Hercília
Cardillo
Edição de som
Como
surgiu o primeiro convite para trabalhar com Os Trapalhões?
Uma
minha amiga e também profissional de cinema, Denise Kaner (ex-Fontoura), montadora
de Atrapalhando a Suate,
chamou-me para editar o som. Logo depois, Hélio Lemos estava editando o som de O Trapalhão na Arca de Noé e
precisou de edição de som adicional e indicou-me para o trabalho, que fiz
simultaneamente.
Antes
de iniciar essa parceria profissional com eles, você já acompanhava os seus
filmes?
Um
pouco, já que tinha filhos pequenos que gostavam dos Trapalhões.
Em
A Filha dos Trapalhões,
você trabalhou na edição de som. Naquela fase do cinema nacional não tínhamos
ainda a estrutura existente hoje. Como foi para você trabalhar naquelas
condições, onde tinha bastante externa?
Na
verdade, na condição de editora de som, ou usava o som direto ou dublava alguma
fala gravada com fundo muito alto, devido ao trânsito e ruídos normais da
cidade. Contávamos com o recém montado estúdio da Rob Filmes, no Leblon, do
casal Roberto e Cláudia.
Quais
as suas principais recordações dos bastidores desse filme?
Foi
uma época bastante produtiva, cheia de expectativas; e o clima da moviola era
muito animado e feliz. Como não participava das filmagens, minhas recordações se
resumem ao trabalho em si, bastante intenso, pois sempre tínhamos prazos exíguos
para cumprir, com os filmes sempre com data de estreia nacional definida.
O
filme aborda o problema social dos compradores de bebês por quadrilhas
especializadas. Vendem recém-nascidos para famílias ricas, principalmente as da
Europa. Nesse filme dos Trapalhões,
Júlia (Myriam Rios) vende sua filha para o bando interpretado pelos atores
Jorge Cherques, Vera Gimenez, Dino Santana. Não era um tema muito árido para o
público infantil?
A
proposta cinematográfica do grupo sempre foi abordar temas atuais, polêmicos e
que tocassem o público no afetivo, conscientizando através da diversão. Os
filmes tinham como público-alvo não só as crianças, mas também seus pais, avós,
irmãos mais velhos; e, talvez por isso, alcançavam o sucesso de bilheteria.
Os Trapalhões moram
no meio de uma lagoa (Lagoa Rodrigo de Freitas), em uma moradia que lembra muito
uma palafita. O número da casa é o 36 (apesar de não terem vizinhos), contendo
ainda a frase “Venha morar como você gosta.”
Apesar de produzirem filmes para o público infantil, havia sempre uma
preocupação em passar uma mensagem ou uma crítica social?
Sim.
Uma característica “chapliniana”
do Renato, quase sempre um dos roteiristas dos filmes.
O
filme tem direção de Dedé Santana e Vitor Lustosa. Como era a sintonia da dupla
durante as filmagens?
A
edição de som era um trabalho bem afastado das filmagens, mas na moviola não
chegou nenhuma informação sobre crise no set.
E também não sei como era a divisão de trabalho dos dois diretores.
Quais
as suas principais recordações dos bastidores desse filme?
Meu
contato com o grupo era pequeno, já que trabalhava em um local fechado, isolado
e geralmente sozinha. As recordações se resumem ao trabalho em si, sem nenhum
fato pitoresco a acrescentar. Além disso, tenho quatro filhos; na época, eram
bem pequenos. E eu corria da moviola para casa, para a escola, para os médicos.
Enfim, época bem atribulada!
A
fase mais polêmica da trajetória dos Trapalhões
foi quando eles se separaram. Nesse
momento, você integra a equipe do filme Atrapalhando a Suate.
Gostaria que falasse desse trabalho.
Trabalhar
com os Trapas,
os quatro ou os três, era sempre muito bom. Equipe boa, dinheiro justo e pago
corretamente, condições de trabalho decentes e garantia de muita risada no
trabalho. A gente não aguentava e ria o tempo todo das cenas, enquanto cuidávamos
do ponto de corte, fusões etc. Na verdade, quando integrei a equipe, o grupo já
estava separado e o filme totalmente filmado, faltando apenas montar e editar o
som.
Havia
uma disposição de Dedé, Mussum e Zacarias de mostrar ao Renato que eles também
sabiam produzir um filme?
Não
havia essa disposição expressa, mas certamente era essa a intenção. Aproveitar o
filão de dois filmes infantis por ano, fenômeno também presente com os filmes
da Xuxa.
Como
surgiu o convite para trabalhar em Atrapalhando
a Suate? Em algum momento, Renato Aragão tentou
demovê-lo da ideia de ingressar nesse projeto?
Em
momento algum, já que, como autônoma era contratada, por prazo determinado (geralmente,
três meses), e não tinha contrato de exclusividade. A produção do Atrapalhando a Suate me chamou
primeiro, por indicação da Denise; e, ainda durante a edição de som do filme da
DeMuZa, o produtor de O Trapalhão na Arca de Noé, Caíque
Ferreira, chamou-me para integrar a equipe de edição de som do Hélio Lemos.
Isso foi em 1983.
A
DeMuZa Produções foi criada com o intuito de apenas gerir os negócios dos três
humoristas (Dedé, Zacarias e Mussum)?
Sim.
Era essa a ideia. O problema é que a grande estrutura administrativa dos Trapas estava nas mãos do
Renato Aragão e sua família.
