Del
Rangel
Produtor executivo e diretor
Sua
estreia no cinema foi com os Trapalhões,
em 1980, no filme Os Três
Mosquiteiros Trapalhões. Como surgiu
o convite para trabalhar com eles?
Iniciei
minha carreira artística no cinema. Quando a Embrafilme foi fechada pelo presidente
Fernando Collor, o mercado cinematográfico ruiu; e eu fui trabalhar na Rede
Globo. Eu sou sobrinho do Renato Aragão. Minha entrada no cinema foi um
completo acidente de percurso. Eu morava com o Renato e estudava na
Universidade Católica de Petrópolis. Fazia o curso de Engenharia Mecânica. No
meu último ano, vinha descendo com o Renato no elevador; e ele me falou que
estava abrindo uma produtora de cinema. Queria produzir os próprios filmes. E
como precisava de um sócio, os filhos ainda eram menores e ele não queria um
estranho, ele me colocaria. Eu concordei e continuei o meu curso de Engenharia.
Um fim de semana, ele me disse que produziria o seu primeiro filme, O Cinderelo Trapalhão, e que eu
seria o produtor executivo. Eu ponderei que não sabia nada de cinema. Ele
falou: “Se vira. Eu tenho muito trabalho na
Globo não posso tocar os dois
negócios.” E assim foi.
Adriano
Stuart, que dirigiu esse filme, possuía uma relação muito forte com o quarteto.
Que você lembra dele?
O
Adriano era um diretor que tinha uma ligação muito forte com eles porque tinha
uma formação circense. Nos ensaios antes de as cenas serem rodadas, gags eram criadas pelo
Adriano, o Dedé e o Renato, a partir da marcação dos atores. Ele era um diretor
muito criativo e conseguia marcar situações hilárias. Tinha o controle da
equipe na mão, fazia piada com todos, tinha o respeito do quarteto. Trabalharam
juntos durante muito tempo na tevê e no cinema. O Adriano era um diretor que
cumpria à risca os horários e cronogramas de produção, na época feitos pelo
Hélio Ribeiro. Ele e o Renato adoravam jogar futebol, a ponto de toda filmagem
acabar, impreterivelmente, às 16h30 para a equipe jogar futebol. Tinha que ter
uma quadra por perto de qualquer locação para o futebol.
É
verdade que a casa onde se passa parte da trama do filme se localiza na cidade
de Teresópolis, no Rio de Janeiro, e pertencia ao Renato
Aragão, que posteriormente venderia
a propriedade para a Confederação Brasileira de Futebol?
Quando
filmamos Os Mosquiteiros,
a casa de Teresópolis ainda pertencia ao famoso playboy Jorginho Guinle e
estava à venda. O Renato se apaixonou pela propriedade e comprou-a. Reformou
tudo, deixou impecáveis a casa, os jardins, os pomares, os lagos e as
dependências de lazer. E lógico, fanático por futebol, construiu um campo de
grama.
Uma
especulação a respeito do filme diz que as cenas de perseguição de barco no Rio
Guaíba era uma citação aos filmes do agente secreto 007. Isso procede?
Sim.
Inclusive, filmamos no mesmo local e com a mesma equipe do 007. Para o Renato
nada era impossível. Ele sentia o cheiro do sucesso. Ele tinha uma habilidade enorme
para perceber a tendência do mercado cinematográfico. Ele assistia aos sucessos
internacionais e escrevia uma sinopse a partir de uma ideia original.
O
roteiro é assinado por Renato Aragão e Victor Lustosa. Victor esteve desde o
início com Os Trapalhões no
cinema. Que tem a falar a respeito dele?
O
Vitinho era assistente de direção do J. B. Tanko. Um profissional muito
dedicado e competente. É roteirista também. Era de vital importância na rotina
do set de
filmagem. Os diretores sempre delegavam a ele as decisões técnicas que envolviam
luz, figurino, continuidade… Ele também fazia um excelente trabalho com os
atores convidados. Além de ser um excelente ser humano.
Quais
são as suas principais recordações de Os
Três Mosquiteiros Trapalhões?
Uma
loucura de produção. Rio, Manaus, Foz do Iguaçú. Uma logística dificílima. Pouco
tempo de filmagem, porque o quarteto gravava os programas semanais na TV Globo.
