quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Vida longa ao Curta

Esse texto foi publicado no caderno “Ilustríssima”, da ‘Folha de S.Paulo’ em 12/02/12.

A França ainda é uma potência no cinema
SERGE KAGANSKI

TRADUÇÃO PAULO WERNECK

O ano de 2011 no cinema foi marcado na França por "Intouchables" (intocáveis). Com mais de 18 milhões de ingressos vendidos, essa comédia social de Eric Toledano e Olivier Nakache é a terceira bilheteria francesa de todos os tempos e provavelmente vai passar "A Riviera Não É Aqui" e "Titanic".

A boa-nova econômica é motivo de comemoração para o cinema francês, completada pelo sucesso artístico e internacional de "O Artista", que prova que a França ainda é uma potência no cinema.

Seria possível moderar de leve esse entusiasmo patriótico observando que "Intouchables" é mais um bom produto formatado que uma obra-prima comparável ao trabalho de Jean Renoir, Jean-Luc Godard ou François Truffaut, e que seu sucesso não deve nos fazer esquecer das dificuldades financeiras de muitos autores franceses.

Para cada "Intouchables", dezenas de bons filmes ficam em cartaz só por uma semana, vítimas da concorrência, de uma oferta abundante e de marketing insuficiente.

A VOLTA DO CURTA

No outro extremo econômico de "Intouchables", o curta-metragem permanece como território no qual fervilha o futuro do cinema.

No último dia 4, acabou o festival de Clermont-Ferrand, uma instituição do curta na França, que a cada ano alcança enorme sucesso.

Ao mesmo tempo, estreiam dois médias-metragens já cult graças ao burburinho dos festivais: "Le Marin Masqué" (o marinheiro mascarado), de Sophie Letourneur, e "Un Monde Sans Femmes" (um mundo sem mulheres), de Guillaume Brac.

Letourneur já assinou um longa elogiado ("La Vie Au Ranch", a vida no rancho) e volta ao formato curto com esta comédia romântica experimental e engraçada. Brac, por sua vez, estreia no cinema com um quarteto amoroso à beira-mar, num filme cujo tom faz pensar nas grandes figuras da nouvelle vague, como Eric Rohmer e Jacques Rozier (trailer em bit.ly/sansfemmes).

A exibição desses filmes de menos de uma hora no cinema é uma boa-nova: antes de serem curtos, "Le Marin Masqué" e "Un Monde Sans Femmes" são, sobretudo, excelentes filmes, que fazem acreditar no futuro desses cineastas.

"STAND-UP" MUÇULMANO

Numa pequena sala parisiense é encenado o "one-woman-show" de Sophia Aram. Muçulmana de origem marroquina, Sophia é uma cidadã francesa, laica, ateia, cujo humor espeta o culto excessivo às comunidades de imigrantes e o extremismo religioso. Como esses temas são sensíveis, isso lhe traz inimigos.

"Meu marido e eu somos de culturas diferentes", diz ela, casada com um cristão, numa apresentação. "Ele perguntou se podia me beijar após comer salsichão. Falei: 'É claro, desde que depois eu possa circuncidá-lo com os dentes'."

Sophia Aram também é titular de um quadro humorístico duas manhãs por semana na France Inter, rádio de grande audiência em todo o país.

Ela volta e meia desperta polêmica com líderes políticos que não apreciam seu senso de humor. Um dia tratou os eleitores do partido de extrema direita Front National de "grandes babacas".

Ela se justificou explicando que entendia as dificuldades econômicas de parte da população, mas que não entendia como aquelas pessoas podiam acreditar nas promessas simplistas de um partido político demagógico e xenófobo.

Ao fazer crítica social pela via do humor, gente como Sophia Aram é necessária à vida de uma democracia.

"FAIT-DIVERS" LITERÁRIO

Régis Jauffret, um dos escritores mais interessantes dos últimos anos, acaba de publicar o romance chocante da temporada de lançamentos de janeiro.
Assim como "A Sangue Frio", de Truman Capote, "Claustria" se inspira num "fait-divers" terrível: na Áustria, um pai de família estuprou sua filha, teve filhos com ela e os manteve reféns no porão durante 24 anos, à revelia do resto da família!

Jauffret tentou descrever o indescritível: não tanto as relações de violência incestuosa, mas o fato de viver apartado do mundo durante 24 anos. Longe de uma literatura obscena e sensacionalista, Jauffret transmite ao leitor uma experiência da duração, da limitação e de uma forma de condição humana que ultrapassa a compreensão comum: assim como uma microexistência que teria suas próprias regras longe de nossa civilização (a filha-mãe-vítima também tinha boas relações com seu pai-amante-predador).

De um "fait-divers" único e terrível, Jauffret tirou um romance único e poderoso.