Na
sua análise, por que a separação durou apenas seis meses?
Fazer
cinema no Brasil é empreendimento complexo e arriscado, cheio de política e
economia. A R.A. Produções já contava com uma grande equipe de produção, com
estúdio próprio e uma administração gerida com mãos de ferro pelo Paulo Aragão,
irmão de Renato. Poucos produtores são tão corretos com os trabalhadores como o
pessoal da R. A. A DeMuZa nasceu de uma crise de relacionamento e de poder e
fadada ao fracasso.
Houve
sequelas da separação? Teve receio de ser retaliada?
De
modo algum. Mesmo porque eu trabalhava com as duas produtoras sem problema algum;
e, em nenhum momento, pediram informações sobre o filme da outra produtora.
Tião
Macalé é substimado?
Creio
que não, mas não tenho dados para passar.
Os Trapalhões tinham
também outra proposta: inserir diversas atrações midiáticas do momento, com a
intenção de atrair para as salas de cinema o maior número possível de
espectadores dos mais diferentes gostos e faixas etárias. Por esse motivo,
tornou-se frequente a presença de personalidades da tevê, como, por exemplo,
Angélica e Gugu Liberato. Isso era o melhor a fazer, pensando na visão de um
exigente e diversificado público infantojuvenil?
O
último filme que editei para eles foi Uma
Escola Atrapalhada, com a Angélica, o Supla e o grupo
Dominó. Com certeza, era uma estratégia de acompanhar o crescimento do seu
público e ampliar a bilheteria.
Renato
Aragão, Dedé, Mussum e Zacarias tinham como característica a irreverência. Até
nos bastidores das filmagens, eles brincavam muito. Isso procede? As filmagens
eram descontraídas?
Sobre
a filmagem, nada posso acrescentar; mas quando nos encontrávamos nos corredores
da R. A. Produções, na Barra da Tijuca (RJ), o contato era gentil, afetuoso e
simpático. Mussum e Zacarias eram bem engraçados, sempre; mas Mussum era mais
irreverente do que Zacarias, tímido e discreto no trato comum.
Como
era o seu contato com o quarteto (Didi, Dedé, Mussum e Zacarias)?
Não
era muito comum encontros na moviola, pelo menos em relação à edição de som. O
relacionamento foi maior com Dedé, que dirigiu alguns dos filmes dos Trapalhões que editei.
Fui, inclusive, montadora adicional do A Filha
dos Trapalhões,
auxiliando a Denise Kaner a cumprir o prazo e mixar a tempo de lançar nos
cinemas na data agendada previamente.
Que
representava, naquele período, trabalhar num filme dos Trapalhões, que eram
certeza de sucesso de bilheteria?
O
melhor de tudo era saber que eles filmavam duas vezes por ano, com filmes de
férias de julho e dezembro. E isso era certeza de bons trabalhos, com estrutura
e organização quase industrial, sem perder o charme de fazer cinema para o grande
público.
Quem
era o maior comediante do grupo?
Na
minha opinião, o Mussum era o maior deles! Iluminava tudo por onde passava, com
seu enorme sorriso e contagiante simpatia.
Por
que, na sua visão, os críticos e a Academia rejeitam os filmes produzidos e estrelados
pelos Trapalhões?
Realmente,
não sei dizer. Os filmes têm roteiro, são tecnicamente honestos; e o grande
público aplaude e dá risada. Para o cinema nacional, é uma pena ter acabado a
fase de dois filmes por ano. Para as equipes, faz uma grande falta e dá saudade
da época em que a Xuxa e Os Trapalhões filmavam
sem parar.
Como
classifica o cinema feito pelos Trapalhões?
Cinema
industrial. A produtora do Renato, com seu estúdio alugado até para clipe de
Mick Jagger, tinha porte quase hollywoodiano, se você me permite exagerar um
pouco. Tudo funcionava direito, com organização, segurança e eficiência.
Gostaria
que falasse o que representou para você trabalhar com Os Trapalhões.
Profissionalmente,
foi a melhor época para mim. Era certeza de trabalho constante e bem
remunerado.
Os Trapalhões sempre
“brincaram”
em parodiar filmes e clássicos estrangeiros de sucesso para o cinema. Que pensa
a respeito dessa linha que eles seguiram?
Penso
positivamente, pois seu público era enorme. E aproveitava-se a oportunidade para
difundir cultura, em um país tão desprovido dessas boas intenções.
Gostaria
que contasse alguma curiosidade ou fato desconhecido do público que tenha
presenciado como testemunha ocular.
Na
verdade, o que mais ficou gravado em mim foi a receptividade da família Aragão
e o modo como tratam sua equipe. Em 1986, Renato abriu para nós a casa da
Granja Comary e participou do jogo de futebol de salão. Meus filhos gêmeos, Yan
e George Saldanha (eles são técnicos de som e possuem, junto com o pai, Jorge
Saldanha, que também é técnico de som de cinema, a Casa de Som), então com dez
anos de idade, e o priminho Pedro Saldanha (é filho de Luiz Carlos Saldanha,
fotógrafo e montador cinematográfico, com quem aprendi muito do que sei da arte
de montar), na época com onze anos, foram gandulas desse jogo. Isso tudo
demonstra como o cinema brasileiro é baseado em “famílias”, mas isso não denigre
nem um pouco o mérito do excelente trabalho executado. Ao contrário, valoriza a
atividade como arte e como expressão verdadeira do inconsciente coletivo
brasileiro.