As filmagens eram feitas em “janelas”,
de acordo com a quantidade de programas gravados antecipados na emissora. Como
o tempo era curto, o material era transportado de avião. Refletores, cabos,
câmeras, lentes… Uma loucura! Os embarques e desembarques sempre eram tensos.
Mas sempre dava certo.
No
mesmo ano, vocês lançam O
Incrível Monstro Trapalhão, repetindo a
direção com Adriano Stuart e o roteiro de Renato Aragão e Victor Lustosa. Era
uma ideia manter a base da produção anterior, para facilitar o entendimento e
andamento dos filmes?
O
Renato sempre teve uma percepção incrível do público dele. Na minha opinião, ele
fazia uma releitura das grandes produções internacionais em alguns dos seus
filmes. Mas isso aconteceu em poucos filmes. Ele é um artista extremamente autoral.
Um criador inquieto sempre em busca de algo novo e inusitado para manter Os Trapalhões sempre
inéditos. Por onde passava, ele fazia anotações, trazia fotos de locações,
carros; enfim, o lado criador e inovador dele sempre estava em alerta.
O Incrível Monstro Trapalhão é
uma sucessão de paródias: vocês usam as referências dos super-heróis famosos no
meio infantojuvenil, como o Superman e o Incrível Hulk e há uma referência
também ao clássico O Médico e o
Monstro. Essas paródias tinham o intuito, além
de aproveitar o sucesso desses clássicos, facilitar o entendimento das
crianças?
O
Renato sempre foi um cara muito brincalhão. Ele sempre foi engraçado. Ele é
muito rápido para analisar uma situação e transformá-la em uma piada ou gag. É assustador. Tudo
ele transformava em riso. Esse filme, em particular, tem essa característica.
Uma grande sátira de todos os super-heróis do cinema internacional, costurados
pelo quarteto.
Nesse
filme, você teve a oportunidade de trabalhar com dois atores icônicos: Eduardo
Conde e Wilson Grey. Como foi trabalhar com eles?
Dois
cavalheiros. O Wilson era um ator consagrado, uma carreira impecável. Uma lenda
do cinema. Um ator que viveu o ciclo de ouro dos grandes sucessos da Atlântida.
Uma honra trabalhar com esse senhor. O Eduardo estava no início do sucesso, por
causa das suas interpretações nas novelas da TV Globo. Um excelente ator.
Quem,
na sua opinião, é o maior vilão de todos os tempos nos filmes dos Trapalhões: Eduardo
Conde, Carlos Kurt ou Roberto Guilherme?
Sem
dúvida, o Carlos Kurt é a cara dos Trapalhões.
Aquelas interpretações “over acting”
dos personagens interpretados por eles curtiam efeito no público infantil.
Em
1982 é a vez do filme Os
Vagabundos Trapalhões. Josip
Bogoslaw Tanko, o J. B. Tanko, volta a dirigir um filme dos Trapalhões. Como era
trabalhar com ele? Por que J. B. Tanko é pouco falado? Acredita que ele é
subestimado por jornalistas, críticos e pesquisadores?
O
Tanko foi um dos maiores diretores do cinema brasileiro. Ele era perfeito! O trabalho
de câmera dele era virtuoso, tinha um domínio e um conhecimento de fotografia,
arte e figurino imenso, e, dirigia os atores como poucos diretores. Um diretor
vindo da Vera Cruz, que respirava cinema. O Tanko sempre foi um homem muito
solitário e reservado. Muito educado, mas um homem de poucas palavras. Nunca se
preocupou em ser vitrine. Era o gênio que orientava os seus pupilos, de maneira
discreta, sempre deixando para o quarteto todas as glórias. Ele não tinha a
habilidade do Adriano na criação das gags;
mas trouxe para Os Trapalhões a
alma, a emoção, a reflexão, a tomada de consciência de que se poderia dizer
algo mais para o público usando a comédia. O Tanko foi uma evolução na carreira
dos Trapalhões.
As comédias começaram a ser recheadas de questões sociais.
Os Vagabundos Trapalhões não
era um tema muito árido, ainda mais falando de uma questão social tão
importante quanto o abandono de crianças, para um filme de férias para as
crianças? Não era um risco a aceitação do público diante do tema?
