sexta-feira, 5 de agosto de 2011

BISTURI - Rejane K. Arruda


Gena Rowlands em Uma Mulher sob Influência de John Cassavetes

Realizador independente, John Cassavetes ministrou aulas de interpretação e durante um seminário teve a idéia de dirigir um filme sobre improvisação.

O procedimento onde os atores se deixam levar por um fluxo de associações para descobrir, em cena, ações que ainda não estão roteirizadas, deu origem a “Sombras”, filme que angariou, de pronto, o Prêmio da Crítica do Festival de Veneza.

Seu segundo filme independente foi “Faces” (no intervalo dirigiu “A Canção da Esperança” e “Minha Esperança é Você”), adaptação de peça teatral de próprio punho que recebeu três indicações ao Oscar.

Em “Faces” vemos Gena Rowlands, esta que será a sua parceira em outros filmes, inclusive em “Uma Mulher sobre Influência”, considerado obra prima.

Nele Rowlands atua como Mabel: esposa, dona de casa, mãe de três filhos e... De pronto, o filme nos coloca a questão: “louca?” - nos mantendo suspensos na borda entre o “não” e o “sim”.

Cada um poderia responder de um jeito. Eu tenderia a responder da seguinte maneira: sendo o problema da personagem respondê-lo (Mabel chega a questionar um dos seus filhos com um “O que você vê quando me olha? Uma louca?”) e estando a dúvida situada no neurótico (ou seja, no dito “normal”), não se trata da estrutura perversa ou psicótica (no senso comum a “louca”), mas de uma “mulher em angústia”, uma mulher “às voltas com o seu sintoma”.

A questão lateja, sem que se possa desmembrá-la, pois me atendo ao campo desta coluna (o trabalho do ator) apresso-me a perguntar: o que posso apreender da performance de Rowlands? Além de ficar embasbacada! Me esforço para raciocinar. É preciso tecer articulações com uma estrutura para, da observação, extrair aprendizado.

No trabalho do ator um dos pontos de incidência é a construção de sentido. Incidência do Imaginário que varia de ator para ator e a forma de ver o mundo, “janela da fantasia”, desejo, significantes da demanda, “diz curso”, detalhes do verbo emprestando cacos à massa corporal.

Uma primeira reflexão: se pudesse comparar Mabel (personagem) com Rowlands (a atriz), diria que: este “diz (curso)” não passou pela primeira. Mabel dança, brinca, grita e briga (criança). Não passou pelos personagens - a família em volta da mesa dizendo “Não há palavras, não há sobre o que conversar” - como se sucumbissem ao afeto. Todos “surtam”. Coisa que o filme não recorta, mas apenas o sintoma “de Mabel” e, assim, constrói a questão da loucura feminina - das “Mabéis”.

Mas o “diz do curso” passou pela atriz. Se a função da palavra é mediação, talvez transforme a intensidade do afeto em sentido. O “curso do diz” passa pela atriz Gena Rowlands, que constrói Mabel; um trabalho de ouvires onde o caco do verbo faz corpo.

Quem primeiramente o sistematizou foi Stanislavski: com verbo-de-ação, monólogo-interior, situação-paralela – verbo não-dito, escondido (importante).

As palavras (os poetas estão aí) implicam gozo. A fala (a psicanálise está aí) implica desejo. Com a fala o ator injeta sobre a superfície e interior do corpo excitável. E já que esta (a palavra) traz a perspectiva do detalhamento, é um bom instrumento.

No entanto, sentido não é o único ponto de incisão. O trabalho suporta esta região “destampada” por onde a vida se intromete insuportável. O ponto onde incide a angústia. E a maestria de Rowlands está no escriturar despudorado deste afeto no corpo.

O ator treme, geme, grita. Está bem perto do Real (*). No que, da substância gozante, não é simbolizável (pois algo escapa à linguagem) surgem letras, feridas, obscenas, a vida bruta das birutices-brutices da carne.

Rowlands é despudorada neste deixar-se levar por excessos e “jeitões”. Se aplaudimos é porque valoramos as estripulias da carne que, neste corte, implicam “o objeto elevado a dignidade de Coisa” - arte, sublimação. “Mabel faz arte”.

No trabalho de Rowlands vemos o detalhamento das passagens de uma ação à outra, um trejeito ao outro. Nos intervalos, “diz o curso” e um sentido-de-ação que brota. Como se “quase antes” de pensar “O que é isso?”, víssemos brotar “Ah! Ela quer olhar a boca do homem, talvez veja como aquele som é produzido, não vai beijá-lo, mas, por um instante eu pensei”.

Há o jogo da leitura, que começa com o não-sentido, passa pelo duplo-sentido e cai na lógica que o Imaginário dá conta (e ele conta). Bem antes do proferir da fala, a presença de materiais que se substituem é aterradora. Precisamente, algo que “me causa”.

Seria preciso destacar a construção. Mas isto não é possível! Quais elementos subterrâneos? Quais sustentam as transições destas marcas? Não mais o sentido unívoco, mas o verbo ambíguo articulado ao ser, manejo em nome próprio das “regras do jogo” (pacto, Simbólico).

O que Kusnet chama (com um nome contemporaneamente significativo) “primeira instalação” (o contexto do ator) evoca a ação na “segunda instalação” (contexto ficcional, da personagem). O ator “joga em nome próprio” (Knébel); maneja pensamentos e emoções “reais” (do seu contexto) e as empresta, pois implicam um imperativo.

Não é possível saber quais as de Rowlands! São segredos. Há atores que os revelam como Dustin Hoffman, que certa vez para criar Rain Man enterrou a cueca entre as nádegas e, assim, sustentou o andar (**).

Percebe-se um contraponto. Um elemento constante em foco – enquanto, destampada está a outra extremidade por onde se deixa instalar “certas marcas do gozo” que atuam.

É disto que se trata. De segredos. É preciso antes o despudor para ser ator. É preciso entregar-se a certo estado de gozo, angústia e felicidade “claricianos”.

Acho que é isto que vejo em Rowlands. Queria poder entrevistá-la e ouvir seus segredos.
________________________
(*) Trata-se do conceito de Real como o que não tem inscrição na linguagem, o que é impossível de imaginarizar. Para Lacan existem três registros – Real, Simbólico e Imaginário. O Simbólico não é uma simbólica, mas a estrutura da linguagem. O Imaginário é fundamentado nas relações especulares do eu com o mundo, é onde incide o sentido.
(**) Confesso que não vou lembrar em que livro li isto, mas me afetou na época e jamais esqueci. Se lembrar da citação publico. Seria útil.


Rejane Kasting Arruda, é atriz e pesquisadora. Atua em cinema e teatro. Faz pesquisa na Universidade de São Paulo junto ao Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica do Ator. Ministra aulas de atuação para cinema. Participou dos filmes Corpo, O Veneno da Madrugada, Tanta, Iminente, Edifício do Tesouro e Medo de Sangue, entre outros. É também colunista do blog Os Curtos Filmes, onde assina uma coluna mensal.

rejane.arruda@usp.br