segunda-feira, 26 de maio de 2014

R.F.Lucchetti: Memória Cinematográfica




O DEPOIMENTO DA SENHORA MARONE
R. F. Lucchetti

“Que esplêndido seria fazer o mal e não ouvir falar mais nisso!”
The Witch of Edmonton

Quando a sra. Marone leu essa citação no romance O Condenado, de Graham Greene, achou-a formidável.

DELEGADO – Minha senhora! A função de um delegado é fazer o relatório policial sobre os acontecimentos. Tratando-se da morte de seu marido, tenho de lhe fazer perguntas. Seu nome?

MARONE – Sou a sra. Harry Marone!

D. – Sra. Marone, sabe a razão de sermos forçados a fazer-lhe algumas perguntas, concernentes à morte de seu marido?

M. – Sim. Porque, antes do pobre Harry morrer, houve um pequeno problema em nossa casa; e o senhor quer saber que problema foi esse. Mas posso explicar tudo.

D. – A senhora estava presente, quando seu marido morreu?

M. – Vi aquilo acontecer. Harry morreu porque tinha estômago fraco. Eu telefonei à polícia imediatamente.

D. – E a senhora sabe o que causou a morte de seu marido?

M. – Eu poderia chamar a isso de um ato de Deus.

D. – Por favor, explique o que quer dizer por “um ato de Deus”.

M. – Quero dizer que é algo que eu vinha pedindo a Deus... Não, não quero dizer isso. Quero dizer que é uma coisa que somente aconteceu. Um acidente.

D. – Quando abri, por ordem judicial, a caixa dos depósitos de seu marido no banco, encontrei um testamento e uma carta endereçada à polícia. No testamento, seu marido determina que, se morresse de forma violenta, todos os seus bens devem ir para certas instituições de caridade. A carta tem a caligrafia de seu marido e avisa a polícia de que a senhora seria, provavelmente, responsável, caso ele sofresse um acidente fatal. Pode explicar isso?

M. – Oh, sim. Posso explicar tudo. Eu queria que Harry fizesse um seguro de acidentes. Então, ele fez seu testamento e escreveu aquela carta para a polícia. Disse-me que aquele era o melhor seguro que poderia fazer.

D. – Sra. Marone, a polícia chegou, três minutos após seu telefonema. E achou o aposento em grande desordem. Alguém tinha usado uma barra de trinta e seis polegadas para despedaçar um grande guarda-roupa de madeira. A porta trancada foi arrancada, e a madeira despedaçada por pancadas violentas. O cadáver de seu marido estava deitado no chão. Em sua cabeça tinha um ferimento causado por algum instrumento sem corte. A senhora bateu no seu marido com aquela barra?

M. – Oh, não! Era muito pesada para eu levantá-la. Além disso, se desejasse matá-lo, poderia ter usado minha pistola. Harry fazia-me guardar um revólver na casa.

D. – Onde está essa arma agora?

M. – Em minha frasqueira. Aqui está. Não tenha medo. Não está carregada.

D. – Tem permissão para andar com este Colt calibre 32?

M. – Aqui está a licença. Harry queria-a em meu nome.

D. – Alguém já atirou com essa arma?

M. – Harry usou-a para atirar em Joe.

D. – Quem é Joe, sra. Marone?

M. – Meu irmão. Alguns meses atrás, Harry atirou nele. E, hoje, Harry quebrou o guarda-roupa para pegar o corpo de Joe. Disse que iria atirá-lo no rio. Mas, além de meu irmão, ele esperava encontrar lá um outro cadáver.

D. – De quem era esse outro corpo que seu marido esperava encontrar?

M. – Alguém que estava fazendo chantagem com Harry.

D. – Por que estava seu marido sendo chantageado?

M. – Alguém afirmou que sabia de tudo sobre o tiro que ele havia dado em meu irmão.

D. – Por que seu marido baleou seu irmão?

M. – Meu irmão foi para a cadeia como dublê de Harry. Harry prometeu pagar-lhe cinqüenta dólares por semana durante todo o tempo que ficasse na prisão. Mas não pagou. Depois, ficou com medo de que meu irmão lhe arranjasse alguma embrulhada. Foi por isso que me deu a arma. Entretanto, quando baleou Joe, não sabia absolutamente quem era.

D. – Esta é uma série de terríveis acontecimentos, sra. Marone. Estou com receio de que a senhora tenha de começar de novo. Quando iniciou toda a encrenca?

M. – Principiou logo que eu e Harry nos casamos. Harry desposou-me para que eu não pudesse ser forçada a testemunhar contra ele.