O
Tanko trouxe uma grande contribuição para a qualidade dos roteiros dos Trapalhões. O Gilvan
Pereira começou a assinar os roteiros. Nessa fase, as sinopses ou ideias vinham
do Renato e eram desenvolvidas pelo Gilvan, supervisionadas pela visão do
Tanko. Esse sistema mais profissional tem um efeito imediato na tela. A prova
disso é o sucesso do filme Os Vagabundos
Trapalhões. Não poderia dar errado. O carisma do
Renato e a habilidade dele em trafegar no limiar do clichê e da pieguice,
mantendo uma autenticidade ímpar. Sem falar que o Dedé, o Mussum e o Zacarias
faziam o contraponto da comédia rasgada. Nós tínhamos o Renato, com toda a sua
carga cômica e emocional – o nosso Chaplin. O Zacarias, com toda a sua carga
cômica embasada na ingenuidade infantil, não era um adulto, era uma criança, o
nosso Chaves. O Dedé, para mim, tem uma importância vital no grupo. Sem ele,
não existiriam as piadas e as gags.
Ele era o ator “escada”,
que, através da sua interpretação e das suas falas, proporcionava o desfecho
das piadas para os outros três. Além de ser um profundo conhecedor da arte
cinematográfica. Sabe tudo de cinema. E, para finalizar tinha o Mussum. Um
negro simpático, sempre de bem com a vida, sem maldade, malandro. Os caras
atingiam todos os segmentos do público-alvo deles. Eles eram muito bons!
Esse
filme foi comercializado para Moçambique e Angola em 1984; e, para o México, em
1988. Mas não era comum vender os filmes dos Trapalhões para
fora. Por quê? E por que esse logrou êxito?
Os
concorrentes internacionais eram muito fortes. Jerry Lewis, Cantinflas, Disney…
Logo
em seguida, vocês lançam Os
Trapalhões na Serra Pelada. Em termos
de produção/logística, esse foi o filme mais difícil de se fazer?
Moleza.
Esse foi só pegar o avião e ficar acampado junto com os garimpeiros. Como não
tinha nada em um raio de cem quilômetros, foi moleza produzir. Chegamos a
Marabá em avião de carreira e equipe reduzida. Voamos de monomotor até Serra
Pelada. Foram várias idas e vindas para levar o equipamento, que também era
reduzido. Aconteceu uma curiosidade. Cada avião levava três passageiros mais
bagagem. Quando eu cheguei lá, descemos os três passageiros; e, para a nossa
surpresa, além da bagagem o piloto transportou, sem a gente saber, mais três
garimpeiros na parte de bagagem. O peso era acima do permitido. Eu não tenho
ideia de como aqueles caras se acomodaram por lá.
Novamente
J. B. Tanko dirigiu o filme. Como era a relação dele com Os Trapalhões? Como
era ela como diretor?
A
relação com todos era sempre de profundo respeito. Ele falava com um sotaque acentuado.
Carregava no “r”.
Era iugoslavo. Era um mestre. Ver o Tanko filmar era uma aula.
Os Trapalhões na Serra Pelada continua
entre as maiores bilheterias de todos os tempos do cinema nacional. Que foi que
fez dele um sucesso?
O
tema com certeza, que, na época, era notícia diária nos jornais e televisão. E uma
vez mais a simbiose dos Trapalhões com
o povo. Eles sempre foram parte do povo. Nesse filme eles representavam a
vontade inconsciente de todo brasileiro de vencer, de ter sua situação
financeira resolvida. O Renato sempre ambientou os filmes dele em locais que
agregavam valor a produção. Ele gastava pouco, e as locações transformavam os
filmes em grandes produções.
Quais
as suas principais recordações desse filme?
Todo
dia, às 18 horas, a gente era devorado pelos mosquitos. Era inacreditável. Uma
nuvem preta se aproximava e varria a região. Foi uma experiência única, porque ficamos
hospedados em uma vila de garimpeiros. Vivemos como eles, comemos como eles.
Não tinha outra maneira de filmar.
