terça-feira, 2 de agosto de 2011

Nilson Primitivo


CONTRA O CINEMA, CONTRA OS CINEASTAS

O idioma tonal e narrativo do cinema dos últimos tempos é tido como se fosse ‘natural’, e como se fosse ‘ir contra a natureza’ superar o que o tempo está bloqueando. O conteúdo desse resultado é o cinema familiar a todos e está tão distante do que hoje pesa no destino humano que a experiência pessoal do público já não tem nenhuma comunicação com a experiência testemunhada por esse tipo de cinema ‘tradicional’. 

Porém, o que vale aqui não é o jogo agradável ou útil, mas a perspectiva de um certo desdobramento da verdade. Nela, a negação do elemento negativo é a própria essência de uma atitude autoritária, já que é meramente ideológica. A autoridade do efeito é sub-reptício: deriva não da lógica da argumentação, mas da prepotência do gesto. E de nada serve adotar ‘cosmovisões’ do passado com a finalidade de estabilizar nosso estado de ânimo e converter a evidente limitação de nossas faculdades representativas em algo que seja ‘por si’ e ‘em si. 

Sady Baby - o Príncipe das Moscas 

"talvez todo o valor estivesse nos bandidos das montanhas e nos assassinos da noite, nos salteadores das estradas e nos apunhaladores das ruas"

O Cinema Inaugural de Sady Baby expõe, enfrenta e reelabora alguns tópicos do comportamento social fundamentais da cultura brasileira contemporânea; mas, ao fazê-lo, penetra-os com uma dicção que é paradoxalmente saturada de vertentes estilísticas e desenvoltamente pessoal. 

Em "Emoções Sexuais de um Jegue", assistimos ao encontro de uma persistente leitura da tragédia nacional típica da década de 80, onde a AIDS e o preconceito de ontem e de hoje, acabam por servir como ponto de partida, para uma análise minuciosa sobre critérios morais enunciados por essa sociedade. E Sady é um dos nossos mais afiados leitores da realidade desse período, com um ethos despojado e às vezes abertamente biográfico. 

No filme, o personagem principal, "Gavião", foge da cadeia onde teria sido estuprado e contraido HIV, e segue a caminho de sua casa, de seu lar. A primeira cena que apresentra o personagem, ele engana um cachorro vira-lata: toma o osso do cão e sai roendo-o calmamente. Ao longe ouvimos os ganidos tristes do esfomeado vira–lata vitima do assalto de ‘Gavião’. Se isso não é estética da fome o que é? Um filme pornográfico comum? Sady revela uma dramaturgia construída a partir de desenhos de personagens, esboços de cenas e de um roteiro de situações. Veremos se não tem mais a ver com o filósofo alemão Martin Heidegger que com filme pornográfico. Se não, vejamos: Continuando nesse caminho ideal pelo meio do mato, conhece uma mulher (X-Tayla) que concorda manter relações sexuais com ‘Gavião” apesar de ciente de sua condição de infectado. Essa situação é expressa “simbolicamente” no filme através do convite inóspito do personagem 'vamos transar, mas pra comemorar (?!) tem que ser dentro de um caixão”.. ao que ela, indiferente a respeito do próprio destino fatídico, responde apenas com um vago "que maneiro".. Essa preparação constituiu-se como uma ruptura. Uma "queda", não necessariamente no sentido judaico-cristão do termo, todavia uma queda, já que traduzida por uma catástrofe fatal para o gênero humano e, ao mesmo tempo, por uma mudança ontológica na estrutura do Mundo. 

Cumprindo sua sina, “Gavião” prossegue em direção a sua casa, onde encontra primeiro a esposa e depois a irmã, menor, ambas grávidas, engravidadas pelo próprio pai de “Gavião”. E o pior é que, como se trata de um filme do Sady Baby, as duas gostam mais do velho pai/sogro que as estuprou e que lhes toma dinheiro, que do irmão/marido/salvador normalmente interpretado como o herói/vingador. 

O filme então passa a ser a saga obstinada desse “herói-sem-amor” por vingança pelo triplo estupro, “duplo chifre" e prisão. “Gavião’, a partir daí, come todas as mulheres e mata todos os homens que encontra pela frente, e o encontro com o próprio pai acontece somente no final, com a pior forma de parricídio: pela curra. A maldade do “herói” aparece como meio de assimilação do mundo que o cerca. 

Acontece que a paródia satírica nele é uma aventura de gênero de origem semi-rural: daí o curioso revival moderníssimo na escolha da utilização predominante da musica newwave para suas trilhas sonoras. No ambiente do seu “estudio”, quer dizer, uma sala comercial na Av .S.João, locação e único “interior” em todos os filmes, a newwave vem mixada com o Forró, antiga fórmula de escarnecer as palavras, estilo musical que a usura, na época, ainda não desgastara. 

Nilson Primitivo é cineasta e colunista do blog Os Curtos Filmes.