D. – Testemunhar contra ele?

M. – Sim, por ter contratado meu irmão para ir para a cadeia no lugar dele.

D. – Qual o motivo da prisão?

M. – Harry estava no Canadá, manejando uma série de telefones... um “quarto fervente”, como ele chamava aquilo. Queria vender minas de ouro para investidores dos Estados Unidos. Não pode ser preso no Canadá. Mas, quando desceu a Nova York para receber algum dinheiro, os investigadores do Correio dos Estados Unidos vieram atrás dele. Foi nessa ocasião que Harry contratou meu irmão para representá-lo. Joe cumpriu dois anos em Atlanta. Então, Harry disse que não aceitava pagar a Joe todo aquele dinheiro e continuar dando-me os pequenos luxos que eu gostava. Harry sempre me dizia coisas doces como essa. Ele era muito romântico. Foi quando matou Brucie.

D. – Quem era Brucie, sra. Marone?

M. – Brucie era meu querido e lindo cão de caça marrom e branco. Eu amava Brucie. Ele tinha pêlos marrons e brancos, olhos castanhos e orelhas longas e sedosas... Brucie dormia ao lado de minha cama todas as noites. Mas, uma noite, Harry pisou em Brucie. E Brucie saltou tão subitamente que Harry levou um tremendo tombo. Depois disso, Harry fez Brucie dormir no porão. Duas semanas depois, ao levantar-me da cama, pus os pés exatamente sobre o pêlo macio, branco e marrom de Brucie. Senti terrivelmente aquilo. Harry tinha mandado tirar a pele de Brucie e mandado fazer um tapete para mim. Explicou que desejava que eu tivesse alguma coisa para me recordar de Brucie.

D. – Bem, voltemos à ocasião em que seu marido atirou em Joe. Pode nos dar os detalhes, sra. Marone?

M. – Isso foi exatamente depois de meu irmão Joe sair da prisão. Joe veio perguntar-me se eu podia persuadir Harry a pagar-lhe o dinheiro que tinha prometido. Harry não estava em casa. Era noite, Joe e eu estávamos sentados no quarto, com as luzes apagadas. Os mosquitos estavam terríveis. Disse a Joe que poderia haver algum barulho, se Harry o visse. Harry subiu silenciosamente as escadas e viu alguém sentado no peitoril da janela, com o braço em meu redor. Era somente meu irmão Joe, mas Harry não sabia disso. Pegou meu revólver e atirou em Joe. Bem de perto. Joe caiu do peitoril da janela ao chão e ficou imóvel. Gritei para Harry: “Chame um médico. Faça alguma coisa! Veja se ele ainda está vivo!” Mas Harry nem chegou perto dele.

D. – Por que seu marido não se aproximou?

M. – Por causa de seu estômago terrivelmente fraco. Harry não podia tocar em qualquer espécie de corpo morto... Isso o deixava terrivelmente doente. Num barco de pesca, precisava ter alguém para espetar as iscas para ele.

D. – Sra. Marone! Por que não informou esse assassinato à polícia?

M. – Oh, eu não podia. Eu amava muito meu marido.

D. – Que aconteceu ao cadáver de seu irmão?

M. – Harry estava muito zangado comigo, porque pensava que eu o estava traindo. Aí, falou para mim: “Vou para Atlantic City por uma semana. Você pode livrar-se desse corpo da maneira que mais lhe agrade. Nem quero saber quem era o homem, porque tenho muita consideração por seus sentimentos.” Eu disse: “Sim, Harry, mas necessitarei de muito dinheiro para tomar conta desse cadáver.” E ele deu-me bastante dinheiro, e eu arranjei tudo otimamente.

D. – Como a senhora arranjou tudo?

M. – Quando Harry voltou de Atlantic City, mostrei-lhe um grande e pesado guarda-roupa novo que um carpinteiro tinha construído por minha ordem. Disse-lhe que havia pago a um agente funerário para preparar o corpo de Joe e nada dizer a esse respeito. Agora Joe estava embalsamado e trancado dentro do guarda-roupa e nunca mais aborreceria ninguém. Então, Harry disse que estava ótimo. Mudou minha cama para o mesmo quarto e mandou-me dormir lá. Não me importei, porque sabia que tudo estava certo. Mas contei a Harry que o homem era Joe. Aí, ele falou-me que sentia muito.

D. – A senhora disse que, quando seu marido quebrou o guarda-roupa, esperava encontrar um segundo cadáver ali...

M. – Oh, sim. Explicarei isso. Foi duas semanas depois que o guarda-roupa foi feito e fechado. Harry recebeu um telefonema anônimo. O homem que telefonou disse saber de tudo sobre o cadáver embalsamado e fechado dentro do guarda-roupa. Sabia o nome do agente funerário que fizera o serviço e o calibre da pistola usada no assassinato. E isso iria custar a Harry cem dólares semanais. O homem deveria ir em casa às oito horas, naquela mesma noite, para acertar o pagamento da primeira semana.