As
cenas em Serra Pelada mostram claramente o estranhamento e deslumbramento dos
garimpeiros diante dos Trapalhões
e das câmeras. Eles olham a todo instante
para o quarteto. Era difícil criar um ambiente de naturalidade durante as
filmagens lá?
A
gente chegou em segredo e permanecia no acampamento o mais quieto possível. O
quarteto era famosíssimo; e a gente tinha medo de, que se aquela multidão soubesse
que eles estavam lá, as filmagens ficariam prejudicadas. O espanto era quando
algum dos garimpeiros olhava para o lado e via um dos Trapalhões sujo de
lama da cabeça aos pés, carregando um saco de areia como eles. A dúvida era
imediata. Será possível: um Trapalhão aqui
garimpando? Estou sonhando? A gente posicionava as câmeras o mais distante
possível e usava zoom. Os
garimpeiros nunca souberam que a gente estava filmando.
Era
arriscado filmar lá?
Sim.
Porque eles faziam os trajetos dos garimpeiros, subindo e descendo aquelas escadas
sem a menor segurança. De vez em quando, caía um saco das costas de um
garimpeiro e levava dois ou três que estavam atrás, subindo a escada, para o
fundo do buraco. Nós construímos uma pequena cidade cenográfica no Rio de
Janeiro, com o acampamento e um morro gigantesco de areia.
Novamente
o filme foi comercializado para Moçambique e Angola. Por que esses países
tinham interesse nos Trapalhões?
Por
causa da venda anterior.
Tentaram
vender para outros países? Europa? Estados Unidos?
Eu
não me envolvia na comercialização. A gente produzia dois longas por ano.
Era muito trabalho.
Os Trapalhões dominavam
o circuito comercial das salas de cinema. Quem era páreo para eles? Algum filme
nacional ou estrangeiro chegou a ameaçar vocês?
O
cinema brasileiro era muito forte nessa época. A Boca do Lixo, em São Paulo, produzia
com recursos próprios; o Aníbal Massaíni produzia muito em São Paulo. Os Barretos
também produziam muito. O Bruno dirigia filmes primorosos, sempre sucessos de
bilheteria. Mas o único que chegou bem perto foi Dona Flor e Seus Dois Maridos.
A
ideia de filmar O Cangaceiro
Trapalhão era para aproveitar o sucesso da minissérie
Lampião e Maria Bonita,
exibida pela TV Globo?
Não.
Foi outro salto evolutivo na carreira do grupo. Nessa época. filmar com Os Trapalhões era cult. O filho mais velho do
Renato, Paulinho Aragão e eu, influenciamos muito o Aragão para chamar o Daniel
Filho para dirigir um filme. E lógico que atrás do Daniel veio um elenco grandioso,
uma dupla maravilhosa de roteiristas e uma equipe sensacional. O Daniel sempre
se cercou do que existe de melhor. Com isso, nós juntamos dois loucos, o Renato
e o Daniel. Os caras piraram e fizeram um dos melhores filmes brasileiros de
todos os tempos! O Cangaceiro
Trapalhão é
impecável!
O
fato de contratar Aguinaldo Silva e Doc Comparato, roteiristas da minissérie, assim
como o casal de protagonistas, Nelson Xavier e Tânia Alves, era para aproveitar
o estrondoso sucesso?
O
Daniel e o Aragão têm esse dom em comum. Eles farejam sucesso e o filme veio a
reboque da minissérie.
Não
tinham receio de comparação, já que essa minissérie foi pioneira na proposta de
renovação da linguagem na teledramaturgia da TV Globo? A minissérie foi
estruturada com cuidadosa pesquisa histórica, o que não excluiu a inserção de
elementos ficcionais na trama.
Em
determinados filmes, Os Trapalhões funcionavam
como o Casseta e Planeta funcionaria
anos depois. O grupo fazia paródias inusitadas dos programas da TV Globo e dos grandes sucessos
internacionais. Como eles trabalhavam na Globo,
já faziam, na verdade, um cross media inconsciente.
O
filme faz citações e referências aos filmes do Indiana Jones? Podemos dizer que
a caixa que o cangaceiro Lampião buscava fazia uma referência à Arca da
Aliança, assim como a cena que Renato Aragão cai da carroça remete a quando
Indiana Jones cai do caminhão nazista na famosa cena de perseguição? Tem
fundamento essa analogia?
