise de relacionamento e de poder e fadada ao fracasso.

Houve sequelas da separação? Teve receio de ser retaliada?
De modo algum. Mesmo porque eu trabalhava com as duas produtoras sem problema algum; e, em nenhum momento, pediram informações sobre o filme da outra produtora.

Tião Macalé é substimado?
Creio que não, mas não tenho dados para passar.

Os Trapalhões tinham também outra proposta: inserir diversas atrações midiáticas do momento, com a intenção de atrair para as salas de cinema o maior número possível de espectadores dos mais diferentes gostos e faixas etárias. Por esse motivo, tornou-se frequente a presença de personalidades da tevê, como, por exemplo, Angélica e Gugu Liberato. Isso era o melhor a fazer, pensando na visão de um exigente e diversificado público infantojuvenil?
O último filme que editei para eles foi Uma Escola Atrapalhada, com a Angélica, o Supla e o grupo Dominó. Com certeza, era uma estratégia de acompanhar o crescimento do seu público e ampliar a bilheteria.

Renato Aragão, Dedé, Mussum e Zacarias tinham como característica a irreverência. Até nos bastidores das filmagens, eles brincavam muito. Isso procede? As filmagens eram descontraídas?
Sobre a filmagem, nada posso acrescentar; mas quando nos encontrávamos nos corredores da R. A. Produções, na Barra da Tijuca (RJ), o contato era gentil, afetuoso e simpático. Mussum e Zacarias eram bem engraçados, sempre; mas Mussum era mais irreverente do que Zacarias, tímido e discreto no trato comum.

Como era o seu contato com o quarteto (Didi, Dedé, Mussum e Zacarias)?
Não era muito comum encontros na moviola, pelo menos em relação à edição de som. O relacionamento foi maior com Dedé, que dirigiu alguns dos filmes dos Trapalhões que editei. Fui, inclusive, montadora adicional do A Filha dos Trapalhões, auxiliando a Denise Kaner a cumprir o prazo e mixar a tempo de lançar nos cinemas na data agendada previamente.

Que representava, naquele período, trabalhar num filme dos Trapalhões, que eram certeza de sucesso de bilheteria?
O melhor de tudo era saber que eles filmavam duas vezes por ano, com filmes de férias de julho e dezembro. E isso era certeza de bons trabalhos, com estrutura e organização quase industrial, sem perder o charme de fazer cinema para o grande público.

Quem era o maior comediante do grupo?
Na minha opinião, o Mussum era o maior deles! Iluminava tudo por onde passava, com seu enorme sorriso e contagiante simpatia.

Por que, na sua visão, os críticos e a Academia rejeitam os filmes produzidos e estrelados pelos Trapalhões?
Realmente, não sei dizer. Os filmes têm roteiro, são tecnicamente honestos; e o grande público aplaude e dá risada. Para o cinema nacional, é uma pena ter acabado a fase de dois filmes por ano. Para as equipes, faz uma grande falta e dá saudade da época em que a Xuxa e Os Trapalhões filmavam sem parar.

Como classifica o cinema feito pelos Trapalhões?
Cinema industrial. A produtora do Renato, com seu estúdio alugado até para clipe de Mick Jagger, tinha porte quase hollywoodiano, se você me permite exagerar um pouco. Tudo funcionava direito, com organização, segurança e eficiência.

Gostaria que falasse o que representou para você trabalhar com Os Trapalhões.
Profissionalmente, foi a melhor época para mim. Era certeza de trabalho constante e bem remunerado.

Os Trapalhões sempre “brincaram” em parodiar filmes e clássicos estrangeiros de sucesso para o cinema. Que pensa a respeito dessa linha que eles seguiram?
Penso positivamente, pois seu público era enorme. E aproveitava-se a oportunidade para difundir cultura, em um país tão desprovido dessas boas intenções.

Gostaria que contasse alguma curiosidade ou fato desconhecido do público que tenha presenciado como testemunha ocular.
Na verdade, o que mais ficou gravado em mim foi a receptividade da família Aragão e o modo como tratam sua equipe. Em 1986, Renato abriu para nós a casa da Granja Comary e participou do jogo de futebol de salão. Meus filhos gêmeos, Yan e George Saldanha (eles são técnicos de som e possuem, junto com o pai, Jorge Saldanha, que também é técnico de som de cinema, a Casa de Som), então com dez anos de idade, e o priminho Pedro Saldanha (é filho de Luiz Carlos Saldanha, fotógrafo e montador cinematográfico, com quem aprendi muito do que sei da arte de montar), na época com onze anos, foram gandulas desse jogo. Isso tudo demonstra como o cinema brasileiro é baseado em “famílias”, mas isso não denigre nem um pouco o mérito do excelente trabalho executado. Ao contrário, valoriza a atividade como arte e como expressão verdadeira do inconsciente coletivo brasileiro.