D. – Foi então que seu marido baleou o chantagista?

M. – Não. Harry tinha muito dinheiro. Queria tempo para pensar. O homem foi, conforme o combinado. Fez o mesmo, durante mais algumas semanas. Em cada ocasião, Harry dava-lhe cem dólares. O homem usava um lenço no rosto para que Harry não pudesse identificá-lo, se o visse à luz do dia.

D. – Quando foi que seu marido atirou no chantagista?

M. – Harry pagou-lhe cem dólares semanais durante dez semanas. Então, disse-me: “Aquele rato arrancou mil dólares de mim. Isso é o bastante.” E, quando o homem veio novamente, Harry pegou minha arma e atirou nele. Exatamente como tinha feito com meu irmão Joe.

D. – E a senhora pôs esse corpo no guarda-roupa também?

M. – Harry deu-me mais algum dinheiro e disse: “Estou de saída para Atlantic City de novo. Arranje este... exatamente como fez com o outro. Mas deve conseguir um desconto com o agente funerário, já que ele está pegando todos os nossos serviços.” Harry ficou fora durante uma semana. Quando voltou, tudo estava resolvido perfeitamente. Isso foi anteontem.

D. – Por que seu marido quebrou o guarda-roupa, hoje, sra. Marone?

M. – Porque perdeu o controle dos nervos. Recebeu outro telefonema anônimo esta manhã. O homem que chamou disse que, uma vez que havia dois corpos agora no guarda-roupa, a “coisa” valia duas vezes mais. Passaria em casa à noite para receber duzentos dólares. Então, desligou. Harry estava tão irritado que correu ao porão e pegou aquela barra perigosa. Disse-me: “Vou me livrar desses dois cadáveres infernais, ainda que tenha de carregar um de cada vez no ombro até a baía...” Então, começou a quebrar o guarda-roupa com a barra. Eu tinha dito que o guarda-roupa estava trancado e que tinha perdido a chave. De repente, a barra deslizou e fez-lhe aquele ferimento na cabeça. Mas aquilo somente o tornou mais irado do que nunca. Finalmente, a porta cedeu. Quando Harry olhou dentro do guarda-roupa não pôde falar nem produzir som algum. Sua boca abriu-se, como se ele não tivesse bastante ar. Os olhos ficaram iguais aos de uma rã. O rosto ficou vermelho, depois púrpuro e quase negro. Tudo de uma vez. E ele caiu no soalho. Foi quando chamei a polícia.

D. – E que foi que seu marido viu no guarda-roupa, sra. Marone?

M. – Ora, não havia nada dentro. A não ser uma confortável poltrona, um escabelo, um abajur, uma mesinha, uma caixa com os melhores charutos, uma garrafa de conhaque, alguns números do Alfred Hitchock’s Mystery Magazine... e um ventilador.

D. – Que aconteceu com os dois cadáveres, sra. Marone?

M. – Oh, lá não havia nenhum corpo, porque Harry realmente não matou ninguém. Ele pensava tê-lo feito. Sempre conservo minha pistola carregada com cápsulas de pólvora seca. Eu tenho medo de armas de fogo. E o pobre Harry tinha um estômago tão fraco, que não poderia nem sequer tocar um corpo para ver se estava realmente morto.

D. – Eu deduzo que seu irmão Joe se fez passar por ambas as supostas vítimas assassinadas... E, depois, fez chantagem com seu marido. Estou certo?

M. – Aquilo foi somente uma brincadeira... como aquela de Harry dando-me um tapete feito da pele de Brucie. E Joe não era um chantagista. Estava somente recebendo o dinheiro que Harry tinha prometido lhe pagar. Joe costumava visitar-me às terças e sextas. Se Harry chegasse inesperadamente, poderia retirar-se para o guarda-roupa e ler histórias policiais... até Harry sair.

D. – Onde está seu irmão, agora, sra. Marone?

M. – Vou lhe dizer onde ele está. Mas o senhor não pode prendê-lo. Não pode puni-lo por tomar o lugar de Harry na prisão! Isso porque Harry está morto; e o caso, encerrado. Nesse momento, Joe está numa marmoraria, encomendando uma lápide adequada para o túmulo de Harry. Dentro de poucas semanas, Joe e eu nos casaremos.

D. – Mas a senhora disse que Joe é seu irmão! Ele é seu irmão, sra. Marone?

M. – Bem, quero dizer, Joe sempre foi como um irmão para mim. Sempre planejamos nos casar algum dia. Joe dizia que nenhum homem, com a pressão sanguínea como a de Harry, podia viver muito tempo. Estamos arranjando uma ótima pedra para a sepultura de Harry. Dois anjos no topo, com as asas duplamente cruzadas, e esculpido embaixo um epitáfio: “Ele foi receber sua recompensa.”