O
Daniel planejou tudo. O filme é feito de inúmeras citações. Todos os envolvidos
na criação eram cinéfilos fanáticos liderados pelo Daniel, outro cinéfilo fanático.
Fizemos um filme onde a primeira cena é igual, inclusive nos planos, a Meu Ódio Será Sua Herança, do
Sam Peckinpah, um dos maiores diretores de Western
de todos os tempos. Nós fomos filmar no
interior do Ceará em um vilarejo minúsculo chamado Juatama, próximo à cidade de
Quixadá, porque o vilarejo tinha uma estação de trem que passava no meio. Foi
uma loucura. Destelhamos todas as casas de um dos lados, para montar um travelling que filmaria
a chegada do trem. A cena é impecável, filmada em homenagem ao Peckinpah. Tinha
referência aos filmes da Esther Williams, com a Bruna Lombardi andando sobre as
águas; tinha uma casa que rodava e o cenário ficava de cabeça para baixo… Foi a
produção mais cara do grupo; e a mais complicada também, por causa dos efeitos
especiais mecânicos e digitais.
O Cangaceiro Trapalhão é,
certamente, um dos filmes com mais estrelas em seu elenco. A citar: Regina
Duarte, Bruna Lombardi, Tarcísio Meira, Gabriela Duarte, além dos já citados
Nelson Xavier e Tânia Alves. Esses atores eram, de certa maneira, para
chancelar o cinema dos Trapalhões
para um público e crítica mais
resistentes aos trabalhos deles?
Os Trapalhões já eram cult. Faltava um nome de
peso para avalizar o trabalho deles, dando a importância, qualidade e respeito que
eles mereciam. Esse cara foi o Daniel Filho.
Como
Daniel Filho conduziu o processo fílmico dessa produção?
O
Daniel é genial. O melhor diretor brasileiro de todos os tempos. Ele consegue ser
virtuoso, profundo e popular. Ainda não apareceu ninguém com o talento dele!
Ele tomava conta de tudo. Nos mínimos detalhes. Um diretor de verdade! Exigente
como ninguém. Deixava-me louco.
Até
agora, em todos esses filmes que já conversamos, sua função era a de produtor executivo.
Como era ser produtor executivo dos Trapalhões?
Uma
insanidade. Os caras não tinham tempo para filmar. Eles eram contratados da TV
Globo, onde gravavam três dias por semana, faziam shows no fim de semana e
ainda queriam folga. O Renato chegava para mim e dizia: “Essa é a sinopse, corre atrás do roteiro, quem vai dirigir é o fulano, as nossas
datas são essas.” As datas correspondiam aos dias de
filmagem, sem possibilidade de dar nada errado. Eles eram muito ocupados.
Trabalhavam muito. Eram uns queridos, mas faziam muita coisa ao mesmo tempo.
Organizar toda essa agenda era adrenalina pura.
Quais
as atribuições de um produtor executivo no cinema?
Como
dizem os americanos, o verdadeiro produtor executivo no cinema mundial é Deus!
No Brasil, nem tanto. Essa função lida com o orçamento e com o dinheiro em si.
Supervisiona a produção inteira, em todos os detalhes.
Você
mudou de função no período mais difícil da história dos Trapalhões. Em 1983,
eles se separou e Renato fez O
Trapalhão na Arca de Noé. Nessa
produção, você assinou o roteiro e a direção. Como foi a experiência?
Aterrorizante!
Nós estávamos prontos para iniciar mais uma produção em quinze dias. Tudo normal.
No final do dia, o Renato chega na produtora, me chama na sala dele e diz que Os Trapalhões se
separaram, que ele vai fazer o filme, que eu dirigiria, que contratasse o Sérgio
Mallandro e desse um jeito no roteiro, pois as datas permaneciam as mesmas. Se
eu não fosse tão jovem, teria infartado. Eu o considero o pior filme dos Trapalhões!
O Trapalhão na Arca de Noé tinha
no elenco Xuxa Meneghel, que estreava com o Renato Aragão, e Sérgio Mallandro,
ou seja, dois não-atores. Como é dirigir pessoas que não têm o poder da
representação nas telas? Pior do que isso, como é dirigir não-atores sendo você
um não-diretor?
