quinta-feira, 20 de junho de 2013

BISTURI - Rejane K. Arruda

“Um Rosto para Pixote”
Rejane K. Arruda
“O ator em cinema não é um indivíduo que representa, porque ele não é um indivíduo e ele não representa” uma vez disse Vinícius de Moraes parafraseando a frase de Mallarmé sobre a bailarina: “N’esta pas une femme qui dance, parce qu’elle n’est pas une femme, et elle ne dance pas”. Para Vinicius “em cinema ou há grandes atores de teatro, os quais possuem através da experiência os requisitos necessários para agir em qualquer circunstância, ou há rostos”. Rostos (continua): “personalidades físicas, que o diretor plasma de modo descontínuo e de acordo com as injunções materiais do filme que ele executa”[1]. Permitam-me discordar. Há savoir faire no cinema que não vem do teatro. Há grandes atores de teatro no cinema, mas, digamos, aprenderam estratégias e posições diferentes; ou a jogar esportes distintos. Não quero partir para as diferenças entre teatro e cinema, mas me ater à proposição de Vinícius apesar de discordar. Ele fala de rosto.
É isto que vejo em “Pixote, A Lei do Mais Fraco” de Hector Babenco. Não só um rosto, mas o sujeito disponível ao trabalho fílmico. A coisa é construída de tal forma que dizemos: não poderia ser outro o rosto. Ao contrário de Marília Pera no papel da prostituta, exemplar da primeira categoria: atriz de teatro. A prostituta Sueli poderia ter qualquer rosto. Marília parece construir, no passo a passo das impressões, um semblante para Sueli. Vencendo a nossa resistência, exigindo certa dose de generosidade para, de repente, nos flagrarmos entregues. Um jogo “a brasileira”: atuação cujos materiais são o deboche, a subversão e o afeto. Lembro-me de Anecy Rocha em “A Lira do Delírio” (de Walter Lima Junior) e Claudia Raia no “Matou a Família e Foi ao Cinema” do Neville.
Talvez Vinícius tenha razão ao dizer “não representa”, pois encontra a verdade (termo problemático) de cada ação em separado. Como diz Vinícius, “o diretor plasma de modo descontínuo”. O filme constrói o rosto de Sueli. Marília é fértil nos momentos isolados, costura tecidos diferentes: dançar, beijar, rir, empurrar, expulsar, verbos onde se enlaça. É representação? É (discordo de Vinícius). E não é. É atuação. Que instala, na tessitura artificial do filme (ou do set com a equipe controlando a captação do som, da luz, da imagem, do tempo) algo que se precipita. O que Marília engata e em direção a quê? Ao ódio do machinho-filho-verde? Deixar Pixote. Construir um dique, um limite. Quantos significantes aquele rosto representa? E o menino (Fernando) que se foi?


[1] Ver texto completo “Do Ator”, de Vinícius de Moraes, no link: http://www.viniciusdemoraes.com.br/site/article.php3?id_article=447