sexta-feira, 2 de setembro de 2011

BISTURI - Rejane K. Arruda


Lillian Gish em "The Wind", de Sjöstrom. 

A Bisturi deste mês traz Lillian Gish em "The Wind", filme de Sjöstrom de 1928. O filme trata de Letty (Gish) que, ao hospedar-se com o primo, se depara com uma terrível ameaça: a tempestade de vento que (tal como os pássaros de Hitchcock) assume aspecto perturbador e, pouco a pouco, toma a dimensão do trágico. Para que Letty continue lá, é preciso que se case. Esta é a condição imposta pela esposa do seu primo - que percebe a relação de carinho entre eles. Letty então se casa - resistindo, no entanto, ao amor. Quando o marido viaja, é atacada por um homem do vilarejo, que acaba por ela assassinado. Em meio a tempestade, Letty cede a vertigem que lhe toma o corpo e só cessa com o retorno daquele que a tomou como esposa. 

Na performance de Gish, o exagero das formas se instala como signo do afeto, sublinhando a ação dramática articulada à narrativa. Há momentos em que os olhos deixam o corpo sem alma, forma de gesso, "instante de pseudo-morte". O semblante é erigido por uma tensão que, ao fazer pêndulo com gentis movimentos, propõe um revesamento. Há o abcesso, o instantaneismo, a alteração repentina entre dois registros: ora a imobilidade, ora o movimento incessante do eixo do corpo, que oscila entre os minúsculos gestos cotidianos. Há momentos em que as linhas do rosto abruptamente se abrem para o significante que o marca: ora a "sede do homem", ora o "vento". Em meio ao cabelo imenso, misturada aos gestos, o que Gish faz é um poema do corpo. As seqüencias corporais comportam-se como pedaços de frases musicais que reaparecem, intensas ou diluidas, ajustando-se a outras e compondo novas melodias. Algumas vezes o olhar é decomposto nos objetos. Outras vezes, ela se perde como humana - os olhos torneiam, alienígenas. Tudo mareia. 

O que podemos ler quando o olhar desce - repousado delicadamente sobre imagens do mundo? Se criamos uma cadeia como "desconfiança, desalento, timidez, tristeza", esta implicará fatalmente o não-dizer, pois não há dizer que dê conta de uma grafia do corpo. Os elementos, na medida em que sobram à leitura da ação, reaparecem como estilo. E é este o ganho de Gish: ela tem estilo - num certo sentido que podemos atribuir à frase de Busson: "o estilo é o homem". Mais do que um vocabulário gishiano, surge uma escrita gishiana - articulada à estética do cinema-mudo. 

Rejane Kasting Arruda, é atriz e pesquisadora. Atua em cinema e teatro. Faz pesquisa na Universidade de São Paulo junto ao Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica do Ator. Ministra aulas de atuação para cinema. Participou dos filmes Corpo, O Veneno da Madrugada, Tanta, Iminente, Edifício do Tesouro e Medo de Sangue, entre outros. É também colunista do blog Os Curtos Filmes, onde assina uma coluna mensal. 

rejane.arruda@usp.br