Foi
um período muito tenso para todos nós, que éramos a família Trapalhões. Ficou um
buraco no coração de todo mundo.
O
fato de eles dois serem estrelas televisas compensa no filme? Até que ponto eles
ajudam ou atrapalham um filme?
Nós
fizemos o possível para fazer de O
Trapalhão na Arca de Noé um filme, mas não fomos
bem-sucedidos. Usamos todos os artifícios possíveis, mas o filme é muito ruim.
A crise emocional, a minha completa falta de experiência, o futuro da carreira do
Renato sem Dedé, Mussum e Zacarias; o futuro de Dedé, Mussum e Zacarias sem o
Renato, relações contratuais com a TV Globo… Enfim, uma grande confusão.
Renato
Aragão disse que O Trapalhão
na Arca de Noé foi inspirado em Os Caçadores da Arca Perdida,
de Steven Spielberg. Procede essa informação?
O Trapalhão na Arca de Noé é
um filme feito de retalhos de um roteiro que já existia e no qual cenas novas
foram criadas para a entrada de novos atores em locações que já estavam
fechadas e não podiam ser trocadas. Quinze dias para fazer tudo!
Durante
a separação dos Trapalhões,
que durou apenas seis meses, Dedé Santana,
Mussum
e Zacarias fizeram, concomitantemente a O Trapalhão na Arca de Noé,
o filme Atrapalhando a Suate.
Além da competição nas salas de cinema,
houve também nos bastidores?
Não
procede. Eles não se falavam. Estava todo mundo correndo atrás do futuro e
organizando um presente permeado de relações contratuais.
É
verídica a história de que Renato Aragão queria fazer de O Trapalhão na Arca de Noé o
grande filme da sua carreira, para provar aos três integrantes recém-separados que ele teria
condições de seguir sem eles?
Jamais.
Isso soa muito vingativo, e isso nenhum deles era. No lado do Renato, a gente
estava com um problema na mão, que era filmar em quinze dias um filme que já
estava produzido mas não tinha roteiro. E, para Dedé, Mussum e Zacarias, o
problema era organizar uma produção sem ninguém ter feito uma. Ou seja, estavam
todos muito ocupados para se preocupar com veleidades.
Seu
último filme com eles foi Uma
Escola Atrapalhada (1990), sob sua direção. Por
que esse hiato entre O Trapalhão
na Arca de Noé e Uma Escola Atrapalhada?
Fui
trabalhar na TV Globo, onde fiquei doze anos.
Quais
as suas lembranças do filme Uma
Escola Atrapalhada?
Foi
uma grande diversão como sempre. O quarteto, o Supla (que é uma figura), a
bem-comportada Angélica e todos aqueles garotos... Era uma delícia. Sem falar no
Gugu Liberato.
O
filme foi o último com a participação de Zacarias, que faleceu naquele ano. A aparição
dele no filme é melancólica, muito magro, abatido, numa cena curta. Como foi o
seu contato com ele? Ele já estava doente?
Essa
parte é bem dolorosa. O Zaca era muito querido, um homem mais reservado, religiosamente
profundo. A espera entre uma cena e outra sempre era repleta de alegria e
sacanagens mútuas, mas nesse filme o Zacarias já estava muito doente. Ele
ficava cabisbaixo, calado, fisicamente acabado. Guardava todas as energias para
o famoso “ação!”
O
personagem de Zacarias, assim como os de Dedé Santana e Mussum, fizeram apenas
uma breve aparição. A sensação é que pareciam figurantes no filme. Isso
procede?
Eles
estavam voltando a trabalhar juntos, e o filme já estava escrito e produzido. Tanto
é que a história gira em torno dos jovens alunos.
Você
é um dos profissionais que mais tempo trabalhou com Os Trapalhões. Como
e por que conseguiu ficar tanto tempo com eles?
Competência,
afinidade, respeito, admiração…
Podemos
considerar Renato Aragão um dos maiores e melhores produtores de cinema do
país?
Eu
considero o Renato o único produtor do cinema brasileiro! Ele nunca filmou com
dinheiro subsidiado! Todo o investimento era dele! O risco era dele! A única coisa
que ele tinha era o adiamento de distribuição, que depois era descontado da
parte dele! Ninguém até hoje, 2016, filmou no Brasil com recurso próprio! O Renato
sempre filmou! O que o torna o único produtor real do cinema brasileiro!
