“quem quer o repouso, na felicidade crê; mas aquele que da verdade é discípulo, esse, a verdade busca”
Same old shit is dead
Ao cinéfilo avisado por certo não escaparão comparações deste com os mais radicais cineastas do underground americano, sobretudo o dos bons tempos (década de 50/60), com o cinema "extremo" vindo do Oriente (Terayama, Matsumoto, ect..) ou com os demais "marginais" nacionais, esses quando ainda empenhados na sua antiga missão de iconoclastas antiparnasianos.
Mas a tentação metalingüística de pôr a palavra ao encalço de si mesma e inverter os sentidos será marca inequívoca dessa crítica e prática vigente em tempos saturados de memória e consciência céticas. A crítica cabe o papel de funcionar como uma espécie de memória coletiva: lembrar o que foi esquecido ou ignorado, fazer conexões, contextualizar e generalizar a partir do que aparece geralmente como ‘verdade‘ definitiva, o fragmento, a história isolada, e ligá-los aos processos mais amplos que podem ter produzido a situação de que estamos falando. Essa coluna se opõe ao consenso e não reprime sua pequena voz (que, ao final, nem será mais tão pequena assim). E se coloca a disposição para a reconstrução histórica e para o debate sobre esses autores através da proposta nuclear de análise das modalidades de representação, relacionando-as com a história e modernidade. A arquitetura desse labirinto sintetiza a concepção de que “a modernidade é uma tradição polêmica". A complexidade desses filmes e desse período é um desafio para quem busca decifrar seus significados e descrevê-los com características de um movimento estético.
Desde os créditos, se percebe a dissidência de origem distribuida pelo elenco: "Feijoada", “Sarampo”, BinBin”, “DKV”, "X-Tayla", “Chumbinho” e "Tara-Môa", destoam tanto dentro da galeria do nosso cinema "marginal"(e de qualquer um outro, vale o desafio), que se encontram, mesmo entre os “marginais”, marginalizados. E cada ente do elenco deve ser abordado a partir do modo adequado de o abordar, o que deve ser esclarecido a partir do modo de ser próprio do ente que em cada caso está em estudo. Na verdade, eles transcendem: são atores-personagens, tem apelidos no lugar dos nomes. Nota-se também, depois de muito, a passagem do tempo, ainda pela escolha das músicas - o cinema catalogado como cinema “marginal” até aqui (Rogerio Sganzerla) morreu como peru de natal, abraçado com Jimmy Hendrix e não se atualizou mais. Também não há como deixar de notar as diferenças de origem “sócio-cultural” mesmo em relação ao grupo tido como dos mais populares e não é a toa que esses filmes estiveram na gaveta da crítica intocados até hoje. Tal distância traz em si implícitas raízes econômicas e históricas.
Deve-se considerar ainda que as imprevisíveis estórias praticadas nesses filmes são para ‘uso’ e deleite exclusivos do autor, elenco e equipe – portanto, analisando, os motivos são completamente diferentes e inteiramente novos, o que por si só já muda tudo. Pode-se dizer que o público da época pouco ligava para os enredos - frequentavam as salas somente pelo seu conteúdo erótico/pornográfico. A estória contada no entanto surge aqui como uma espécie de desabafo e de crítica. E as escolhas a princípio resolvidas aleatoriamente e determinadas aparentemente sem a menor intenção, vem por isso mesmo repletas de signos fundamentais. Enfim um cinema sem vergonha nenhuma de ser marginal e um marginal sem vergonha nenhuma de fazer cinema. Daí a revisão necessária e urgente e o resgate imprescindível: uma das maiores lições que a História nos deixa é a de como é estúpido ser ‘inteligente’. A contradição é necessária como resposta à contradição objetiva da realidade. A certeza é só uma dúvida confortável. E a burrice é uma cicatriz. Designa o lugar no tempo onde o jogo foi, em vez de favorecido, inibido. Não há regra que não possa ser quebrada em benefício da expressão. Uma coisa pode ser verdadeira, conquanto não seja bela, nem santa e nem boa.
Nilson Primitivo é cineasta e colunista do blog Os Curtos Filmes.