Renato
Aragão tem fama de ser perfeccionista. Isso procede? Ele acompanha tudo?
A
grande qualidade do Renato era delegar. Ele sempre fez isso muito bem. Ele
delegava, mas cobrava. Nada passava de uma etapa para outra sem a aprovação
dele.
Quem
era o maior comediante do grupo?
O
grupo não teria o sucesso que teve, se não tivesse o Dedé Santana como membro. Ele
era o ator que proporcionava o desfecho das piadas dos outros membros. Eles
eram ótimos. Cada um tinha um estilo. O Renato fazia um humor corporal como
ninguém. tinha bordões que fizeram época. O palhaço circense andava de mãos
dadas com ele. A emoção chapliniana embalava seu coração! O Mussum era um
anarquista! Um humor popular, usando um linguajar característico da favela
carioca, um gingado natural do sambista que ele era. Um sorriso estampado no
rosto e sempre uma resposta engraçada para qualquer pergunta ou situação.
Zacarias era a criança reprimida que mora em cada um de nós e que, através das
suas risadas, olhares, vocabulário infantil e alienado, nos enchia de felicidade,
fazendo o riso ingênuo desabrochar sem censura ou malícia.
Como
classifica o cinema feito pelos Trapalhões?
Para
a época, genial, corajoso, inovador, debochado, emocionante, em alguns momentos
péssimo, comovente, divertido...
Por
que os críticos e a Academia rejeitam os filmes produzidos e estrelados pelos
Trapalhões?
Porque
eles são frustrados. Gostariam de ser um deles, ou dirigir um dos filmes, ou escrever
alguns dos roteiros. Isso é o que atrapalha, até hoje, o cinema brasileiro! Ao
contrário da televisão, os produtores e diretores de cinema não fazem filmes
para o público, fazem filmes pessoais e autorais, que têm como consequência os
fracassos de bilheteria. Nós fazemos uma das melhores televisões do mundo e não
conseguimos ter uma indústria cinematográfica autossustentável. Porque a
televisão vê o entretenimento como um negócio. Escreve para os nichos e
segmentos de mercado em busca de audiência. Molda-se às mudanças econômicas e
sociais. O cinema brasileiro não! Os cineastas ainda nem conseguiram ver o
cinema como um negócio!
Gostaria
que contasse alguma curiosidade ou fato desconhecido do público que tenha
presenciado como testemunha ocular.
O
Renato inventou de rodar um filme no Marrocos. O Rei e Os Trapalhões. Lá fomos
nós, com toda a nossa tralha de avião da Air Marrocos, para Marrakesh. Uma das
exigências do governo marroquino era o nosso plano de filmagem. Os locais onde
filmaríamos. Preenchemos os documentos solicitados; e, dentre as locações,
estava o deserto de Zagora. Para nossa infelicidade, estava tendo uma guerra no
local e nós não sabíamos. Assim que chegamos ao aeroporto, o nosso equipamento
foi apreendido. Eles achavam que nós éramos jornalistas e iríamos fazer
matérias lá. Uma confusão geral. Era época do Ramadã, jejum durante a luz do
sol; e os órgãos federais só funcionavam quatro horas por dia. Estávamos quase
voltando para o Brasil no dia seguinte. Decidimos ir para o hotel e tomar uma
decisão lá. No momento do embarque para o ônibus, eu, que estava responsável pela
produção e pela negociação com as autoridades marroquinas, dirigi- me à sala da
Alfândega e pedi a eles para retirar a caixa de negativos. Se as latas não
fossem acondicionadas em geladeira, perderíamos tudo. Para nossa sorte, o
oficial entendeu e autorizou-me a retirar a caixa. Eu entrei sozinho na sala, ninguém
me acompanhava. Olhei para os lados e, já que estava lá, peguei a mala da
câmera de zoom,
que vinha com duas baterias e carregada, e fui embora. Resultado: filmamos
tudo, só com uma câmera. A gente alugava ônibus para fazer passeios turísticos;
mas, na verdade, saíamos para filmar. Foi bem divertido!